Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O suarabácti de Lula https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/03/11/o-suarabacti-de-lula/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/03/11/o-suarabacti-de-lula/#respond Thu, 11 Mar 2021 20:46:10 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/Lula-discurso-0ebe84b8-5012-4e89-bf71-69a0e63e420f-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1580 A última fala do ex-presidente Lula gerou uma avalanche de comentários nas redes sociais – e, como sempre acontece, houve quem se preocupasse em avaliar o seu uso do português. Desta vez, foi a pronúncia da palavra “advogado” como “adevogado” o que chamou a atenção.

Vale dizer que o acréscimo de um apoio vocálico a desfazer um grupo consonantal é um fenômeno fonético relativamente comum, chamado “suarabácti” – a palavra estranha vem do sânscrito.

O nome do inseto em que se teria transformado a personagem Gregor Samsa do conto de Franz Kafka (“A Metamorfose”) é um exemplo desse processo. “Barata” vem do latim “blatta” (houve rotacismo na passagem de “l” a “r” e o acréscimo da vogal, que transformou “bra” em “bara”).

Essa formação, por ser antiga, talvez não nos impressione muito, tampouco gere percepção de erro. Veja-se, então, o que se deu com as palavras “cáften” e seu feminino, “caftina” – por via popular, fixaram-se as variantes “cafetão” (com epêntese, que é o acréscimo de fonema por acomodação articulatória ou mesmo por analogia – possível semelhança com “café”) e “cafetina”. O mesmo vale para o verbo “caftinar”, que, na variante popular, é “cafetinar”. O uso garantiu às variantes populares um lugar no dicionário.

Nem sempre, porém, a vogal de apoio se fixa na escrita, como ocorreu com “barata” e com o par “cafetão/ cafetina”, mas é comum que se fixe na pronúncia. Aos que se incomodaram com o “adevogado” de Lula, sugiro que observem à sua volta (e mesmo nos noticiários de TV) a pronúncia de termos como “psicólogo”, “psiquiatra”, “psicologia”, em que frequentemente aparece um “i” depois do “p” (como se lessem “piscicólogo”, “pissiquiatra”, “piscicologia”).

Atire a primeira pedra quem nunca tenha dito “peneumonia” em vez de “pneumonia” ou “peneu” (do automóvel) em vez “pneu”. Mais: será que você pronuncia “sub-humano” (“su-bu-ma-no”) ou deixa aparecer sorrateiramente uma vogal “i” depois do “b” (“subi-humano”)?

Quem ficou indignado com o suarabácti do Lula que se cuide ao pronunciar as formas do verbo “indignar-se”. Muita gente supostamente bem letrada tropeça ao pronunciar o imperativo “indigne-se” e prefere lançar mão do apoio vocálico, dizendo algo como “indiguine-se”. Já ouviu isso? Que dizer de palavras em que o “x” tem som de “cs”? Há quem diga “séquiço” (sexo) ou “fáquis” (fax), coisa muito comum.

Na pronúncia de certos estrangeirismos, fica ainda mais evidente a nossa tendência a criar apoios vocálicos e outras acomodações articulatórias. “Smartphone” soa “ismartifone”, “e-mail” soa “emeio” e por aí vai.

O próprio Lula, em sua fala, lembrou que, no passado, ele dizia “menas laranja” e que era alvo de correção (embora não houvesse redes sociais, a mídia não deixava passar), mas que, na porta da fábrica, todo o mundo entendia – e é verdade.

A flexão de “menos” (como “menas”) enquadra-se no fenômeno da hipercorreção (ou ultracorreção), em que o falante interpreta como errado o que está certo, em geral por insegurança em relação ao uso culto da língua. É esse o caso também de quem flexiona indevidamente as formas do verbo “haver” em construções do tipo “Haviam muitas pessoas” ou “Houveram muitas denúncias”, nas quais a norma culta orienta a manter o verbo invariável (“Havia muitas pessoas”; “Houve muitas denúncias”).

É por essas e por outras que a linguística evita trabalhar com conceitos de “certo” e “errado”, que são muito relativos e, num esforço de simplificação, deixam de considerar a diversidade de registros, que, juntos, compõem a língua.

 

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Balbúrdia no Planalto https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/05/27/balburdia-no-planalto/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/05/27/balburdia-no-planalto/#respond Wed, 27 May 2020 21:25:43 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/Reunião-ministerial-de-abril-Reprodução.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1501 O recém-divulgado vídeo da reunião ministerial de 22 de abril de 2020 causou grande frenesi por causa da linguagem do presidente da República. Houve canal de televisão quantificando o número de palavrões registrados na sessão e edições de vídeo na internet reunindo os “melhores momentos”.

Não há como negar que a falta de decoro é moeda corrente entre o presidente e seus ministros, que não se furtaram a manter numa reunião ministerial o linguajar que tanto sucesso faz nas redes sociais. É preciso lembrar, no entanto, que foi com esse tipo de registro linguístico que o presidente se elegeu. Surpreendente seria que, longe dos holofotes, ele demonstrasse um comedimento que nunca ostentou em público. Em geral, dá-se o inverso.

Havia grande expectativa em torno da suspensão do sigilo do vídeo, o que, pelo menos em parte, se explica pela natural curiosidade de saber como se comportam a portas fechadas as personalidades que conhecemos por sua imagem pública. Supõe-se que esta seja mais edulcorada do que aquela que ninguém vê; a imagem pública tende a ser construída para produzir um efeito, enquanto na intimidade, atrás das cortinas, estaria a “verdade”.

Bolsonaro, ao se expressar com a mesma agressividade de sempre, dando vazão a um repertório de imagens escatológicas (cocô, bosta, estrume, hemorroida, porcaria) e de termos de baixo calão (foda-se, foder, sacanagem), ganhou pontos entre os seus apoiadores, que nele apreciam a “espontaneidade”.

Vale dizer que, nas redes sociais, a regra do sucesso passa por uma imagem de autenticidade (construída ou não) e de coragem de ser o que se é. Desse ponto de vista, pode soar como hipocrisia escandalizar-se com o uso de palavrões que fazem parte do glossário cotidiano das pessoas. É claro que não se deveria fazer uso dessa linguagem dentro da sede do governo, em reunião ministerial gravada, mas como esperar de um governo que elegeu o Twitter como veículo de comunicação o respeito ao protocolo?

O verbo “foder”, por exemplo, conquanto seja de uso tabuístico, vem sendo ressignificado, como o atesta a quantidade de livros que o adotam desde o título (A Sutil Arte de Ligar o Foda-se; Liberdade, Felicidade e Foda-se; Fodeu Geral; Seja Foda, Seja Inteligente; Como ser uma Pessoa Foda; Como ser uma Mãe Foda etc.). O curioso desse termo e suas variações é que seu campo semântico é muito abrangente (e os falantes saberão distinguir o significado de “foda”, “fodinha” e “fodão”, por exemplo).

“Foda-se”, como conselho de autoajuda espiritual, equivale a “dane-se”, “estou pouco me lixando para o que os outros pensam de mim”. A escolha de um termo chulo como forma de nomear um processo de autolibertação e de enfrentamento de conflitos tem algo de catártico, uma vez que soltar um palavrão é quebrar um protocolo da vida social.

Diga-se, aliás, que a sinceridade é inimiga da etiqueta. Pessoas educadas aprendem desde cedo a lição do comedimento (comer pouco, em ritmo moderado; fazer gestos suaves, mas sem afetação; falar baixo; vestir-se com discrição etc.). Vale dizer que Bolsonaro, antes do primeiro palavrão da reunião, pede licença, desculpando-se por antecipação. Além disso, em mais de uma vez, refletindo sobre sua própria linguagem, afirma ser mais educado que o ministro Weintraub, o que, embora difícil de aferir, pode ser verdade.

(Ficamos a imaginar como têm sido todas as outras reuniões do ministério de Jair Bolsonaro, das quais a dos 520 anos da chegada de Cabral à Terra de Vera Cruz parece ter sido apenas uma pequena amostra.)

Assim como os educados usam eufemismos para tentar dar más notícias de modo agradável, os “espontâneos” podem usar os disfemismos para produzir o efeito inverso: dizer de modo desagradável e grosseiro o que quer que seja (assinar a porcaria do papel, o bosta do governador fulano, o estrume do governador beltrano, cocô petrificado etc.). Até quando usa uma figura de linguagem, a metonímia, para evitar dizer certa palavrinha chula, o presidente cai no disfemismo. Afinal, hemorroida, obviamente, não é um palavrão, mas, no contexto, seu emprego é chulo.

A obscenidade se define por ser algo que se deve evitar ou esconder, que não deve ser dito em público, geralmente em nome da decência e do decoro. O presidente que dava “banana” aos jornalistas e que divulgou vídeo de “golden shower” nunca pareceu preocupado com vulgaridade ou falta de pudor.

Por outro lado, o anseio de quem olha pelo buraco da fechadura foi satisfeito pelo ministro do Meio Ambiente, com sua proposta de aproveitar a pandemia, enquanto a imprensa está ocupada com os efeitos devastadores da doença que se alastra, para “passar a boiada”, alterando, na calada da noite, portarias e decretos que não passam pelo Congresso (ditos infralegais). Essa aparentemente foi a maior obscenidade da reunião, mas não foi a única.

O subtexto do encontro era a preocupação com o impeachment. O general Braga Netto tentou apresentar o seu Pró-Brasil, um plano de investimento pelo Estado, que ele foi chamando de Plano Marshall brasileiro, para logo ser enquadrado por Paulo Guedes, a quem coube fazer a correção e, em seguida, advertir a audiência de que o desenvolvimentismo quebrou o Brasil etc. e que, se fosse por esse caminho, o governo acabaria como o de Dilma Rousseff. O ministro da Economia acrescentou que esse discurso de desigualdade pode até ser usado porque o presidente precisa se reeleger, mas que está descartada qualquer alteração na sua cartilha neoliberal. Admite, portanto, que “discurso da desigualdade” pode ser necessário para angariar votos, ainda que a redução da pobreza não esteja nos planos do governo.

Mais adiante, depois de o ministro do Turismo fazer sua defesa dos cassinos, coisa que desencadeou indisfarçável excitação na turma, Guedes rendeu-se ao tom geral e, ignorando a presença e/ou a opinião da ministra da moral e dos bons costumes, disparou: “Cada um que se foda como quiser, principalmente se for maior de idade, vacinado e milionário”, deixando bem claro a que deus oferece devoção.

A intervenção de Weintraub serviu para lembrar ao chefe que ele é um leal militante do projeto deles, seja este qual for. Parece estar, indiretamente, lamentando o fato de sua pasta estar na mira do centrão, como moeda de troca para evitar o impeachment. A fala desastrada e grosseira, em que afirmou que os ministros do STF, a quem chamou de “vagabundos”, deveriam ser presos, pode render-lhe um processo na Justiça.

Por ora, o ministro Celso de Mello, em texto da decisão que suspende o sigilo do vídeo, reforça até pelo nível de linguagem que o ministro vai ter de prestar contas daquilo que disse: “Essa gravíssima aleivosia perpetrada por referido Ministro de Estado, consubstanciada em discurso contumelioso e aparentemente ofensivo ao patrimônio moral dos Ministros da Suprema Corte brasileira (“Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”) – externada em plena reunião governamental ocorrida no próprio Palácio do Planalto, que contou com a presença de inúmeros participantes –, põe em evidência, além do seu destacado grau de incivilidade e de inaceitável grosseria, que tal afirmação configuraria possível delito contra a honra (como o crime de injúria)”.

Damares Alves, com sua contumaz beligerância, demonstrou preocupação com a possibilidade de mulheres feministas virem a reivindicar o direito ao aborto por terem sido vítimas do coronavírus, como fizeram em relação ao zikavírus, que, sabidamente, pode provocar microcefalia no feto caso a gestante o contraia. A preocupação da ministra no momento da pandemia é que as feministas vão encontrar mais uma desculpa para defender o direito ao aborto.

Saber se o vídeo constitui ou não prova de que Bolsonaro queria interferir na Polícia Federal é tema para os juízes. O que fica claro é que o presidente teme ser traído por seu próprio gabinete e faz questão de lembrar os partícipes de que não seriam ministros em outro governo. Verdade. Chega a dizer, em claro recado a Sergio Moro, que perde o ministério o ministro que for elogiado pela Folha, pelo Globo… e pelo Antagonista. Mandetta que o diga.

Bolsonaro passou 30 anos no baixo clero, sem ser incomodado. Parece ter saudade do sossego, de quando ele e a família estavam longe dos holofotes, quando pequenos negócios, “rachadinhas”, quiçá relações mal explicadas com milícias, passavam despercebidos da imprensa, que tinha mais com que se preocupar. No seu entender, investigar seus filhos seria só uma forma de atingi-lo e apeá-lo do poder. Chega a dizer que não tem nenhum apego pela cadeira de presidente, afirmação interessante nas circunstâncias.

De qualquer forma, o estilo chulo (ou “sincero”), embora envergonhe a (alta) classe média, foi capaz de carrear os votos das classes mais baixas, contingente numeroso de pessoas. Se tudo o que ele dizia antes da eleição não foi suficiente para acender o sinal de alerta, os palavrões, neste momento, parecem ser o de menos.

 

 

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O internauta, a loja física, o jornal de papel e o amigo virtual: uma conversa sobre arcaísmos e neologismos https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/23/o-internauta-a-loja-fisica-o-jornal-de-papel-e-o-amigo-virtual-uma-conversa-sobre-arcaismos-e-neologismos/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/23/o-internauta-a-loja-fisica-o-jornal-de-papel-e-o-amigo-virtual-uma-conversa-sobre-arcaismos-e-neologismos/#respond Fri, 23 Aug 2019 14:49:36 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/termo-internauta-Moacyr-Lopes-Júnior-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1402 Talvez com atraso tomo conhecimento de uma discussão sobre a suposta obsolescência do termo “internauta”, que hoje, quando estamos todos conectados em tempo integral, perde a sua função.

Na década de 1990, “internauta” surgiu como neologismo, formado dos elementos “inter” (redução de “internet”) e “nauta” (do grego “naútes”). Calcado em “astronauta”, o “internauta” era, então, a pessoa que explorava o ambiente virtual ou navegava por ele, como astronautas navegam o espaço sideral, aeronautas navegam o espaço aéreo e nautas propriamente ditos navegam pelos oceanos.

Naturalmente soa pueril dizer que internauta não navega porque a internet não é um oceano e que, portanto, melhor seria substituir o termo por “usuário”. É próprio da língua estender o sentido de um termo a outros contextos (e a prova disso, no caso de nauta, está nos termos aeronauta e astronauta, entre outros).

Quanto a “usuário”, esse é um termo que requer complemento. É frequentemente associado a consumo de entorpecentes (usuários de drogas), portanto teria de ser sempre seguido de seu complemento: usuário de internet. Ocorre, porém, que, nesse caso, estaríamos, como dizem os antigos, trocando seis por meia dúzia.

O problema real é outro. Não se trata de substituir um termo por outro, coisa que, aliás, quando ocorre, costuma ser espontânea. Palavras precisam ser funcionais, ter serventia, para que sejam acolhidas pela língua, afinal esta é um fenômeno social.

A língua tanto acolhe palavras novas, os chamados neologismos, como aposenta termos sem utilidade. Os neologismos, como toda novidade, chamam a atenção, despertam a curiosidade, chegando até a suscitar discussões e algumas paixões.  Já os que saem de cena costumam fazê-lo em silêncio, discretamente, sem um último aceno de adeus. Esses são os arcaísmos, que vão sendo esquecidos pouco a pouco, deixando de aparecer nos textos e nas conversas.

Talvez seja esse o destino do “internauta” num futuro próximo, quando lhe restará a companhia de termos como adail (antigo posto militar), almotacel (certo inspetor), albende (bandeira), samicas (talvez), toste (depressa), asinha (depressa), adur (dificilmente, a custo), nacibo (destino, sina), talaca (divórcio)…

Vários são os motivos que levam um termo a tornar-se um arcaísmo. Almotacel (ou almotacé), por exemplo, era, na Idade Média, um inspetor encarregado da aplicação de pesos e medidas e da taxação e distribuição dos gêneros alimentícios. Esse é um caso em que a palavra saiu do uso porque deixou de existir aquilo que ela nomeava. O mesmo se deu com a expressão “em cabelo” que, na época, era aplicada a mulheres solteiras, uma vez que as casadas deveriam cobrir a cabeça com uma touca. Despareceu o costume, desapareceu a expressão.

“Internauta”, se estiver mesmo em via de extinção, estará nesse grupo de arcaísmos e talvez venha a configurar o caso de palavra de vida mais curta na língua, que terá durado míseros 30 anos. Vale notar, entretanto, que há termos que persistem, sobretudo em expressões idiomáticas, mesmo quando sua base referencial é algo que já deixou de existir. Vejam-se os casos de “pegar o bonde andando” e “cair a ficha”, ambos plenamente em uso, mesmo por quem nunca tenha tomado um bonde ou feito uma ligação telefônica nos equipamentos públicos, aqueles com fichas metálicas (anteriores aos modelos com cartão, ainda existentes).

A questão da aposentadoria precoce do “internauta” ainda divide opiniões porque, enquanto, para alguns, estar conectado é como respirar, portanto seria desnecessário caracterizar alguém como tal (chamar alguém de “internauta” seria como chamar a pessoa de “respirante”), para outros, o termo ainda tem vitalidade, pois permite caracterizar a pessoa como usuária de um meio específico, a internet (afinal, a palavra “telespectador”, usada para quem vê televisão, continua em circulação).

O fato é que a internet dominou nossos hábitos de tal forma que passou a ser o principal meio de comunicação das pessoas. Quando alguém diz que leu uma notícia ou que assistiu a um vídeo, a um filme ou a um seriado ou que ouviu uma música nova, logo imaginamos que tenha feito tudo isso pela internet, com seu smartphone – principalmente se essa pessoa tiver nascido no século 21.

Mudou a percepção do “natural”, daquilo que não precisa ser nomeado. Hoje, quando lê um livro ou jornal impresso em papel, a pessoa tende a contar isso como experiência específica (é até engraçado para nós, os jurássicos, ouvir e até dizer também “jornal de papel”). Vejam-se expressões como “loja física” ou “livro físico”. O adjetivo antes era desnecessário, pois ninguém imaginaria que uma loja ou livro pudessem ser desprovidos de sua materialidade.

Hoje essas expressões se tornaram corriqueiras, um sinal de que o nosso referencial vem mudando a passos largos.  Por enquanto, ainda usamos a expressão “amigo virtual”, que denomina aqueles nossos amigos que só conhecemos pelo avatar nas redes sociais, com os quais nunca tivemos o prazer de um cafezinho. Quanto tempo levará para que a expressão natural seja “amigo físico”, quando este, enfim, for a exceção, como um jornal de papel…?

 

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Transparecer e deixar transparecer https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/21/transparecer-e-deixar-transparecer/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/21/transparecer-e-deixar-transparecer/#respond Wed, 21 Aug 2019 22:58:08 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/DALLAGNOL-monumento-à-Lava-Jato-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1394 “Moro, em conversa no aplicativo, transpareceu contrariedade: ‘Não é melhor esperar acabar?’”

A frase apareceu em um texto sobre os vazamentos da Lava Jato, em que o então juiz Sérgio Moro hesitava ante a possibilidade de erguer um monumento à referida operação em Curitiba, ideia aventada pelo procurador Deltan Dallagnol.

Não pretendo comentar a criatividade do procurador, que queria promover uma nova modalidade de turismo na cidade, o “turismo patriótico”, mas já fico a imaginar as multidões em disputa por um selfie diante de um busto dos novos heróis nacionais, bem como a desejada repercussão na mídia, nas redes sociais… Nada como uma inteligência empreendedora!

A frase acima foi destacada aqui por um motivo com bem menos poder de instigar a curiosidade dos milhares de internautas sedentos de novidade: o uso peculiar do verbo “transparecer” feito pelo redator: Moro transpareceu contrariedade.  Ora, se “transparecer” é aparecer total ou parcialmente, o que transparece é a contrariedade, não a pessoa em si (no caso, Moro). É a contrariedade de Moro que transparece na conversa com Dallagnol.

Para que a ação recaia sobre Moro, sendo ele o sujeito da oração, será necessário criar um período um pouco mais complexo, usando o verbo auxiliar causativo “deixar”: Moro, em conversa no aplicativo, deixou transparecer contrariedade, o que equivale a dizer que Moro, em conversa no aplicativo, deixou que sua contrariedade transparecesse.

O redator não está sozinho no uso desse regime impróprio do verbo “transparecer”. O leitor poderá aguçar a percepção e encontrar outros casos nas suas leituras diárias (não só na Folha, é claro).

Em recente texto, um ex-assessor de Flávio Bolsonaro fez a seguinte declaração acerca do caso Queiroz, reproduzida entre aspas: “Fabrício Queiroz sempre transpareceu receio de que essa atividade empresarial chegasse ao conhecimento do [então] deputado estadual Flávio Bolsonaro, pois acreditava que ele não concordaria com a forma que era realizada”.

Novamente estamos diante desse falso regime do verbo “transparecer”. Mais curioso ainda é este uso: “De sua parte, se de início transpareceu concordar, Cármen Lúcia adotou súbita rigidez contra o agendamento do tema”. Nesse caso, o mais adequado seria usar o verbo “parecer” (se, de início, pareceu concordar).

Há casos em que haveria ganho em substituir “transparecer” por “demonstrar”. Vejamos este:  “O ministro procurou transparecer tranquilidade —na avaliação da oposição, deboche. Descontraído, Moro comeu e bebeu refrigerante e café durante a audiência, e riu com o presidente da CCJ.”

Do ponto de vista semântico, vale observar que a ação de “transparecer” tem o traço de não intencionalidade, de algo que não conseguimos disfarçar ou esconder, donde a estranheza da construção acima, uma vez que “procurar” denota intenção. É por isso que “demonstrar” seria uma escolha lexical mais adequada (O ministro procurou demonstrar tranquilidade – na avaliação da oposição, sua atitude denotava deboche).

Em suma, um sentimento ou uma intenção transparecem na fisionomia, nas palavras ou nas atitudes de alguém (Sua irritação transparecia no modo como gesticulava; Sua emoção transparecia em sua voz); uma pessoa deixa transparecer um sentimento ou intenção (Ele não deixava transparecer o nervosismo). Havendo a intenção de que o outro perceba certo sentimento ou intenção, o melhor é usar o verbo “demonstrar” (Ele não demonstrava o que sentia, Ele demonstrava imenso apreço pelos colegas).

Da mesma família do verbo “transparecer” é o substantivo “transparência”, que, usado na moda ou na política, sempre sugere aquilo que não impede a visão do que é verdadeiro. Assim como a transparência nas roupas revela o corpo, quando na política e nas relações humanas, ela revela as verdadeiras intenções e sentimentos. Ao usar o verbo “transparecer”, vale lembrar que ele sugere a ideia de deixar aparecer algo que talvez a pessoa desejasse esconder. Em tempos de “fake news”, mais do que nunca, é preciso buscar a transparência, aquilo que está sob o disfarce de notícia.

 

 

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Dize-me (ou diz-me) com quem andas e te direi quem és https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/09/27/dize-me-ou-diz-me-com-quem-andas-e-te-direi-quem-es/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/09/27/dize-me-ou-diz-me-com-quem-andas-e-te-direi-quem-es/#respond Thu, 27 Sep 2018 14:03:15 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1311 Os provérbios ou ditados populares, essas frases anônimas que exprimem uma espécie de verdade universal aplicável a grande variedade de situações, nunca saem de moda.

Um dos mais populares é o célebre “Dize-me com quem andas e te direi quem és”, que, no entanto, aparece frequentemente adulterado para “Diga-me com quem andas e te direi quem és”. A mistura de pessoas gramaticais (sobretudo a oscilação tu/você) é muito característica da fala brasileira, principalmente na região Sudeste e já no Sul do Brasil também.

O que chama a atenção nesse caso específico é que se use o imperativo da terceira pessoa na primeira forma verbal (“diga”) e que as demais formas, bem como o pronome átono (“te”), sejam mantidas na segunda do singular (”andas”, “és”).

Em São Paulo, diferentemente disso, a tendência é que os verbos no modo imperativo apareçam na segunda do singular (“Vem cá!”, “Olha isso!”, “Sai daí!”, “Pega um copo de água para mim, por favor!”, “Abre uma conta no banco”, “Compra uma capa para o seu celular”, “Mostra para ele que você tem ideias novas”, “Fica quieto!”, “Volta pra mim!”). Pode não parecer à primeira vista, mas, nessas frases tão corriqueiras e familiares, “vem”, “olha”, “sai”, “pega”, “abre”, “compra”, “mostra”, “fica” e “volta” são formas de segunda pessoa do singular, compatíveis com o tratamento pela forma “tu”, não pela forma “você”, sendo esta a que é majoritariamente usada pelos falantes.

Nos estados do Nordeste, muito provavelmente essas frases seriam ditas de outra forma: “Venha cá!”, “Olhe isso!, Saia daí!”, “Pegue um copo de água para mim, por favor!”, “Abra uma conta no banco”, “Compre uma capa para o seu celular”, “Mostre para ele que você tem ideias novas”, “Fique quieto!”, “Volte pra mim!”. Nessa região, tradicionalmente, o imperativo é usado também na terceira pessoa, sem mistura de pessoas gramaticais, de acordo com a norma-padrão da língua.

(Digo “tradicionalmente” porque, com a influência da internet, hoje é muito difícil caracterizar uma fala regional. A língua tende a manter-se livre de alterações nas comunidades mais isoladas. A intensa comunicação entre falares diferentes gera todo tipo de influência e somente as pesquisas científicas podem elucidar as características dessa diversidade, de modo que não há garantia de que essa oscilação já não esteja influenciando o falar nordestino.)

Hipóteses

O que talvez explique a adulteração do ditado popular é a falta de familiaridade com a forma verbal “dize”, imperativo da segunda do singular. Vale lembrar que “diz” seria uma variante possível de “dize” (“Diz-me com quem andas e te direi quem es”), também correta à luz da norma-padrão gramatical.

Quem é bom observador já percebeu que as formas do imperativo da segunda pessoa (“Vem, cá”, “Fica quieto” etc.) são idênticas às formas de presente do indicativo da terceira pessoa do singular (“ele vem”, “ele fica” etc.). Talvez esteja aí uma hipótese de explicação do uso delas também no imperativo de terceira pessoa (você).

Conjugação na segunda pessoa do singular

Nos primeiros anos escolares, quando se aprendem as conjugações verbais, os estudantes têm de memorizar o imperativo das segundas pessoas (tu e vós) conjugando o verbo no presente do indicativo e retirando das formas de segunda pessoa o “-s” final.

Se, no presente do indicativo, temos eu digo, tu dizes, ele diz, nós dizemos, vós dizeis, eles dizem, no imperativo teremos “dize (tu)” e “dizei (vós)”.

“Tu vai” vs. “Amai-vos”

Como essas formas são pouco usadas no dia a dia, a maioria das pessoas as esquece. O que se vê com frequência hoje é o uso do pronome “tu” com as formas de terceira pessoa (“tu vai”, “tu fica”), que, no entanto, não é aceito no padrão formal da língua.

Em frases feitas (frequentemente trechos memorizados da Bíblia ou orações cristãs), ainda aparece a forma “vós”: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”; “Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei”; “Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” etc.

Embora cada um possa se expressar como quiser, é bom ficar atento às situações em que se espera o uso formal da língua. Nesses casos, não se devem misturar as pessoas gramaticais.

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Como você usa os termos ‘obrigado’ e ‘obrigada’? https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/07/26/como-voce-usa-os-termos-obrigado-e-obrigada/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/07/26/como-voce-usa-os-termos-obrigado-e-obrigada/#respond Fri, 27 Jul 2018 01:41:25 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/NEYMAR-CELULAR-OURO-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1288 Num dia desses, navegando pela internet, encontrei uma “notícia” já meio velha, que foi nova em 2015 ou 2016, sobre o nosso craque Neymar Jr. O texto falava de seus luxos, tema que sempre desperta curiosidade. Afinal, que destino o garoto dá aos milhões que despencam em suas contas bancárias? Carros, mansões, presentes caros para amigos e namoradas etc. estão na lista.

Chamava a atenção, no entanto, o celular com capinha de ouro personalizada. Diga-se: foi um mimo que ele recebeu da empresa que produz as capinhas, não foi uma compra dele. Boa parte dos luxos, aliás, são presentes que ele ganha e, naturalmente, conta a seus inúmeros fãs e seguidores nas redes sociais.

Na rede social de Neymar, o agradecimento está escrito em inglês: “Can’t wait to finally receive my @goldenconcept mobile phone in polished Gold. Thanks for your service @goldenconcept“, mas, em um sem-número de sites e jornais que repercutiram a notícia, o texto aparece em português: “Mal podia esperar para receber meu celular banhado a ouro. Obrigada”. O original foi editado, mas fica difícil saber se tinha sido publicado em português antes. 

Em outro punhado de publicações (aparentemente em menor número), a frase dele é ligeiramente diferente: “Mal podia esperar para receber meu celular banhado a ouro. Obrigado”. O leitor deste blog de língua portuguesa já percebeu por que essa história acabou chegando aqui. Há dois pontos nessa curta mensagem que merecem observação.

A forma de agradecer, obrigado ou obrigada, é o que se destaca, pois é o ponto divergente nos veículos de comunicação que repercutiram o fato. Gramaticalmente, a palavra “obrigado” é o particípio passado do verbo “obrigar” que tem valor de adjetivo. Quem está agradecido, grato ou obrigado é quem se sente devedor de um favor, de um elogio, de uma amabilidade. Ora, se assim é, o termo concorda com essa pessoa que se sente agradecida, daí a antiga lição: um homem diz “obrigado” e uma mulher diz “obrigada”.

Já se ouve quem defenda que “obrigado” tem valor de interjeição (e, nesse caso, seria invariável). Essa é uma interpretação, que, no entanto, ainda não é majoritária. De qualquer forma, os que partilham dessa opinião aceitariam que uma mulher dissesse “obrigado”, mas que dizer de um homem usar o gênero feminino? Aí fica difícil dar uma explicação.

Tenho visto nestes tantos anos de lida com a língua portuguesa muita gente a imaginar que o agradecimento concorda com a pessoa a quem nos dirigimos; nesse caso, o homem diz “obrigada” quando agradece a uma mulher (!). Se assim fosse, ela é que seria a devedora do favor, não ele. Quem está obrigado é quem recebe algo de alguém. Pode ter sido esse o raciocínio (equivocado) de quem escreveu no feminino, uma vez que o agradecimento está dirigido à empresa.

Dito isso, nunca saberemos se Neymar chegou a pensar em português (e que gênero teria ele usado) ou se pensou mesmo em inglês, língua na qual inexiste essa questão (“Thanks” é “thanks” e pronto!). Muito bem: teria algum jornalista usado equivocadamente o feminino e nisso os demais o teriam seguido? E aqueles que usaram (corretamente) o masculino? Esses teriam editado (corrigido) o original (se é que houve um original em português escrito por Neymar) ou apenas feito a correta tradução? Nunca saberemos e alguns dirão que, em tempos de fake news, isso é pouco importante. Será?

Uma segunda questão suscitada pela frase de Neymar é a expressão “banhado a ouro”, que, até onde cheguei, foi unânime entre os jornalistas que deram a notícia. Seria o “a” a preposição adequada? Novamente estamos diante de um particípio, agora do verbo “banhar”. Como costumamos usar esse verbo? Se digo algo como “Ao ouvir a notícia aterradora, seu rosto banhou-se em lágrimas, digo também que seu rosto ficou banhado em lágrimas, não é?  Um objeto que recebeu um banho de ouro foi banhado em ouro — a bem dizer, foi mergulhado no ouro, da mesma forma que algumas pessoas gostam de banhar o pão no café. Difícil imaginar a preposição “a” nessas situações, não?

Então, bem podia o nosso querido Neymar ter publicado o seguinte agradecimento: “Mal podia esperar para receber meu celular banhado em ouro. Obrigado, @nome da empresa. 🙂

 

 

 

 

 

 

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Amar e ser amado; perdoar e ser perdoado? https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/03/19/amar-e-ser-amado-perdoar-e-ser-perdoado/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/03/19/amar-e-ser-amado-perdoar-e-ser-perdoado/#respond Mon, 19 Mar 2018 16:52:59 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1231 Celso Luft, em seu conhecido “Dicionário de Regência Verbal”, a propósito de discutir a sintaxe do verbo “perdoar”, alfineta gramáticos puristas e mesmo dicionaristas que, ao reprovarem uma construção, logo vêm com a  célebre introdução “É muito corrente, embora irregular…”. Retruca Luft: “O que é usual, corrente, é regular”.

Regular ou irregular? Vai depender do ponto de vista. Aquilo que é corrente só pode ser irregular se comparado a um padrão fixo. O problema é que, quando um uso linguístico se dissemina e muita gente se desvia do padrão fixo, é porque talvez esse padrão já tenha mudado. Será preciso, então, descrever a língua de outro modo, não apenas esgarçar uma teoria antiga, tentar, a todo custo, encaixar o pé no sapatinho de cristal da Cinderela.

Pertence ao senso comum a percepção de que só existe um modo de explicar a língua, daí a ideia de que o certo é algo fixo. O que a linguística mostra (em suas várias vertentes) é que muita coisa ficava de fora do modelo teórico que se tornou conhecido como gramática tradicional.

A observação de Luft dizia respeito à construção “perdoar alguém” (perdoar o amigo, perdoar o namorado, perdoar o filho etc.), que os puristas consideram incorreta – afinal, perdoamos alguma coisa a alguém (objeto direto de coisa e objeto indireto de pessoa), donde as construções tidas como corretas demandarem uma preposição “a”: perdoar ao amigo, ao namorado, ao filho etc.

O raciocínio em questão, que igualmente se aplica ao verbo “pagar” (pagar ao médico, pagar ao dentista, pagar ao professor particular) parte do pressuposto de que, se o verbo tem dois objetos (direto e indireto), ao suprimir um deles, o outro não se altera. É um raciocínio de fundo logicista, que, no entanto, não explica o fenômeno. O purista quer que a língua entre no modelo, em vez de buscar um novo modelo para explicar o que a língua, de fato, é.

No caso desses dois verbos, o que se observa é que, na ausência do objeto direto (cujo conteúdo fica implícito), o que era objeto indireto ocupa o seu lugar. Daí as construções “perdoar o amigo” e “pagar o médico” – sem o objeto direto de coisa, o indireto de pessoa assume o seu lugar. Importam, aparentemente, a ação em si (dar o perdão, dar o pagamento/ dinheiro) e a pessoa que é afetada por ela.

O comportamento parece estender-se a outros verbos. Veja-se o caso de “cobrar”. Cobramos algo a ou de alguém. Essa é a regência do verbo “cobrar” consagrada em dicionários especializados (cobrar dos /aos políticos o respeito ao eleitor; cobrar de/a alguém uma dívida etc.). Ocorre que o verbo já tem largo uso na língua com o complemento de pessoa na posição de objeto direto (O time cobrou o técnico, mas decidiu mantê-lo; Eleitor tem a obrigação de cobrar os políticos etc.) – casos em que o objeto de coisa ficou implícito.

O mesmo ocorre com “extorquir”, bitransitivo, com objeto direto de coisa e indireto de pessoa (extorquir dinheiro de alguém). Quando o complemento direto é “dinheiro”, geralmente fica subentendido, mas nem por isso se diz algo como “Eles extorquiram da pessoa”. Mais comuns são construções em que a pessoa ocupa a posição de objeto direto  (Antigamente, para humilhar e extorquir investigados, policiais recolhiam com espalhafato as impressões digitais dos investigados).

A força desse uso é tal que a voz passiva soa muito natural: em “os profissionais mais bem pagos do mercado”, está pressuposto que “profissionais” seria o objeto direto da voz ativa (pagar bem os profissionais); o mesmo vale para “fulano foi perdoado”,”fulano foi cobrado” e “fulano foi extorquido” (este último aparece, por exemplo, em crônica de Ruy Castro na Folha: Reduziu o episódio a uma farra que fugiu do controle, omitiu o principal — sua mentira sobre o assalto — e mentiu de novo ao dizer que foi extorquido e ameaçado).

Vale notar que o apagamento do objeto direto em casos como esses ocorre por economia, já que, em geral, a informação está no contexto. Veja-se o título “Luiza Brunet diz que perdoou ex-marido Lirio Parisotto, acusado de agressão” , que é seguido da transcrição da declaração da ex-modelo: “Eu já perdoei. O que eu procuro é outro tipo de justiça. O perdão está dado”. Na fala transcrita, há o apagamento dos dois objetos (direto e indireto). Já se sabe a quem perdoou e o que perdoou. Segundo a tradição gramatical, Brunet deveria ter dito: “Eu já lhe perdoei a agressão”. Para fazer essa construção, hoje, a pessoa teria de refletir sobre o modo da expressão antes de se expressar, o que só ocorre em situações de formalidade, nas quais não se espera ouvir a fala espontânea.

É possível lidar com essa questão de duas maneiras: uma delas é contornar o problema, alterando a construção, explicitando sempre os dois objetos dos verbos, de modo a satisfazer os princípios da gramática tradicional; a outra é reconhecer a mudança linguística e registrar a língua como ela se apresenta. Optar pela primeira pode ser mais seguro, mas optar pela segunda não significa incorporar usos idiossincráticos sem nenhum critério.

Embora seja mais fácil seguir o caminho de chão batido da obediência à tradição, certamente não será possível frear as transformações. A arte está em perceber o que já é, o que não é mais e o que ainda não é.

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Quando o agente da ação não se dá a conhecer https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/05/03/quando-o-agente-da-acao-nao-se-da-a-conhecer/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/05/03/quando-o-agente-da-acao-nao-se-da-a-conhecer/#comments Thu, 04 May 2017 00:54:55 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1190 Aluga-se casas ou alugam-se casas? Essa questão de concordância verbal já foi mote de muitas aulas de português e também de muita controvérsia.

Segundo a tradição da língua portuguesa, “alugam-se casas”, mas, segundo os linguistas (cientistas da língua), o que vale é o que as pessoas usam com mais frequência – e tudo indica que, pelo menos no Brasil, a construção “aluga-se casas” venha ganhando terreno mesmo entre os falantes que dominam a norma culta.

O cientista, como se vê, não está preocupado em dizer qual é o “correto”. Seu objetivo é entender a língua e suas transformações sem fazer juízo de valor. No âmbito da universidade, ele desenvolve uma série de pesquisas.

No dia a dia de quem escreve, no entanto, surgem dúvidas. As pessoas hesitam diante de possibilidades de expressão e querem, legitimamente (por que não?), saber que vereda tomar. Quem pergunta geralmente quer seguir a tradição da língua, identificada com a ideia de correção.

Se a resposta do professor à pergunta que encabeça o texto for um sincero “tanto faz”, um cauteloso “depende do ponto de vista” ou talvez um “segundo fulano, é isto, mas, segundo beltrano, é aquilo”, é bastante provável que a pessoa insista: mas, afinal, qual é o certo (ou ainda “qual é o mais certo”)?

Aqui não pretendo encetar o debate sobre a existência ou a inexistência de erro em língua. Modestamente, quero refletir sobre o que teria levado a construção “alugam-se casas” a tornar-se estranha aos falantes.

É comum a percepção do pronome “se” como índice de indeterminação do agente da ação. Quando não se sabe ou não se pretende dizer quem pratica a ação, usa-se o “se”. É assim quando dizemos “Só se fala nisso” ou “Não se come bem aqui”. Os predicados “só falar nisso” ou “não comer bem aqui” não são atribuídos a um ser específico, mas a qualquer um, daí a ideia de indeterminação. Nessas frases, não há problemas, porém. Nenhuma delas provocaria a dúvida quanto a flexionar ou não o verbo, certo?

A estrutura aluga-se casas/ alugam-se casas, no entanto, suscita o questionamento. É preciso verificar em que ela difere das demais. Sem muito esforço, vamos observar que, diferentemente das outras, essa estrutura contém um substantivo no plural (casas), que é o complicador.

Das duas, uma: ou esse substantivo é o sujeito do verbo “alugar”, ou é o objeto direto do verbo “alugar”. Muita gente pensa que o sujeito representa necessariamente o elemento que pratica a ação expressa pelo verbo; se assim for, como aceitar que as casas aluguem a si mesmas? Parece um contrassenso. O sujeito, porém, nem sempre é o elemento que age. Ao dizer que casas são alugadas, o sujeito “casas” sofre uma ação. O que é o sujeito, então?

O sujeito de uma oração

Sujeito é aquele ou aquilo de quem ou de que se fala. Simples assim. Todo predicado se constrói sobre o sujeito, e o verbo da oração concorda com o sujeito. Quando se diz “alugam-se casas”, não se espera que as pessoas interpretem o “se” como pronome reflexivo (alugar a si mesmo). Que se espera, então?

Os saudosistas sempre têm na ponta da língua uma frase do tipo “Já não se fazem hospitais como antigamente”, “Já não se fazem escolas como antigamente”, não é mesmo?

Nessa construção, não imaginamos que hospitais não se façam a si mesmos ou que escolas não se façam a si mesmas. O que entendemos é que hospitais e escolas não são feitos como antes, não são mais como no passado. É curioso notar que a expressão fixa, talvez pela sua repetição, continua sendo usada com a concordância tradicional.

Ocorre também, nessa construção, a supressão do pronome “se” (Já não fazem hospitais como antigamente), o que muda a estrutura da frase, embora a ideia de indeterminação do agente permaneça.

Uma das formas de indeterminar o sujeito é usar o verbo na terceira pessoa do plural. Dizemos algo como “Falaram de você ontem” porque queremos ocultar a identidade de quem falou. Embora o verbo esteja no plural, o autor da ação pode ter sido uma só pessoa.

É essa a estrutura usada na canção “Balada do louco”, dos Mutantes,  à qual Ney Matogrosso deu uma interpretação inesquecível. Quem não se lembra do verso inicial “Dizem que sou louco por pensar assim”?


Sujeito indeterminado

Ao usarmos a construção “dizem que”, temos sujeito indeterminado. Então, vamos recapitular: há duas formas de indeterminar o sujeito. Uma delas se dá com o uso do pronome “se” (chamado índice de indeterminação do sujeito) e a outra com o uso de um verbo na terceira pessoa do plural sem antecedente no contexto que permita identificar a quem a ação pode ser atribuída. Assim:

Fala-se muito de política nas redes sociais.

Falam muito de política nas redes sociais.

As duas estruturas equivalem-se. Em ambas o sujeito é indeterminado.

Nem sempre, porém, teremos as duas opções – considerando-se, é claro, a tradição da língua. Os verbos transitivos diretos (e também os que admitem dois objetos, um direto e um indireto) não admitem a primeira construção (com o “se” como índice de indeterminação do sujeito).

Voz passiva

O “se” usado com verbos que admitem o objeto direto (aquele que completa o verbo sem mediação de preposição) atua como pronome apassivador, ou seja, torna passivo o sujeito da oração. Isso significa que o sujeito não será o agente da ação (na voz passiva, quem age é o “agente da passiva”). Com esses verbos, temos as seguintes construções passivas:

Aluga-se uma sala.

Uma sala é alugada.

As duas estruturas equivalem-se. Em ambas o sujeito é passivo (uma sala). Note que, na segunda construção, seria possível acrescentar o agente da passiva (Uma sala é alugada pelo dono do imóvel). O dono do imóvel é quem pratica a ação, mas ele não é o sujeito da oração, ele é o “agente da (voz) passiva”.

Na primeira estrutura (com o “se”), não se usa o agente da passiva na língua moderna. A omissão do agente (da passiva) leva à percepção de que o sujeito está indeterminado, quando, na verdade, o sujeito está determinado, mas é passivo (o que não se conhece é o agente da ação – quem aluga uma sala?).

A falsa percepção de que o sujeito sempre pratica uma ação pode ser responsável pela dificuldade que muitos têm de entender essa questão. Vale reforçar que o sujeito nem sempre pratica a ação. Na voz passiva, ele sofre a ação e quem a pratica é um termo acessório, chamado de “agente da passiva”. Grosso modo, a gramática tradicional considera “acessório” o termo que pode ser omitido da frase sem prejuízo de seu sentido. Ao dizer que uma sala é alugada, não é necessário explicitar quem a aluga.

Fazemos uso da voz passiva quando pretendemos enfatizar o resultado de uma ação (A energia elétrica será cortada durante a madrugada; O dinheiro foi distribuído entre os participantes; A mansão é vigiada durante o dia). Muitas vezes, não sentimos a necessidade de dizer quem pratica a ação – quem vai cortar a energia, quem distribuiu o dinheiro, quem vigia a mansão). Caso seja importante explicitar o autor da ação, basta usar o agente da passiva (O dinheiro foi distribuído por ele).

“Eu quero indeterminar o sujeito!”

É muito comum que as pessoas se recusem a aceitar que é passiva uma construção como “Doou-se uma vultosa quantia ao candidato”. Dizem que querem indeterminar o sujeito porque não se sabe quem doou etc. Ora, querem indeterminar o agente da ação de doar – e isso está feito, pois a frase não contém agente da passiva. É uma questão de dar nomes aos bois (pelo menos por enquanto). Com o verbo “doar” (transitivo direto), não se usa índice de indeterminação do sujeito. “E se eu quiser usar para dar o sentido de sujeito indeterminado?” Parece “nonsense”.

O problema se resolveria se a pessoa deixasse de usar o termo “sujeito”. Afinal, ela quer indeterminar o agente da ação de doar. E assim será. Que ocorrerá, porém, se, no lugar de “uma vultosa quantia”, decidirmos dizer “milhões de reais” (plural)?

Então diremos “Doaram-se milhões de reais ao candidato”. Quem doou? Não sabemos, pois não há agente da passiva. Sujeito existe: “milhões de reais” – um sujeito que não praticou a ação (que não se doou a si mesmo!), mas que sofreu a ação de “ser doado” por alguém que não se deu a conhecer no contexto (o agente da passiva omitido).

Quem insistir em achar que é o sujeito de doar que está indeterminado (não o agente da passiva que está omitido) vai dizer “Doou-se milhões de reais ao candidato”. Está certo? Do ponto de vista da tradição da língua, ponto de vista assumido neste texto, a resposta é negativa.

A língua muda, certo?

Sim, a língua muda, mas só podemos falar em mudança quando há um consenso (tácito) sobre isso. Enquanto houver quem use uma construção (em geral, porque aprendeu em aulas de português ou porque absorveu o conhecimento da leitura de textos escritos no registro formal), não se poderá aboli-la como se ela fosse o erro. Há quem, na ânsia de proclamar a mudança em nome de uma visão científica da língua, acabe por determinar o novo “certo” (“então o certo é aluga-se casas, professor?”). Na prática, as duas construções vão disputar a preferência dos falantes até que uma das duas desapareça.

 

 

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Puristas de ontem e de hoje https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/02/19/puristas-de-ontem-e-de-hoje/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/02/19/puristas-de-ontem-e-de-hoje/#comments Sun, 19 Feb 2017 16:07:07 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1155 Antigamente existiam os puristas propriamente ditos, aqueles indivíduos que tomavam para si a missão de defender o idioma, o que se traduzia no incansável combate à influência estrangeira e na busca de um estilo elegante e correto. Eram geralmente pessoas detentoras de erudição, como o conhecimento de grego e latim.

Para essa turma, o princípio da correção gramatical nem de longe admitiria o grau de controvérsia que hoje se vê. No máximo, as tertúlias de gramáticos girariam em torno do uso que os clássicos fizeram de certa palavra ou construção sintática. O conceito de elegância, ligado ao de correção e de emprego de figuras de linguagem, é sempre difícil de definir, mas soava como um acordo tácito entre aqueles que pretendiam fazer bom uso da língua. Imitar os bons autores era, assim, caminhar na direção correta, sem sobressaltos e hesitações.

Vale notar que, do ponto de vista dos puristas, o grego e o latim sempre foram os legítimos fornecedores de elementos para compor palavras. Um bom exemplo disso está no gentílico “soteropolitano”, atribuído a quem nasce em Salvador. Chega-se a esse termo partindo da helenização do nome da cidade (de Salvador faz-se, com os elementos gregos “sotero” e “pólis”, Soterópolis, que quer dizer “cidade do Salvador”). De “Soterópolis”, derivamos “soteropolitano”, o adjetivo usado para os baianos da capital do estado.

Coisa capaz de irritar um purista, no entanto, é o chamado hibridismo, ou seja, a palavra formada de elementos de línguas diferentes, como televisão (que chega ao português pelo francês “télévision” ou pelo inglês “television”, mas contém o elemento grego “tele-” unido ao elemento latino “-visão”), burocracia (junção do francês “bureau” com o grego “-cracia”) e sambódromo (de “samba”, do banto, e “-dromo”, do grego), vocábulo criado em 1984 pelo saudoso Darcy Ribeiro, cuja morte acaba de completar 20 anos. Darcy era vice-governador do Rio na ocasião, quando idealizou a obra, que, projetada por Oscar Niemeyer, recebeu o nome de passarela Professor Darcy Ribeiro, mas ficou conhecida mesmo como “sambódromo”.

O purista repele com veemência essas palavras mestiças, bem como as forasteiras, os malfalados estrangeirismos, que “descaracterizam a língua”. O mesmo vale para os neologismos e as gírias. O que nutre a atitude purista é um ideal de conservação da língua, esta vista como um patrimônio que deve ser reverenciado e protegido de seus inimigos. O pressuposto dessa visão é que a língua em si é algo externo aos falantes.

Ocorre que as coisas não são tão simples assim. A língua é um bem coletivo que pertence a quem a fala, a todos e a cada um (mesmo quem não sabe escrever sabe falar e articular a gramática da língua). Hoje, com a popularização dos conhecimentos vindos da linguística, a ciência da linguagem, qualquer pessoa medianamente informada sabe que a língua é dinâmica e que as transformações são parte de sua permanência. Quem decide se um neologismo ou um estrangeirismo entra definitivamente na língua são os falantes, ou seja, o uso e, somente depois da consagração pelo uso, o termo é incorporado ao dicionário. Em suma, o que está em uso vale, o que está em desuso não vale mais – é o arcaísmo, aquela palavra que saiu de cena.

Como se vê, é vã a luta dos puristas. Eles não conseguem barrar a entrada dos estrangeirismos, embora talvez desejassem erguer um muro imaginário para confinar a última flor do Lácio, inculta e bela, em algum lugar de um suposto passado de esplendor e pureza, impermeável às inovações e às mudanças.

A beleza da expressão era, para eles, associada, entre outras coisas, a certos malabarismos sintáticos. Vejam-se os versos iniciais do Hino Nacional Brasileiro, que muita gente sabe de cor, mas nunca entendeu: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/ De um povo heroico o brado retumbante (As margens plácidas do [rio] Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico). Nos nossos dias, dificilmente esse tipo de construção seria visto como melhor do que outros – até porque é difícil de compreender. Nem está hoje a beleza do idioma em formas que caíram em desuso, como a mesóclise no português do Brasil, que, embora esteja aposentada, de vez em quando dá o ar da graça para enfeitar algum discurso de ocasião, que, afinal, soa antes postiço que propriamente belo.

É voz corrente que de médico e de louco todo o mundo tem um pouco. Parece que de purista também. Não falta gente moderna, bem informada, que trava discussões em redes sociais fazendo discurso de fundo purista. A figura de retórica predileta desse pessoal é a preterição, ou seja, aquele volteio de palavras que se usa para dizer que não se vai fazer aquilo que efetivamente se está fazendo.

Primeiramente, a pessoa critica os puristas, que são retrógrados, conservadores e não conhecem linguística; depois, pode até acrescentar explicações sobre o dinamismo da língua e mencionar a grande influência que o português recebeu do francês (os “galicismos”, que provocavam pruridos nos puristas de antanho e hoje soam como se fossem português puro-sangue). Nem sempre se lembram, no entanto, de que, provavelmente, se banidos da língua todos os estrangeirismos, não nos sobrariam um alfinete ou uma xícara de açúcar.

Muito bem. Depois de se apresentarem como conhecedores dos pressupostos (básicos) da linguística (grosso modo, o de que a língua muda e o de que não existe propriamente erro gramatical), vestem a casaca e desandam a vociferar contra o uso de estrangeirismos, vistos como erros de tradução cometidos por quem sabe mal o inglês, o que é, mais ou menos, digamos, uma vergonha. Citam-se os termos traduzidos incorretamente para, em seguida, mostrar a tradução correta em bom português.

Então estamos, na maior parte das vezes, diante de puristas disfarçados. A língua é indomesticável, mas certo modismo é intolerável, grosseiro, deselegante…, ou seja, vamos tentar domesticá-la.  O maior problema dessas aulas de tradução é que a questão nunca é tão simples quanto se afigura. Não vamos defender que a melhor tradução seja a que está mais próxima da cognação, prática muito comum que, por vezes, leva a impropriedades como confundir silício (“silicon”) com silicone. Nem sempre, porém, o que está em jogo é esse tipo de problema (os chamados “falsos cognatos”).

A cognação, de fato, leva à tradução por semelhança (“empoderar”, de “empower”) ou mesmo à adaptação de uma forma estrangeira (“printar”, de “print”, em vez de “imprimir”, por exemplo) e até à ressignificação de um termo, que se incorpora na língua como empréstimo semântico. É esse o caso de “submissão” (do inglês “submission”), largamente usado no meio acadêmico no sentido de “apresentar um trabalho para o exame ou apreciação de alguém”, emprego, aliás, já defendido por teóricos da tradução (veja-se a esse respeito o “Guia Prático de Tradução Inglesa”, de Agenor Soares dos Santos). O verbo “submeter” já se registra em dicionários com esse mesmo sentido; inserir o registro do substantivo “submissão” com explicitação desse significado é mera formalidade.

Em textos traduzidos do inglês, é muito comum vermos pessoas “devastadas” (“devastated”) diante de um fato trágico; quando o texto é feito em português, geralmente as pessoas ficam “arrasadas” ou “desoladas” diante do mesmo tipo de situação (e poderiam ficar “consternadas” ou “pesarosas”). É evidente que há influência da cognação, mas podemos falar em erro? “Desolado”, empregado nesse sentido, tem provável origem no francês “désolé”; “arrasar” hoje tem vários significados, inclusive o de sair-se muito bem em alguma atividade. Qual é o termo melhor?

O inglês é acolhido com tanto entusiasmo porque está associado à ideia de modernidade, de tecnologia, de comunicação sem fronteiras, uma gama de valores que se corporificam nas escolhas lexicais. É o caso de constatar o fato, não de julgá-lo.  Coibir o estrangeirismo, em si, não muda o que as pessoas sentem e pensam. É por isso que não adianta fazer qualquer tipo de lei que proíba o seu uso, como já se tentou por aqui e, diga-se de passagem, não só por aqui. Essa é uma das facetas, talvez a mais ingênua, da xenofobia.

Se os puristas da antiga tradição tinham lá suas convicções, os novos, em geral, nestes tempos fluidos, têm outras motivações: ou estão tentando exibir algum grau de erudição (não mais conhecimento de grego ou latim, mas de inglês mesmo), ou, coisa pior, estão tentando atingir aqueles de cujas posições ideológicas discordam.

As manifestações de indignação diante dos erros de português ou de alguma falta de fluência oral de um político ou de qualquer outra personalidade pública vêm quase sempre daqueles que divergem das ideias dessas pessoas ou do espectro ideológico a que elas pertencem, quando não são fruto do mais raso dos preconceitos, aquele que se volta contra quem teve menos oportunidades na vida.

Quando é o outro que usa estrangeirismo, vem à tona o Policarpo Quaresma que cada um guarda em si; quando é o outro que comete o erro de português, vem à tona o Rui Barbosa que quase ninguém leu, mas que permanece no imaginário como repositório da correção gramatical.

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Polaridade na língua: à guisa de retrospectiva https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/12/30/polaridade-na-lingua-a-guisa-de-retrospectiva/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/12/30/polaridade-na-lingua-a-guisa-de-retrospectiva/#comments Fri, 30 Dec 2016 14:34:00 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1138 À guisa de retrospectiva, 2016 foi um ano da polaridade também nos assuntos de língua. Não por acaso, já que a língua manifesta nossos anseios, preocupações, sentimentos e, sobretudo, nossa visão de mundo. A divisão está na sociedade e, como não poderia deixar de ser, na língua.

Na semântica, o principal corte apareceu na escolha entre os termos “impeachment” e “golpe” para definir a troca de mãos ocorrida na Presidência do país. A opção por um ou outro passa pela crença ou não na legitimidade do processo. Dito isso, o mais é o que se sabe.

Não se chegará a consenso sobre isso, pelo menos por ora. Vale dizer que os militares chamaram 1964 de “revolução” (e ainda há quem assim se reporte ao fato), mas o termo “golpe” ganhou a imprensa e os livros de história. portugues em dia“Revolução”, nesse caso, é um termo claramente marcado do ponto de vista ideológico.

A polaridade de hoje não parece que vá ser superada tão cedo. Teremos de conviver com ela e com o possível insucesso dos discursos bem-intencionados que tomam as redes sociais no fim do ano, os quais, cheios da alegria do espírito natalino, manifestam o desejo de confraternização independentemente da visão política de cada um. Enquanto a desigualdade existir (e, com ela, a injustiça), haverá polaridade, sobretudo num ambiente de grande circulação de informação, como o propiciado pela internet.

Nada indica que vá ser possível tomar decisões ditas “impopulares”, mais ou menos camufladas pelo discurso algo simplista de que visam ao “bem do país”, sem que haja oposição.  O adjetivo “impopular” e a expressão “para o bem do país”, juntos, exprimem a ideia de que estamos diante de “males necessários”. No mínimo, estamos diante de eufemismos. “Impopular” é aquilo que desagrada ao povo, que contraria a sua expectativa (cf. “Houaiss”). Para uns, “impopular” é basicamente “antidemocrático”, mas, para outros, poderá soar como “austero”.

A propósito, o presidente Michel Temer disse não se importar com a sua impopularidade. Para uns, está assumindo sua falta de compromisso com a população, mas, para outros, está dando um sinal de seriedade, de uma suposta capacidade de resistir ao populismo fácil. Vale a leitura do texto de Bernardo Mello Franco, publicado em 23 de dezembro último na Folha, em que o articulista faz uma reflexão sobre isso.

O “bem do país” deveria ser o bem das pessoas, mas, ao substituir o concreto pelo abstrato (“pessoas” por “país”), o referido “bem”, supostamente advindo das medidas “amargas”, desloca-se para um plano vago, que não coincide necessariamente com o concreto (quem exatamente será o “país”, o qual se beneficia das medidas impopulares?).  A escolha dos termos, como se vê, não é gratuita.

O ano ainda requentou a velha questão do uso do termo “presidenta”, no feminino, quando a ministra Cármen Lúcia, ao assumir a presidência do STF (Supremo Tribunal Federal), afirmou, em resposta a uma indagação do ministro Ricardo Lewandowski, que não queria ser chamada dessa forma por ter estudado a língua portuguesa (“Eu fui estudante e eu sou amante da língua portuguesa. Acho que o cargo é de presidente, né?”).

Mais uma vez, o que vemos é a marcação ideológica do termo. Talvez a ministra não soubesse que a palavra existe há muito tempo na língua (o dicionário “Houaiss” registra o ano de 1812 como data de surgimento documentado da palavra). Muita gente que passa o dia na internet recebendo informação pensa que foi o PT que inventou a palavra “presidenta”. Seria bom, de uma vez por todas, esquecer essa bobagem.

De todo modo, o uso do termo no século 21 é entendido como parte de uma ação afirmativa de gênero. Ele marcava o fato de termos tido, pela primeira vez, uma mulher no exercício da Presidência da República. É claro que ações afirmativas têm, de fato, um viés progressista, pois partem do pressuposto de que existe preconceito – racial, de gênero, social etc. – e de que é preciso atuar de maneira proativa, dia após dia, para ativar a percepção das pessoas e estimular a superação de injustiças vistas como “atitudes naturais”.  Quem acredita que não exista preconceito, que essa conversa não passe de “mimimi” (palavra onomatopaica que ganhou as redes sociais), certamente repugna qualquer ação desse teor.

Em geral, ao que tudo indica, quem escolhe usar “impeachment” (não “golpe”) igualmente não admite usar o termo “presidenta”, certo?  Até aí, tudo bem. A opção pelo termo uniforme (“presidente”), no entanto, é justificada como defesa da correção gramatical, como se esta fosse um corpo de leis impermeável à ideologia. Aviso: a correção gramatical (aqui entendida como a “norma culta”) admite “a presidente” e “a presidenta”. A escolha é de cada um. Tem viés? Toda escolha tem viés. A esta altura, isso já deve estar suficientemente claro.

A língua portuguesa também ganhou a cena com a mesóclise do presidente, ainda interino, Michel Temer. O emprego da forma pouco usual no Brasil não passou despercebido. Acionou, de imediato, a percepção de que estávamos diante de uma pessoa culta, que sabia se comportar linguisticamente.

Não faltaram comparações com o estilo dos governantes anteriores (Lula, que fala como o povo, e Dilma, que, embora formal, tropeça na expressão oral), e Temer, à primeira vista, pareceu ter saído bem na foto. Pelo menos em alguns reavivou um vago sentimento de orgulho da correção gramatical, espécie de valor perdido nos novos tempos. Nas redes sociais, porém, prevaleceu o aspecto cômico da escolha da estrutura gramatical, um tanto afetada, distante da fala da maioria da população, inclusive daquela fatia que domina a norma culta do idioma.

Houve quem visse com bons olhos o que se considerou um estímulo ao uso do português culto (finalmente, alguém que sabe falar o português!), o que denota uma visão conservadora da língua, esta compreendida como um repositório de estruturas e palavras imutáveis.

O fato é que tudo passou a ser filtrado pela polaridade e, nesse contexto, um voto de confiança no novo presidente passaria pela aprovação de seu português (!). Em língua, porém, as coisas não são tão simples assim. Nem que o presidente fosse um líder carismático, coisa que nem de longe ele é, a mesóclise ressuscitaria entre os falantes brasileiros. O máximo que o fato produziu, em suma, foi um sem-número de piadas nas redes sociais, coisa que nem é novidade — afinal, dificilmente Temer vai conseguir desbancar Jânio Quadros seja no uso do português, seja no anedotário.

Outro mimimi de internet foi a mudança da palavra “paraolimpíada” (e seus derivados) para “paralimpíada” e derivados (sem o “o” de olimpíada, de Olimpo) sob o argumento da aproximação com o inglês e o subargumento de que o termo é uma marca comercial, o que, de pronto, libera ou legitima a sua transfiguração.

O problema é que existia a palavra “paraolimpíada” para denominar exatamente o mesmo evento, e os atletas, por sua vez, eram “paraolímpicos”. Em língua, como os linguistas não se cansam de ensinar, as mudanças são fruto do uso, que, soberano, leva à consolidação de uma forma nova.

Os adeptos da inovação acreditam que as pessoas vão usar (e já estejam usando) porque “agora é assim”, já que “ficou decidido pelo Comitê Olímpico Brasileiro” (ou Comitê Límpico Brasileiro?).  Sendo assim, passam a usar a forma e o uso a legitima.  Não deixa de ser um caminho, mas a mudança foi feita em gabinete, não de modo espontâneo pelos usuários da língua, o que dá margem à discussão. Como a inovação já está dicionarizada – à prova, portanto, de contestação (será?) –, para muita gente é fato consumado.

Muito mais simples seria ter adotado o nome do evento em inglês, língua hoje universal. Estaria dado o recado de que o evento é internacional e, portanto, precisa falar inglês. Bem mais simples.

A população aceitou de bom grado trocar paraolimpíada por paralimpíada e paraolímpico por paralímpico para satisfazer a interesses do marketing, mas não parece reagir com tanta naturalidade a demandas linguísticas vindas de ações afirmativas de inclusão, muitas vezes vistas como simples “mimimi”.  Eis um tema que merece mais desenvolvimento e discussão, ao qual voltaremos no ano vindouro.

Vale anotar, acerca dessa questão, que a ministra Cármen Lúcia fez um pedido público de desculpas pelo uso do termo “autista”. Para afiançar que, no julgamento da Operação Lava Jato, o STF demonstraria o mesmo empenho revelado no julgamento do “mensalão”, ela tinha afirmado que os ministros do STF não eram “autistas”. Diante da repercussão negativa, reconheceu a inadequação do uso.  recomendados thais 2

Não poderia deixar de encerrar este texto com a indicação do livro  “Língua e Sociedade Partidas: a Polarização Sociolinguística do Brasil” (Editora Contexto), do professor Dante Lucchesi, que brindou este blog com uma instigante entrevista por ocasião dos debates sobre o Acordo Ortográfico.

A polarização de que fala Lucchesi é a que instaura o preconceito linguístico. Enquanto certa elite vê nas formas lusitanas o padrão de bom uso da língua, as populações que se expressam de outras formas são estigmatizadas, reforçando o apartheid social.

O trabalho de Lucchesi, fruto de longo trabalho de pesquisa, não se contenta em constatar um estado de coisas. O autor tem propostas concretas de ensino da língua. Longe de certos radicalismos, considera a importância de ensinar a norma culta, mas sem o ranço do preconceito. Com um texto envolvente, o autor convida professores e outros interessados no tema a desenvolver uma visão científica da língua, livre, portanto, respostas fáceis, que geralmente não nos levam muito longe. Não à toa, acabou de ganhar o Prêmio Jabuti.

Que 2017 traga esperança e alegria a todos!

 

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