Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Vacinados https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/01/27/vacinados/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/01/27/vacinados/#respond Thu, 28 Jan 2021 00:06:04 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Vacinado-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1563 Aos trancos e barrancos, claudicante, vem começando a vacinação contra a Covid-19 no Brasil. Depois de uma longa sessão da Anvisa, que acompanhamos pela TV, ouvindo os longos votos de cada integrante da diretoria da agência, como ouvíamos em outros tempos as intermináveis peças de oratória dos ministros do STF, as vacinas são aprovadas, a fotografia oficial é tirada e, por um instante, respiramos aliviados.

No dia seguinte, a realidade: o lote de vacinas disponíveis é muito pequeno e ainda há inúmeros entraves à imunização da população como um todo. Ainda que não faltassem doses, seria necessário estabelecer uma ordem, uma vez que seria impossível vacinar a população inteira em um dia só.

O critério de prioridade já estava, portanto, definido: profissionais de saúde da linha de frente, em razão do contato constante e direto com pacientes infectados, e o grupo de idosos, indígenas, quilombolas e populações ribeirinhas, em razão de maior fragilidade. A regra parecia razoável, mas não resistiu nem por dois dias.

Os fura-filas, em geral beneficiados pelo corporativismo ou por relações de amizade e compadrio, nem se deram conta de que exibir nas redes sociais o seu atestado de vacinação não lhes atrairia simpatia ou admiração. Que significa ser um “vacinado”? Significa que vai poder abandonar a máscara de proteção, voltar a conviver com seus amigos e parentes, frequentar festas, voltar à vida normal sem medo?

Qual é, de fato, a vantagem de ser um dos poucos vacinados? Na lógica das redes sociais, produz o efeito de provocar a inveja alheia, o mesmo que se obtém divulgando viagens exóticas, férias espetaculares, família feliz, presença em festas badaladas ou restaurantes caros e quejandos, mas, na prática, não há vantagem alguma nessa exclusividade.

É fato que, sob a influência constante do maketing, estamos acostumados a identificar o que é bom com o que é exclusivo, ou seja, com aquilo que exclui os outros, que é supostamente só nosso e, portanto, faz de nós únicos, indivíduos melhores que os outros. A volta da “vida normal”, porém, depende da vacinação do conjunto da sociedade, portanto de um programa inclusivo de vacinação – e da real eficácia da vacina.

Diante da óbvia reação negativa da maior parte das pessoas aos fura-filas, vêm as explicações (eu vou fazer 60 no mês que vem; eu tenho sinusite; eu trabalho no setor administrativo do hospital e posso ter contato eventual com parente de paciente de Covid etc.). Todos estamos expostos ao risco e todos temos o direito à vacina. O problema é respeitar a prioridade, que é a primazia, a possibilidade legal de passar à frente dos outros. Podem-se questionar os critérios de prioridade, é claro, mas não é isso o que se vê. Salve-se quem puder!

Um grupo de grandes empresários também tenta furar a fila. Com dinheiro para comprar as doses por um valor muito mais alto que o contratado pelo governo, eles põem a vacina numa espécie de leilão. Sua justificativa não difere muito da dos outros fura-filas, pois argumentam que a elevação do número de vacinados, independentemente dos critérios de prioridade do Ministério da Saúde, seria em si benéfica.

Por óbvio, esse argumento pode servir para qualquer furador de fila. Acrescentam que doariam ao governo (para distribuição à população) a metade das doses adquiridas (de um total de 33 milhões, doariam 16,5 milhões). Os critérios de distribuição passam a ser os de quem está pagando, o que, na lógica de mercado, também está justificado. Quem pode mais chora menos, afinal.

Na prática, porém, o problema persiste, pois, salvo engano, tendo a vacina eficácia de pouco mais de 50%, seu efeito depende da vacinação em larga escala (e da aplicação das duas doses), o que é um processo – e vai ser preciso ter paciência.

Em suma, pertencer à minoria dos vacinados talvez produza um efeito mais simbólico que real. A proteção, de fato, virá quando pertencermos a uma maioria de vacinados.

 

 

 

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Novos códigos https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/01/05/novos-codigos/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/01/05/novos-codigos/#respond Tue, 05 Jan 2021 17:53:43 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Bolsonaro-na-praia.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1557 Aqui costumo tratar de questões relativas à língua portuguesa, mas não me parece fora de propósito dispensar alguns parágrafos a uma linguagem não verbal por meio da qual nos reconhecemos e nos comunicamos nestes tristes tempos de convívio com a ameaça invisível de um vírus.

O principal item desse novo código é a máscara de proteção, que a um só tempo nos protege dos perdigotos alheios e livra os outros do contato com os nossos. Sua função parece clara, visto que o vírus se transmite pelas vias aéreas. Devemos, então, cobrir a boca e o nariz, portas de entrada e de saída do vírus.

A esta altura, depois de um ano de apelo e de explicações acerca da utilidade do acessório, convertido em peça do vestuário, com direito a estampas variadas, parece claro que quem se recusa a usá-lo não age por ignorar a sua função. A recusa de usá-lo ecoa a negação seja da gravidade da doença, seja dos métodos de combater o contágio, acrescida de uma pitada de pensamento mágico.

A imprensa noticiou as festas de fim de ano e aglomerações que ocorreram em todo o país em plena pandemia. Por óbvio, quem caiu na farra dispensou a máscara. Alguém imaginaria essas mesmas festas com pessoas mascaradas? Os adeptos da máscara preferiram adiar as comemorações para momentos mais oportunos.

Usar ou não a máscara passou a ser um código de conduta de viés ideológico, como tudo desde que a fanfarronice se instaurou no governo federal, que, em vez de se empenhar em campanhas educativas, compra de vacinas, testagem da população, organização do combate à pandemia, prefere investir no caos e na negação. Que dizer de um presidente da República que insiste no mau exemplo e faz piada com a preocupação das pessoas com a própria vida e a dos demais?

O presidente aparece publicamente sem máscara e abraça eleitores, que o imitam. Seus ministros e/ou secretários concedem entrevista coletiva à imprensa em que tiram a máscara a cada vez que respondem a uma pergunta dos jornalistas, sendo que ao falar é que se emitem os perdigotos…

Não estranhemos, portanto, pessoas que arregaçam a máscara ao pescoço para falar ao telefone e até mesmo para soltar um espirro em público. Muitos fazem o mesmo gesto enquanto praticam esportes nas praças, caminham pelas ruas ou quando vão aos bares e restaurantes com os amigos.

Nos locais em que o uso da máscara é obrigatório, geralmente se pendura um cartaz com as instruções de colocação do acessório, mas quem lê cartazes? Salões de cabeleireiro são um problema: o ambiente de harmonia, de encontro com os amigos, que é tão típico desses locais, cria um grande embaraço para os funcionários diante dos clientes que não respeitam as regras — os que as respeitam e os que não as respeitam estão ali, juntos e pagantes, numa guerra silenciosa.  Uma boa quantidade de pessoas deixa o nariz de fora; outras penduram o pano na orelha… Para que usam, então?

Parece que se trata mais de um código de conduta que de real convicção na capacidade de proteção do acessório. Uma pessoa sem máscara vê outra com máscara nas áreas comuns do condomínio e pode vestir a sua em respeito à crença do vizinho – ou para evitar algum constrangimento maior.

É muito desagradável usar essas máscaras; de resto, ninguém fica bonito atrás delas. Se as usamos, é porque é necessário. Se o tecido serve de anteparo a um ser invisível, não devemos puxar e recolocar a máscara que pode estar contaminada, pois corremos o risco de facilitar a entrada do vírus em nosso próprio organismo. Não é óbvio?

Estranhos tempos estes em que os símbolos parecem anteceder a materialidade das coisas. O gesto de usar a máscara é mais motivado pelo seu aspecto simbólico de pertencer a um grupo de pessoas conscientes (ou pelo incômodo de discutir com algum membro desse grupo) do que por sua utilidade comezinha, que só  se configura no uso correto e higiênico. Como explicar a máscara no pescoço, na orelha, abaixo do nariz ou sendo puxada, tirada e recolocada como se fosse casaquinho de frio? Resta-lhe apenas o traço simbólico, ainda que vago.

Que em 2021, mesmo atrás das máscaras, possamos viver alegrias. Não custa lembrar: a vida é uma só.

 

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Ser professor: um compromisso com a liberdade https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/10/15/ser-professor-um-compromisso-com-a-liberdade/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/10/15/ser-professor-um-compromisso-com-a-liberdade/#respond Thu, 15 Oct 2020 19:09:13 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/Redação-do-Enem-estudante-Bruna-Rocha-Parrado-8.2.2019-Rubens-Cavallari-Folhapress-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1549 Certa vez, publiquei neste espaço um texto que se propunha explicar por que o Enem adotava como um de seus critérios de correção de redação o respeito aos direitos humanos. Na ocasião, tentei demonstrar que o preconceito atrapalhava a elaboração de um raciocínio construído em bases lógicas, uma vez que constitui uma premissa falsa, mas reconheço que a acolhida não foi das melhores.

Bem, estávamos no fim de 2017 e o movimento Escola sem Partido ganhava uma briga na Justiça. Conseguiu para os seus adeptos uma vitória contra essa bobagem chamada direitos humanos, vitória essa que, segundo muito se difundiu na época, era uma vitória da liberdade de expressão. Afinal, poderiam finalmente os alunos, até então oprimidos pela ideologia dos direitos humanos, manifestar livremente o seu desapreço por negros, homossexuais, pessoas com deficiência, pessoas pobres e tudo o mais que a imaginação e as redes sociais lhes oferecessem como subsídio à construção do pensamento.

Um ano depois, era eleito Jair Bolsonaro, o candidato sincero, aquele que usava a liberdade de expressão para fazer apologia de preconceitos e até da tortura, o candidato que legitimava os piores sentimentos das pessoas, então libertas pelo ódio ao vizinho.

Rapidamente, as redes sociais se encheram de relatos de alunos que, estimulados por pais fanáticos ou mesmo por esse movimento ideológico dito Escola sem Partido, filmavam seus professores para denunciá-los por estarem criticando o governo ou defendendo justiça social e outras pautas associadas ao pensamento crítico – ou de esquerda, ou comunista.

Com a pandemia de Covid-19, o ensino remoto transformou-se em opção para uma parcela do alunado. A circunstância criou uma curiosa situação: pais começaram a ouvir as aulas que os filhos recebem e, segundo relatos de amigos professores, alguns intervêm nas aulas, fazendo a censura ideológica tão desejada por aqueles que, no longínquo 2017, se insurgiam contra a correção da prova de redação do Enem.

Ser professor nunca foi fácil, mas, neste momento, parece cada vez mais difícil. Muitos pais – e naturalmente aqui me refiro a uma parcela daqueles que pagam por ensino privado – veem na escola um lugar seguro onde possam deixar os filhos por algum tempo ou um lugar controlado, uma espécie de clube, onde os filhos convivam com seus iguais. Os professores, nesse caso, devem estar a serviço desses pais e, portanto, dizer aos filhos deles aquilo que eles próprios, os pais, querem que lhes seja dito.

Penso, no entanto, que ao professor cabe uma tarefa muito mais complexa e muito mais digna que essa: a de conduzir o desenvolvimento dos alunos. Vale lembrar que “desenvolver” é tirar aquilo que envolve ou cobre. A escola não é (ou não deveria ser) mera continuação do lar nem o professor um mero transmissor de conteúdos, a serem pinçados em um cardápio. Devem levar os jovens a pensar criticamente e com autonomia, sem que a estes seja negado o direito ao conhecimento ou imposto qualquer tipo de censura, seja qual for o pretexto.

É preciso educar para a liberdade. Neste Dia do Professor, minha solidariedade a todos os que estão nessa luta!

Observação: o texto contém trechos irônicos (leia com atenção).

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A banana do presidente https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/03/07/a-banana-do-presidente/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/03/07/a-banana-do-presidente/#respond Sat, 07 Mar 2020 09:00:03 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Bolsonaro-banana-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1462 Quem se importa com a banana de Bolsonaro? Há um mês, a imprensa noticiava com estarrecimento e indignação que o presidente da República tinha respondido a perguntas dos jornalistas com uma obscenidade, a conhecida “banana” (gesto de desprezo e raiva com conotação sexual). Isso pouco depois de ele ter ofendido uma repórter acionando maliciosamente o duplo sentido da palavra “furo”, que, no jargão jornalístico, é a notícia exclusiva.

Diante da reação da imprensa, o governo contratou (certamente com a verba dos contribuintes) um humorista de televisão, que, imitando o presidente, concedeu entrevista aos profissionais, transformando o jardim do Palácio da Alvorada em palco de comédia de gosto duvidoso.

O bobo da corte distribuía bananas aos jornalistas, sob os olhos do presidente e do ministro da comunicação, enquanto insistia para que as perguntas fossem dirigidas a ele. O assunto do dia eram os maus resultados da política econômica do governo, expressos na excessiva modéstia do PIB.

Desta vez, o próprio presidente assume o deboche como linguagem, coisa que ele e sua equipe já vêm fazendo dia a dia de modo um pouco menos explícito.

O ministro da Educação, em sua permanente querela com a gramática e a literatura, vem dando uma banana a todo o saber construído, aos professores, aos escritores, aos livros. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pastora evangélica que se arvora em guardiã dos valores morais da nação, aparentemente “só pensa naquilo”, feito certa personagem de esquete humorístico. Com suas propostas moralistas, dá uma banana para a realidade, para a diversidade, para a inclusão, para os valores laicos, tocando a pasta como quem pastoreia um rebanho de fiéis.

O ministro da Economia, à maneira de outro personagem popular da TV, “odeia pobre”. No mais puro momento Caco Antibes, expressou sua ira diante da possibilidade de dividir o assento do avião com a própria empregada –é disso que se trata, afinal, não tanto da visita à Disneylândia em si, suposto programa de gente endinheirada. Ela que vá (de ônibus, é claro) para Cachoeiro do Itapemirim, a terra do “rei” Roberto Carlos.

O ministro acionou o velho (e desatualizado) estereótipo da pessoa “pobre” que seria fã das canções melosas e simplórias do “rei”. Por óbvio, nem se pode dizer que todas as pessoas que fazem serviços domésticos tenham o mesmo gosto musical nem se pode dizer que o Roberto só tenha fãs em um estrato social (nem mesmo que suas canções sejam necessariamente simplórias e melosas). Lá se vai uma banana para a empregada que queria ir para a Disney! Já não era sem tempo de acabar com essa “festa danada”, comemorava ele, sem pudor, vendo o lado bom da cotação do dólar em quase R$ 5,00.

Depois da repercussão negativa da frase que escancara a cisão entre a casa-grande e a senzala, o referido ministro saiu-se com um pedido de desculpas “fake”: “Peço desculpas se tiver ofendido”. Ao empregar o condicional, apenas fingiu pedir desculpas, pois nem mesmo conseguiu reconhecer o teor ofensivo de seu preconceito.

O ex-ministro da Cultura usou suas supostas habilidades de ator para interpretar o que se revelou nada menos que um plágio de um discurso nazista.  Pretendia dar sua banana à essência da atividade de produção cultural, que é a liberdade, mas, desastrado, acabou debochando da comunidade judaica como um todo (inclusive daquela parcela que apoia o governo) e perdeu o lugar no elenco da ópera-bufa. Para assumir o papel, foi escalada uma veterana atriz de TV, figura politicamente anódina que, se não fizer a encenação do deboche do meio cultural, também não vai emplacar.

O mentor do presidente (ou “guru”) pôs em dúvida a esfericidade do planeta Terra e, desde a primeira hora, deixou claro seu estilo chulo. Esse vem dando a banana para a educação, para a ciência e para quem mais chegar.

O governo, capitaneado por um bufão, instituiu, desde o início, a linguagem do deboche. Está dando uma banana não só para a imprensa como também para os professores, para os cientistas, para os artistas, para as mulheres que não se contentam com o papel de “princesas” idiotizadas, para os pobres, que, ao que tudo indica, devem saber qual é o seu lugar e lá permanecer de bom grado, para a classe média, que partilha dos bens culturais (tão desprezados pelo ocupante da Presidência).

Resta saber quem são os que veem graça nesse triste espetáculo burlesco e os que não se importam com a falta de decoro, por uns confundida com espontaneidade, por outros tolerada em nome de afastar a sombra da esquerda. Todos esses dão sustentação ao bizarro personagem saído do baixo clero da política, como se a banana não lhes pudesse atingir.

Na semiótica do deboche, não espantaria que o presidente que divulgou um vídeo de “golden shower” em rede social viesse a brindar a nação com um “bundalelê” (provavelmente do dublê).  Aguardemos.

 

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O monstro da lagoa https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/02/27/o-monstro-da-lagoa/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/02/27/o-monstro-da-lagoa/#respond Wed, 27 Feb 2019 15:56:22 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/VÉLEZ-RODRIGUES-FOTO-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1344 A determinação de que estudantes cantassem o hino nacional todos os dias, encaminhada às escolas do país pelo ministro Vélez Rodrigues, não é o maior dos problemas da última gafe do Ministério da Educação, que, há menos de um mês, virou piada ao publicar em rede social uma vexatória mensagem em resposta a uma reportagem, na qual, na falta de qualquer argumento razoável, acusava o jornalista de ter sido treinado pela KGB, o serviço secreto soviético.

É fato, no entanto, que quem, tendo frequentado a escola durante o regime militar, teve de cantar o hino em posição de sentido, dia após dia, associa de imediato esse presumível respeito aos símbolos nacionais aos demais “valores” do governo ditatorial que tomou o país por 20 anos.

Ainda que seja normal em algum momento da vida escolar aprender o hino nacional – sendo, afinal, de praxe entoá-lo em cerimônias oficiais ou eventos esportivos internacionais –, para isso não se faz necessário implantar disciplina militar, menos ainda obrigar os alunos a levar a mão ao peito, como se prestassem homenagem a alguma divindade. O efeito, aliás, pode ser o contrário, como relata o colega Hélio Schwartsman.

O pior em todo esse episódio, porém, foi a carta do ministro, a ser obedientemente lida por professores e diretores diante de seus alunos, instados no final a repetir o bordão da campanha bolsonarista, conclusão do texto:

“Brasileiros! Vamos saudar o Brasil dos novos tempos e celebrar a educação responsável e de qualidade a ser desenvolvida na nossa escola pelos professores, em benefício de vocês, alunos, que constituem a nova geração. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos!”

Para piorar o que parecia não ter como ficar pior, havia a determinação de que os alunos fossem filmados enquanto cantassem o hino nacional e de que o vídeo fosse enviado ao MEC acompanhado dos nomes de professores e diretores – em cena de doutrinação explícita.

Em um governo que defende uma escola “sem partido”, é muita falta de coerência. Fujam da “doutrinação marxista”, que é como chamam qualquer tentativa de fazer aflorar o espírito crítico dos estudantes, e sejam abduzidos pela doutrinação pentecostal-militarista do partido do governo.

A reação nas redes sociais, bem como nos veículos da imprensa (e chamo a atenção para o texto do colega Ranier Bragon), não demorou, e o ministro recuou da obrigatoriedade de fazer a palavra de ordem da campanha eleitoral ser ecoada nas escolas.

Enquanto isso, contudo, já havia uma escola atendendo voluntariamente ao agora “pedido” do ministro. Bolsonaristas, os que ainda não se desencantaram com dois meses de noticiário,  podem, atropelando a lei, induzir as crianças a fazer o vídeo nas escolas, e pais igualmente pertencentes a esse grupo político poderão autorizar a divulgação das imagens – tudo voluntariamente, é claro. Enfim, a polarização vai se instalar no ambiente escolar, onde o que está em jogo é a formação dos jovens e a sua preparação para o pleno exercício da cidadania num país democrático e, é bom lembrar, signatário da Declaração dos Direitos Humanos.

O fato é que atitudes desse tipo (sabe-se lá o que ainda virá) despertam monstros adormecidos no fundo da lagoa, que, com a falta de traquejo de quem acaba de sair das trevas, voltam, sem nenhuma sutileza, a se apresentar como modelos possíveis.

Veja-se o professor Eduardo Lobo Botelho Gualazzi, da Faculdade de Direito da USP, que acaba de divulgar entre os alunos texto em que reforça preconceitos e estereótipos (pobres o são por se terem recusado a trabalhar, ativistas de esquerda são “energúmenos”, pessoas LGBT são “aberrações”, casamentos devem dar-se “entre homem e mulher da mesma etnia”) e finalmente, como se ainda precisasse, declara ter votado na turma que está no poder (Bolsonaro, Major Olímpio, Doria etc.).

Cada vez que um ministro faz uma maluquice, da qual volta atrás por meio de algum “post” em redes sociais (em geral, sob a mais esfarrapada das desculpas), um monstro ganha salvo-conduto para emergir do fundo da lagoa.

 

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Declarações não são bravatas https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/10/06/declaracoes-nao-sao-bravatas/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/10/06/declaracoes-nao-sao-bravatas/#respond Sat, 06 Oct 2018 14:46:16 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/ELE-NÃO-STRINGER-REUTERS-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1316 “Ai, bota aqui/ Ai, bota aqui o seu pezinho/ Seu pezinho bem juntinho com o meu/ E depois não vá dizer que você se arrependeu!”

Não é novidade para ninguém que o candidato favorito ao cargo de presidente da República é pródigo em declarações ofensivas a mulheres, pessoas LGBT, negros, indígenas, pobres etc. Será que declarar essas coisas tem alguma importância?

Seus eleitores, excetuados aqui os homens brancos heterossexuais bem-sucedidos (em tese, não atingidos pelas diatribes do candidato), costumam minimizar o efeito dessas declarações, tomadas como gestos de sinceridade ou bravatas inconsequentes, mera expressão do “jeitão de machão” dele etc.

Como explicar a adesão feminina ao candidato que aceita como normal que mulheres (bonitas) sejam alvo de estupro? Ainda que não defenda o ato em si, ele o toma como resultado de um instinto normal em homens viris, cabendo, portanto, à mulher dar-se ao respeito, vestir-se adequadamente, esconder a beleza tentadora, a fim de que o homem consiga conter-se.

O que subjaz a esse discurso é que homens viris desejam estuprar, mas, é claro, devem tentar conter-se na maior parte das vezes. A solução para o problema passa, nesse tipo de raciocínio, pela contenção e, quando isso não funciona, pela punição.

Seria muito melhor pensar que os homens não são todos potenciais estupradores que têm de se conter diante de uma mulher que os atraia, que virilidade não é isso. É a mudança de mentalidade que traz o respeito à mulher, o qual implica vê-la como um ser dotado de inteligência, sujeito de suas vontades, não como mero objeto ou apêndice, a quem cabe apenas a gerência do lar de um homem.

O mesmo vale para os gays. Não é razoável dizer que preferia ver morto um filho gay ou dizer que não tem um filho gay porque deu aos seus boa educação em casa. Gays mais jovens, brancos e bem-sucedidos ou oriundos de famílias mais abastadas, porém, podem achar que as “bravatas” do candidato não têm o poder de interferir na sua vida e nas suas conquistas.

Mulheres brancas, casadas, ricas ou apenas bem-sucedidas, igualmente podem achar que nada disso é com elas, que ele é “machão”. Negros e afrodescendentes de modo geral, igualmente, se gozam de uma situação econômica boa ou razoável, também podem achar que as declarações do candidato não vão mudar a sua vida, podem até achar que não existe racismo na sociedade.

O fato é que as lutas das minorias (minorias de poder, não minorias numéricas) por reconhecimento e respeito vão dando resultado aos poucos, não de uma só vez. É por isso que, felizmente, há mulheres, LGBTs e afrodescendentes que já conseguiram galgar posições na sociedade, bem como pessoas de origem pobre que conseguiram ascender economicamente. Essas pessoas são, sim, fruto de seus esforços e de sua luta pessoal, mas também são fruto da luta coletiva que se empreende em favor delas, luta que jamais foi encampada por regimes de extrema direita.

Em suma, o ambiente de liberdade é o que permite que as pessoas desenvolvam suas potencialidades e se expressem como quiserem, respeitando umas às outras. Declarações vindas de um candidato a presidente da República não são palavras ditas ao vento ou bobagens inconsequentes ditas em reuniões privadas. Ao serem manifestadas em público, elas reivindicam legitimidade. Preconceitos que deveriam estar enterrados ganham o status de “opinião”.

Será que nós queremos uma sociedade que legitima o preconceito racial, a misoginia, a homofobia, a segregação dos mais pobres (sobre os quais recai toda a responsabilidade pelos crimes), a censura a livros e obras de arte, a solução dos problemas pela força, pondo as pessoas armadas umas contra as outras?

Nas redes sociais, muitas vezes faz sucesso quem é debochado, iconoclasta, aquele sujeito que parece comum, “igual a todo o mundo”. Talvez esse critério de valor não seja o melhor na hora de escolher o representante máximo da nação. A fanfarronice de hoje será lei amanhã. Se eleitas as forças retrógradas, acordaremos no dia seguinte sob a nuvem negra do preconceito e de todo tipo de rancor.

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Quem fica quieto na hora do jogo da seleção? https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/07/02/quem-fica-quieto-na-hora-do-jogo-da-selecao/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/07/02/quem-fica-quieto-na-hora-do-jogo-da-selecao/#respond Mon, 02 Jul 2018 23:46:30 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/BRASIL-E-MÉXICO-15305631975b3a8a7de5e78_1530563197_3x2_lg-320x213.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1270 Posso morrer pelo meu time
Se ele perder, que dor, imenso crime
Posso chorar se ele não ganhar
Mas, se ele ganha, não adianta
Não há garganta que não pare de berrar  (Skank)

 

Dia de jogo da seleção brasileira é quase um feriado nacional. Vamos ficar no “quase”, pois as pessoas ficam divididas entre a agenda e essa espécie de dever cívico que é engrossar a torcida canarinho.

Num acordo sem palavras, todo o mundo aceita que, na hora do jogo, não precisa de banco, de lavanderia, de shopping ou do que quer que seja. Quem está no local de trabalho vai para a frente da TV.

Quem, por qualquer motivo, na hora do jogo está longe do aparelho pode puxar conversa com qualquer pessoa em qualquer lugar para saber o placar do momento (“Está quanto pro Brasil?”). Até quem não acompanha o esporte (ou quem só conhece os jogadores que vão para o Mundial) fica tomado de uma reconfortante sensação de pertencimento.

O futebol não tem classe social. É possivelmente o tema sobre o qual se conversa com qualquer pessoa sem as barreiras da formalidade. Somos todos brasucas!

Ninguém consegue ficar quieto enquanto assiste a uma partida da seleção. Quem mal sabe o que é um tiro de meta ou um pênalti opina sobre as decisões do árbitro. Todo o mundo, nessa hora, é especialista em futebol.

O mais divertido é ouvir os mais exaltados, que, diante da televisão, se põem a dizer o que devem fazer os homens que estão no gramado: Vai! Mete a bola no gol! Chuta! E tome verbos no imperativo, salpicados de interjeições, sob o som das cornetas ou “vuvuzelas”.

Antigamente, nos primórdios da televisão, os jogos da Copa eram gravados e só passavam um dia depois em videoteipe. Os aficionados do esporte acompanhavam as partidas pelo rádio.

Hoje, as imagens são onipresentes (seja na TV, seja no computador, seja no celular), mas, sem o narrador e o alarido da torcida, elas não têm tanta graça. Não é à toa que muitos dos apaixonados pelo esporte carregam o “radinho de pilha” quando vão ao estádio.

Fico a pensar que a narração esportiva é uma arte. Haja destreza de pensamento e de articulação! É cheia de entusiasmo, de chistes e de pormenores que tornam possível enxergar cada passe de cada atleta. E o grito de “gol” com a vogal esticada até o fôlego se acabar para só no fim revelar o autor do feito tem o condão de suspender o tempo por alguns segundos.

O fato é que ninguém consegue ficar quieto enquanto assiste ao futebol. Não importa o que se diz, mas é preciso dizer alguma coisa. O combate termina no campo, mas continua na conversa, cada lance rememorado, todo o mundo fazendo a escalação para o próximo jogo, dando palpites na estratégia do técnico, xingando, aplaudindo, rindo ou chorando. Como diria o Skank, “que emocionante é uma partida de futebol”! Vai, Brasil!

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Manchete com título no futuro: a morte calculada https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/05/24/manchete-com-titulo-no-futuro-a-morte-calculada/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/05/24/manchete-com-titulo-no-futuro-a-morte-calculada/#respond Thu, 24 May 2018 13:38:21 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1257 Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto, 
E hoje, quando me sinto, 
É com saudades de mim  (Mário de Sá-Carneiro, poeta e suicida)

No último dia 10 de maio de 2018, a Folha, em sua versão impressa, publicou uma notícia cujo título, diferentemente do que ocorre na prática jornalística, continha um verbo no futuro: “David Goodall morrerá hoje aos 104 anos”. Na versão online, o verbo volta para o presente jornalístico.

O inusitado do título fora de padrão é que a notícia não era a morte daquele cientista, que em si não renderia manchete de jornal, mas o próprio tempo verbal do verbo morrer.

A novidade era, portanto, poder dizer que alguém vai morrer, por sua própria vontade, com hora e local marcado. Em países mais desenvolvidos, já existem empresas com nomes sugestivos (Life Circle, Eternal Spirit, Dignitas, Exit) que ajudam os cidadãos a realizar o suicídio, em determinados casos visto como um direito.

O cientista, segundo a reportagem, arcou com o custo aproximado de 10 mil francos suíços (o equivalente a cerca de R$ 36 mil). O preço da morte digna pode variar, mas, ainda segundo o texto, há opções para quem não tem recursos financeiros.

Antes de efetivar o contrato de morte (deve existir algo do gênero), a empresa se certifica de que o solicitante não tem depressão. Goodall, para tanto, passou por duas visitas médicas com profissionais diferentes.

O profissionalismo das instituições que oferecem o serviço é indiscutível: elas pedem aos pacientes que ingiram pentobarbital sódico, um sedativo eficaz que, em doses fortes o suficiente, faz com que o músculo cardíaco pare de bater. A Eternal Spirit optou por infusões intravenosas, pois a substância é alcalina e queima um pouco quando engolida.

Um profissional prepara a agulha, mas cabe ao paciente abrir a válvula que permite que a substância de curta duração se misture com uma solução salina e comece a fluir em sua veia. 


Os trechos em itálico são extraídos do texto da reportagem. Vale atentar para as marcas de impessoalidade do discurso de venda de um serviço, o que, de certa forma, contribui para a superação do questionamento ético. Essa organização discursiva dá credibilidade ao serviço, apresentado como uma opção no mercado, o último ato de compra do cliente.

Enfatizou-se que o solicitante/paciente (cliente?) estava lúcido e tomou a decisão por estar infeliz. Conta-se que passou dois dias no chão da cozinha após uma queda até que a faxineira o encontrasse. Ele tinha 104 anos e, por certo, debilidades físicas, mas estava lúcido, portanto a mente estava saudável o suficiente para tomar uma decisão desse porte (suicídio).

O modo como o discurso se organiza torna fácil e até tentador aceitar isso como algo normal, como uma morte digna. E aqueles que se ocupam de propiciar o serviço são uma espécie de benfeitores. Pode ser mesmo.

Outros dados da reportagem também chamam a atenção. Um deles é a proporção entre homens e mulheres na clientela do serviço; outro é a sua faixa etária predominante: “Dos 175 suicídios assistidos realizados entre 2012 e 2015, 115 foram em mulheres. A faixa etária predominante é de 60 a 89 anos”.

O desejo de acabar com a própria vida pode ocorrer em qualquer idade, como sabemos. Sentimos como uma tragédia o suicídio de jovens e adolescentes, que pode ter muitos fatores motivadores (a violência do bullying ou a decepção amorosa, por exemplo).

Depois dessa fase, temos uma espécie de relação ambígua com o suicídio: geralmente se considera que o suicida era fraco ou que “tinha problemas” (não raro, as pessoas fazem uma releitura da personalidade da pessoa e descobrem que o suicida era mesmo um sujeito esquisito), mas o tema continua sendo tabu. O suicídio continua sendo algo condenável, embora a culpa sempre recaia no autor do gesto.

O que vemos agora é que, a partir de certa idade, o suicídio deixa de ser o gesto de um fraco, desesperado, problemático e passa a ser um gesto de dignidade, apoiado por uma estrutura assistencial.

É paradoxal que a vida moderna se paute por um verdadeiro culto à saúde, vendido ininterruptamente (não fumar, não ingerir bebida alcoólica em excesso, fazer exercícios regularmente, comer alimentos orgânicos, beber dois litros de água por dia, tomar vitaminas, repor o colágeno, usar protetor solar etc.), e que não saibamos que destino oferecer a quem envelhece em vez de morrer naturalmente mais cedo.

O mais triste é o processo de exclusão que a pessoa vai sofrendo com a perda da juventude. O que seria um atributo de valor na idade avançada, a saber, a experiência e o saber acumulado, não tem utilidade na lógica de descarte do tipo de sociedade em que vivemos.

Ouso pensar que quem vive as coisas com alguma intensidade enfrente no decorrer da vida labirintos que parecem oferecer apenas a morte como solução. Normalmente o desejo de morrer é o maior sintoma de depressão, aquele que leva as pessoas aos terapeutas e analistas (ou não leva).

A pergunta a fazermos a nós mesmos, creio, é se esse suicídio racionalizado não seria a única saída que o nosso modelo de sociedade oferece a quem ousa atravessar a barreira dos anos. Em que medida a decisão é, de fato, individual e racional?

É digno de nota que uma expressiva maioria dos suicidas assistidos sejam mulheres, para as quais o envelhecimento é ainda mais sofrido por motivos, infelizmente, óbvios.

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O preconceito é sempre uma premissa falsa https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/11/02/o-preconceito-e-sempre-uma-premissa-falsa/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/11/02/o-preconceito-e-sempre-uma-premissa-falsa/#comments Thu, 02 Nov 2017 10:48:20 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1220 Às vésperas da realização do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), uma decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), acatando pedido da Associação Escola sem Partido, determinou a suspensão da anulação das redações cujo conteúdo desrespeite os direitos humanos, critério que vem sendo seguido pelas equipes de correção de textos desde 2013.

Sob o argumento de que “ninguém é obrigado a dizer o que não pensa para poder ter acesso às universidades”, a referida associação, na prática, reivindica, em nome da liberdade de expressão, o direito à manifestação de preconceitos.

Nas palavras do desembargador federal Carlos Moreira Alves, o critério do Enem é ilegal, pois ofende a garantia constitucional de manifestação de pensamento e opinião. Na opinião dele, o candidato não deve ser privado do direito de ingresso em instituições de ensino superior caso a opinião manifestada “venha a ser considerada radical, não civilizada, preconceituosa, racista, desrespeitosa, polêmica, intolerante ou politicamente incorreta”.

O que sustenta essa decisão, da qual o Inep vai recorrer, é uma vaga premissa de que a correção de uma redação seja a análise da competência linguística do estudante como algo independente do conteúdo expresso. Em outras palavras, o professor deve corrigir a forma, não o conteúdo, como se houvesse um claro limite entre uma coisa e outra.

Será possível defender, com coerência, uma opinião “não civilizada, preconceituosa, racista, desrespeitosa ou intolerante”? Será o respeito aos direitos humanos uma opção no balcão de ideologias ou de partidos políticos?

O momento de polarização ideológica que vivemos expressa não apenas as diferenças de visão de mundo e de interesses como também a intolerância, cujos frutos a história já nos mostrou em grandes tragédias como o Holocausto dos judeus e a escravidão em vários lugares do mundo.

Dizer que alguém tem o direito de não gostar de homossexuais, de negros, de mulheres ou de judeus, por exemplo, é fazer apologia do preconceito. O preconceito, no entanto, é sempre uma premissa falsa.

Em tempos de devoção às redes sociais, o que se passou a considerar “opinião” é, na maioria das vezes, a primeira impressão que se tem de algo. Basta uma fração de segundo para conceder um “like” a um “post” lido em outra fração de segundo. Opinião é algo que se constrói com reflexão.

Muito se fala em respeito aos direitos humanos, ideia que deve nortear qualquer processo educacional, a menos que a escola abdique de ser o lugar por excelência da reflexão e da construção do pensamento crítico.

A palavra “respeito”, no entanto, talvez por ter diferentes significados, por vezes se presta a raciocínios imprecisos, do tipo “eu trato todo o mundo com respeito, mas não gosto de homossexuais nem de negros”. Quem diz isso respeita ou não os homossexuais e os negros?

É provável que a pessoa tome a ideia de respeito por não xingar ou não agredir, responder caso o outro lhe dirija a palavra e alguns gestos desse teor. Está, assim, quite com a sua cota de tolerância, o que lhe permite “não gostar de homossexuais e de negros” (atitude sentida como um direito seu) e, por conseguinte, não contratá-los para trabalhar em sua empresa, não admiti-los como amigos ou membros da família (por casamento ou namoro), enfim, segregá-los.

O respeito aos direitos humanos pressupõe uma atitude interna de reconhecimento do outro como igual em humanidade, mesmo quando o outro erra. A punição ao erro deve ser aplicada segundo a lei, sob os auspícios da razão. Caso contrário, estaremos renunciando à mais basilar conquista da civilização. Abrir espaço para a “defesa” de opiniões “não civilizadas, preconceituosas, racistas, desrespeitosas ou intolerantes” é sonegar à educação o seu papel na formação do caráter e da cidadania.

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Machão das novelas sai do personagem e cai na real https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/04/08/machao-das-novelas-sai-do-personagem-e-cai-na-real/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/04/08/machao-das-novelas-sai-do-personagem-e-cai-na-real/#comments Sat, 08 Apr 2017 14:27:21 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1185 O episódio de assédio sexual protagonizado pelo ator José Mayer nos bastidores da maior emissora de TV do país levou o machão das novelas a sair do personagem que vem encenando durante a vida toda e cair na real.

O depoimento contundente de uma figurinista da empresa ao blog AgoraÉQueSãoElas, da Folha, deflagrou o escândalo, que o ator espera ter abafado com um pedido público de desculpas, ao que tudo leva a crer, elaborado por sua assessoria de imprensa.

Vale lembrar que a primeira resposta de José Mayer menosprezava a inteligência da moça e, consequentemente, a do público de modo geral: ela estaria confundindo o ator com o personagem (ela, não ele). Não funcionou.

Muito bem. Nova resposta é divulgada à imprensa pela assessoria do ator, desta vez um texto um pouco mais elaborado.

O redator da carta usou a primeira pessoa do discurso para criar empatia com o leitor, que imagina estar diante das palavras de um  José Mayer arrependido, que, diga-se de passagem, se quisesse mesmo ser convincente, talvez gravasse um vídeo (sem TP!).

Mas vamos ao texto, a carta aberta. Diante da repercussão dos fatos, com direito a testemunhas e movimento de mulheres dentro da Rede Globo, a intenção do missivista é reconhecer o próprio erro, pedir desculpas e, de preferência, levar o público a esquecer o assunto. Afinal, o que está em jogo é a preservação da sua imagem, o seu maior ativo.

Ele é correto (pede desculpas porque essa é a “atitude correta”); ele é responsável (“Sou responsável pelo que faço”); ele é inocente (não tinha intenção de ofender, estava apenas fazendo brincadeiras de cunho machista); ele é uma boa pessoa (ter esposa, filha e amigas vale por um atestado de bons antecedentes); ele é humilde (“não me sinto superior a ninguém”); ele é vítima da educação machista de sua geração; ele é aberto às críticas (aprendeu em alguns dias o que levou 60 anos sem aprender). Finalmente, pede um voto de confiança, posiciona-se como um exemplo a ser seguido por outros homens, expressa sua dor e termina com uma mensagem moralmente positiva (“o José Mayer que surge hoje é, sem dúvida, muito melhor”).

Em suma, um homem correto, responsável, inocente, familiar, humilde, vítima, aberto à crítica, sensível, uma espécie de herói que sai do episódio transformado em um ser ainda melhor do que já era. Caso encerrado.

A trajetória do herói, no entanto, não parece tão convincente quanto o desejado. Não foram poucos os homens que, nas redes sociais, se manifestaram contra o compartilhamento dos atos condenáveis do ator com toda a sua geração – afinal, felizmente, não são todos os homens dessas gerações mais antigas que agem dessa maneira.

Cabe aqui, porém, alguma reflexão. Não se pode negar que homens e mulheres têm sido criados no machismo, numa cultura que tenta naturalizar supostas diferenças de comportamento entre os sexos, de papéis sociais etc., valores enfeixados num sistema de conveniências sempre desfavorável à mulher.

Em parte, ele, como os outros homens, é também vítima dessa situação. Ocorre, porém, que o nível das atitudes, que mais combinariam com os modos de um homem de Neandertal, chega a surpreender em pleno século 21.

Chama a atenção o fato de o ator ter-se sentido à vontade para desrespeitar a moça com gestos e xingamentos diante de 30 pessoas, num set de filmagem. Isso diz muito sobre o ambiente de trabalho na emissora, que, ao que tudo indica, sempre favoreceu esse tipo de comportamento, possivelmente visto como “normal” ou, no mínimo, permitido aos que alcançam prestígio e poder na estrutura hierárquica. Não foi à toa que ele disse que “o mundo mudou”.

Ele foi pego de surpresa pela vida real, na qual o estereótipo do machão cafajeste, em que canalhice é sinal de virilidade, já ficou para trás. O empoderamento da mulher não passa unicamente pelo seu sucesso no mundo do trabalho; a mulher quer ser sujeito de seus sentimentos e desejos, não um mero objeto ou presa a ser caçada.

É fato que ainda há homens que entendem a negativa feminina como artifício provocativo ou coquetismo – aliás, esses acham que a mulher deve ter essa atitude para “se valorizar”. É a “mulher difícil”, que esconde seu desejo para que o homem se sinta o “conquistador”. Terminada a conquista, quando ela cede ao próprio desejo, ele parte para a próxima captura. Esse modelo antigo de relação entre homens e mulheres confronta-se com os anseios da mulher do século 21. Mesmo tendo boa aparência, o ator mostra que envelheceu, porque é isso o que acontece com quem não acompanha as mudanças do mundo. O tempo passou na janela e (não) só o Zé Mayer não viu.

Talvez ter passado muito tempo no mesmo emprego, no mesmo ambiente de trabalho, encarnando o mesmo personagem, tenha privado o ator de experiências mais enriquecedoras. “O mundo é grande”, diria Drummond, muito maior que o Projac. Agora, a emissora afasta das telas o galã, pois não interessa comprometer a própria imagem. “Viver é muito perigoso”, diria Guimarães Rosa.

Para além do beijo gay, o desafio dos novelistas agora é desconstruir essa imagem tosca de virilidade, que, no fundo, é muito frágil. Está na hora de pôr em cena seres humanos com anseios do nosso tempo em vez de reforçar estereótipos que só convêm aos valentões que assediam mulheres na rua e, em casa, posam de bons maridos, sob o ódio complacente das esposas.

Desse jeito, não está bom para ninguém. Não basta investir em belas imagens e recursos técnicos, quando o texto continua fraco. Fica a dica, novelistas.

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