Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O mistério da grafia de ‘intubação’ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/05/13/o-misterio-da-grafia-de-intubacao/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/05/13/o-misterio-da-grafia-de-intubacao/#respond Wed, 13 May 2020 19:52:00 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/Blog-Intubação.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1490 Em meio ao noticiário da pandemia, tem sido recorrente uma questão de ortografia que talvez em outro momento passasse despercebida. Ganha frequência e importância o uso dos termos “intubar” e “intubação”, cujo “i” inicial parece um enigma para alguns leitores. Por que não “entubar” e “entubação”?

É possível que muita gente associe o prefixo “i(n/m/r)-” apenas à ideia de negação (legal/ ilegal, feliz/ infeliz, provável/ improvável, real/ irreal etc.). Ocorre, porém, que o prefixo “i(n/m)-”, entre outros sentidos, também pode indicar movimento para dentro, caso em que se opõe ao prefixo “e(x)-”, como atestam, por exemplo, os seguintes pares opositivos: interno/ externo, importar/ exportar, imigrar/ emigrar, imergir/ emergir, incluir/ excluir, inclusivo/ exclusivo, inspirar/ expirar, intubar/ extubar, intubação/ extubação.

Em resumo, usa-se o prefixo “i-” com dois sentidos, o de negação (útil/ inútil, legível/ ilegível) e o diretivo, cuja origem está no advérbio-preposição do latim “in”.  Este último tem o sentido básico de “entrada”, ou seja, de movimento para dentro (inserir), que pode ser ampliado para o de aproximação (inerente), de hostilidade, esta entendida como um tipo de aproximação (insurgir), ou mesmo para o de avesso, tipo específico de movimento para dentro (inverter), e ainda para o de mudança de estado (intumescer).

Esse segundo “in-”, denotador de movimento para dentro, está na origem da variante popular “en-”, que nos dá um grande número de termos, entre os quais o próprio verbo “entrar” (do latim “intrare”). É também essa variante a que mais aparece nas formações que indicam mudança de estado (entardecer, envelhecer, enfastiar-se, endividar-se, ensandecer) – diga-se, aliás, uma formação com grande fertilidade na língua hoje, capaz de gerar neologismos.

Quem chegou até aqui já observou que o par in-/en-, pelo menos em alguns casos, sugere a oposição erudito/ popular. É por isso que certos termos iniciados por “in-”, calcados na forma latina, não têm o sentido tão claro para o falante do português.

No âmbito da medicina, a tendência é optar pelas formas eruditas (infarto/ infartar em vez de enfarte/ enfartar; intubar/ intubação em vez de entubar/ entubação). Vale lembrar que o latim é a principal fonte da nomenclatura científica internacional.

Existem, em português, com direito a registro em dicionários, as formas “entubar” e “entubação”, que são variantes populares de “intubar” e “intubação”. Ocorre, porém, que as grafias com “e-” inicial apresentam outros significados para além do sentido médico de introduzir tubo na traqueia para criar uma passagem de ar.

“Entubar” também quer dizer “dar formato de tubo” (Ele entubou a folha de papel), “entrar no tubo e nele surfar” (O surfista vai entubar aquela onda?) e ainda, na condição de tabuísmo, “manter coito anal”.

Em inglês, o termo é “intubation”; em italiano, é “intubazione”; em espanhol, “intubación”; em francês, “intubation”; em holandês, é “intubatie”; em romeno, “intubatie”; em dinamarquês, “intubation”; em alemão, “intubation”. Enfim, todos remetem ao latim.

Dicionários como “Houaiss” e “Priberam” admitem as duas grafias (intubação e entubação), “Aulete” (em versão eletrônica) revisou seu verbete original “intubação” e passou a admitir “entubação”. “Aurélio”, em sua quinta edição, distingue “entubar” (dar feição de tubo a) de “intubar” (Med. introduzir cânula na traqueia de), não admitindo, como se vê, a forma “entubar” no sentido médico.

Essa oposição, que o “Aurélio” reforça, é a mesma que se mantém no par incubar/ encubar. “Incubar” é chocar (incubar ovos) ou possuir em estado latente (incubar vírus, incubar ideias); “encubar” é “recolher em cuba” (encubar o vinho). Quanto a esses termos, os dicionários estão todos de acordo: “incubar” é uma coisa e “encubar” é outra.

Quanto a “impostar” e “empostar”, esta segunda já se fixou como variante da primeira, que é idêntica à grafia italiana (impostar a voz). “Intitular” continua com “i”, sem variante reconhecida em dicionários.

Vemos, portanto, que, em alguns casos, “in-” e “en/m-” são apenas variantes, que sinalizam uso erudito ou popular, mas, em outros, levam a termos de diferentes significados. A escolha de “intubação” pela Folha reflete a escolha feita no âmbito da medicina.

PS. As aspas simples (no lugar das aspas duplas) do título são empregadas por razões técnicas, alheias à vontade da autora. Sabemos que esse não é o uso correto em língua portuguesa, mas assim o fazemos para que o texto não perca a configuração em determinados dispositivos. Agradecemos a compreensão.

 

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A ortografia também é gente https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/05/05/a-ortografia-tambem-e-gente/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/05/05/a-ortografia-tambem-e-gente/#respond Tue, 05 May 2020 19:46:28 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/Dicionário-Fábio-Braga-Folhapress.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1484 No Dia Internacional da Língua Portuguesa, a Folha lançou na sua página do Instagram uma espécie de enquete entre os seus seguidores, convidados a dizer qual é a sua expressão ou gíria preferida da língua portuguesa.

O resultado, como não poderia deixar de ser, foi muito divertido. Internautas de várias regiões do país contribuíram com saborosos regionalismos, como “bicho tabacudo”, que um deles afirma ser o modo de se referir a uma pessoa engraçada em Pernambuco, onde também se diz “vou chegar” quando se está prestes a ir embora de algum lugar.  É de lá também – e de outros estados do Nordeste – o uso de “arrodear”, variante mais antiga de “rodear”, que significa “andar em volta de” (na pronúncia local, o “o” se aproxima do “u”, sugerindo algo como “arrudeia”, mas a grafia permanece com “o”).

Também apareceu a palavra “pavulagem”, que, segundo o dicionário “Houaiss”, é de uso típico do Amazonas, onde se alterna com “pabulagem”. O termo é usado no sentido de “fanfarrice”, ou de pessoa dada a fazer bravatas. Nesse sentido, aparentemente deriva de “pábulo”/”pávulo”, formas derivadas de um diminutivo erudito de “pavão”, o que explicaria a ideia de “gabola”, “exibido”.  Vale notar que a ave dá origem também ao verbo “pavonear” (ou “pavonear-se”), de sentido semelhante.

Do mesmo leitor que enviou “pavulagem” veio “pitiú”, que, originalmente uma tartaruga do Amazonas, ganhou o sentido de “fedor”, “cheiro forte”, “odor desagradável”. Do Rio Grande do Sul foi lembrada a frase “Preteou o olho da gateada”, que é a forma gaúcha de dizer que “agora a porca torce o rabo” ou “a cobra vai fumar”.

De Minas Gerais, foi lembrado o célebre “trem”, que é marca registrada da região, além da interjeição típica dos mineiros, o igualmente célebre “uai”, que rivaliza em fama pelo país inteiro com o saboroso “oxente” do Nordeste, muitas vezes reduzido para “oxe”. As duas interjeições são formas de registrar espanto ou surpresa. “Oxente” vem de “ó gentes”, num processo fonético semelhante ao da forma “vixe” (de “vige”, Virgem Maria), que do Nordeste ganhou o sul do país com as levas migratórias que atravessaram o país. Em terras gaúchas, no entanto, para exprimir a mesma ideia, usam-se as interjeições “tchê” ou “bá” (esta também grafada “bah”), que os leitores não nos deixaram esquecer.

Houve quem se lembrasse de trazer uma expressão lusitana, que os portugueses usam quando querem se livrar de alguém que não os deixa trabalhar: “desampara-me a loja”.

Muitos dos usuários do Instagram que entraram na brincadeira lembraram ditados populares, como “Pau que nasce torto nunca se endireita”, “Diz-me com quem andas e te direi quem és”, “Cada cachorro que lamba sua caceta” [sic], “Cada um com seu cada um”, “Cada macaco no seu galho”, “Não há bela sem senão”, “O prevenido morreu de velho”, e houve um que se lembrou da frase de são Francisco de Assis, “É dando que se recebe”, cujo sentido original estimulava a troca de bens espirituais, que passou a ser usada, em sentido pejorativo, para fazer referência à troca de favores na política.

Algumas gírias muito conhecidas não poderiam deixar de aparecer. Foi o caso de “bicho”, “bacana”, “supimpa”, “fazer média” ou “falar groselha”. A palavra “meu”, frequente entre os paulistanos como forma de identificar o interlocutor em uma conversa, também foi lembrada. “Neca de pitibiriba” (ou “necas de pitibiriba”), para indicar negação enfática (“neca” é uma forma expressiva de “não”; “neca de pitibiriba” é “absolutamente nada”), e “putz grila” (ou simplesmente “putz”), que provavelmente deriva de um emprego interjetivo de “puta” (“puta que pariu!”), estiveram presentes.

Vale observar que alguns termos são fruto de nossa tendência a substituir uma palavra chula por outra que a deixe subentendida. É possivelmente a alteração eufêmica o que explica expressões como “bom para caramba” ou “bom para cachorro”, como ocorre com “paca” (no sentido de “para cacete” ou “para caralho”).

Apareceram ainda expressões que podem ser consideradas espécies de comandos pragmáticos, empregadas no diálogo: “Vá ver se eu estou na esquina!”, “Fui!”, “Eu, hein?”, “Hoje, só amanhã!”. Outras são lembranças do linguajar dos mais antigos, como “dar com os burros n’água”, “amigo da onça”, “fogo na roupa” ou “no tempo da Maria Caxuxa”.

Típicas do universo das redes sociais são as formas com grafia fonética (caso de “perereka” e “pacabá”), as hashtags, percebidas como verdadeiras palavras (por exemplo, #vaipassar, em clara alusão à pandemia de Covid-19), e termos híbridos em cuja base está o trocadilho, como “familícia”, “desMOROnando” ou “obriGADO” (seguida da figura de um boi), que dispensam explicações, além, é claro, de “bolsominion”, de sentido pejorativo (com base no inglês “minion”, “servo”, “lacaio”, “subordinado”), que é o seguidor acrítico de Jair Bolsonaro. Até mesmo um “e daí?” surgiu, em franco diálogo com o presidente da República, que recentemente usou a expressão de desdém ao comentar o fato de o Brasil já ter mais mortes decorrentes da Covid-19 que a China.

Alguns leitores levantaram questões linguísticas, como aquele que estranha um sujeito valentão, forte, brigão, com “excesso de masculinidade”, ser denominado “cabra-macho”, já que “cabra” é a fêmea do bode, e outro que traz uma explicação etimológica do significado do verbo “escafeder-se”.

Ao primeiro, vale dizer que o termo “cabra”, nessa acepção, certamente não se refere à característica de bravura do animal, mas ao fato de “cabra” denominar o “mestiço indefinido, de índio, negro ou branco, de pele escura” (segundo o dicionário “Houaiss”); o mesmo dicionário também informa ser “cabra” um “epíteto injurioso atribuído aos brasileiros pelos portugueses na época das lutas de emancipação política”).

Ao segundo, que conta a história de um padre jesuíta que, na época da catequização dos índios, fazia suas necessidades numa moita e, surpreendido por canibais, teria fugido em meio à operação, dando origem ao termo “escafeder-se” (fugir apressadamente), cabe apenas salientar que a história, embora crível, carece de comprovação. Os dicionários, por ora, atestam que o termo tem origem controversa. As etimologias populares geralmente são muito saborosas, rendem boas histórias, mas nem sempre são verdadeiras.

A palavra “saudade” surgiu várias vezes e, como se poderia esperar, acompanhada da ideia de que só a língua portuguesa consegue expressar esse sentimento. Difícil dizer isso, mas o fato é que a origem do termo também acolhe alguma dúvida. É mais provável que venha do latim solĭtas,ātis  (solidão, desamparo, retiro, unidade), mas pode ter sofrido influência do árabe ‘saudâ’ (melancolia, tristeza).

Saber se biscoito é bolacha e vice-versa, velho debate do eixo Rio-São Paulo, também foi um tema trazido ao Instagram. Alguém se lembrou de evocar um dos maiores poetas da língua portuguesa, Fernando Pessoa, autor da frase “Minha pátria é a língua portuguesa”, extraída do “Livro do Desassossego”.

Foi nessa tão conhecida frase que se inspirou Caetano Veloso quando compôs “Língua”, sua grande homenagem ao nosso idioma. “Quero sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”, entoa o músico brasileiro, fazendo reverberar toda a tradição da língua, que nos une numa mesma história.

Finalmente, alguém sugeriu ao “nosso brilhante gestor educacional” (@abrahamweintraub) que este lhe seria um dia propício para uma reflexão. Como diria Fernando Pessoa: “Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida”.

Vida longa à língua portuguesa! Cabe a nós, que nela aprendemos a amar e a sonhar, zelar por ela. A melhor maneira de fazer isso é usá-la sempre e muito, em toda a sua potencialidade.

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Tema constante de textos e conversas, pandemia muda vocabulário cotidiano    https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/05/03/tema-constante-de-textos-e-conversas-pandemia-impacta-vocabulario/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/05/03/tema-constante-de-textos-e-conversas-pandemia-impacta-vocabulario/#respond Sun, 03 May 2020 10:00:23 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/Bolsonaro-máscara-Adriano-Machado-Reuters.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1474 Coronavírus, Covid-19, pandemia, epidemia, quarentena, distanciamento social, “lockdown”, achatamento da curva epidemiológica, pico da pandemia, subnotificação, taxa de ocupação, comorbidade, vacina, cloroquina, álcool em gel, máscara, respirador, ventilador, teste, testagem, leito, UTI, morte, enterro, coveiro, sepultador, profissionais da saúde, home office.

A pandemia do coronavírus mudou a vida das pessoas nas mais diversas dimensões, inclusive no vocabulário. Os textos da imprensa, as conversas do dia a dia, o assunto das “lives”, tudo passou a girar em torno de um mesmo tema e, consequentemente, de um conjunto muito específico de palavras e expressões. Alguém consegue falar de outra coisa?

Quem poderia imaginar que o nome científico de um vírus seria pronunciado dia após dia por toda a população, não apenas por médicos e cientistas? O termo “coronavírus”, concebido em razão da semelhança do formato do micro-organismo com o de uma coroa (em latim, “corona”), está nos dicionários e, como se vê, não é uma palavra nova, pois denomina uma família de vírus já conhecida dos cientistas. Por esse motivo é que este que ora acomete um número crescente de pessoas, embora tenha um nome oficial (Sars-CoV-2, ou seja, coronavírus 2 da síndrome respiratória aguda grave), é chamado de “novo coronavírus”.

Covid-19: nome internacional

A doença transmitida pelo patógeno veio a chamar-se Covid-19, um termo de uso internacional formado das sílabas iniciais de “corona” e de “vírus”, acrescidas da letra “d”, de “disease” (“doença”, em inglês), e da dezena final de 2019, ano em que foi registrado seu primeiro caso.

Não propriamente uma sigla, mas antes um acrônimo, Covid-19, em português, acolhe, de preferência, o gênero gramatical feminino. O dicionário brasileiro “Houaiss”, em sua versão eletrônica, e o português “Priberam” já o incorporaram às respectivas bases de dados e sugerem o feminino, que se apoia na tradução “doença do coronavírus”. Em inglês, a questão não se apresenta, mas, em línguas como o português, o francês, ou o espanhol, entre outras, é preciso definir o gênero.

A RAE (Real Academia Espanhola), instituição similar à nossa Academia Brasileira de Letras, pôs o tema em discussão e, por enquanto, o nome da doença ainda não foi incorporado oficialmente ao léxico espanhol.

É bom que se diga que o “Houaiss” registra Covid-19 também como masculino, porém na acepção de “cepa do coronavírus” causadora da infecção de mesmo nome. O dicionário americano “Merriam-Webster”, que já incluiu o verbete Covid-19, também dá ao termo os dois significados. No inglês “Cambridge”, o verbete ganhou apenas o sentido de “doença”. O francês “Larousse” usa o gênero masculino ao mencionar Covid-19 no verbete “coronavirus”, tomando-o como um tipo de vírus. Embora o “d” de Covid-19 indique ser o termo o nome da infecção, há certa tendência a expandir o seu uso também para o novo coronavírus.

O nome foi criado pelo Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus, que teve a preocupação de propor um termo que fosse pronunciável em várias línguas e que evitasse a fixação de alguma denominação com potencial de estigmatizar povos, regiões, grupos ou mesmo animais. A memória de casos anteriores, como o da gripe espanhola, que, aliás, não se originou na Espanha, ou o da chamada gripe suína, que provocou o abate desnecessário de animais em larga escala, esteve no centro da discussão.

Ainda que se tenha chegado a um nome internacional, que tem o mérito de identificar com neutralidade e uniformidade uma doença que atinge o planeta como um todo, o verbete Covid-19 do “Merriam-Webster” inclui uma nota que informa ter o vírus sido identificado pela primeira vez na cidade de Wuhan, na China, em dezembro de 2019, dado que não aparece nas outras obras consultadas.

Epidemia ou pandemia?

Estar presente em todas as partes do mundo é o que faz de uma epidemia uma “pandemia”. A diferença entre um termo e outro, ambos de origem grega, está ligada à extensão do quadro de disseminação. Quando se espalha por países de todos os continentes, a epidemia passa à categoria de pandemia. Foi por isso que, até 11 de março de 2020, a imprensa falou em “epidemia de coronavírus” e, a partir dessa data, com a declaração da Organização Mundial da Saúde, passou a empregar o termo “pandemia”.

Quarentena, distanciamento social e “lockdown”

Diante da falta de uma vacina ou de medicamentos seguros que garantam a cura da doença, os epidemiologistas têm recomendado no Brasil o “distanciamento social”, que é diferente de “quarentena” e de “lockdown”.

“Quarentena”, na origem um numeral coletivo referente a 40 elementos, é também um substantivo que nomeia o isolamento durante certo tempo (de início, 42 dias) de indivíduos e mercadorias provenientes de regiões assoladas por epidemias. Aos poucos, sofreu apagamento do traço quantitativo próprio do numeral, tornando-se apto a caracterizar diferentes espaços de tempo. Explica-se, portanto, o emprego da expressão “quarentena de 14 dias”, usada em referência ao período de isolamento equivalente ao intervalo de incubação do novo coronavírus.

O termo quarentena, embora se alterne de modo impreciso com a expressão “distanciamento social”, sobretudo nas quedas de braço entre os defensores e os detratores da restrição à circulação, designa uma medida de isolamento temporário à qual se sujeitam apenas os infectados e aqueles que tiveram contato com pessoas infectadas.

O distanciamento social é uma medida mais branda, que abrange a população de determinada região e cuja eficácia depende da adesão maciça das pessoas. Foi por causa dessa ação que muitos trabalhadores transferiram suas atividades para o espaço de suas residências, transformando o “home office” (trabalho remoto) em sua nova rotina.

Da mesma forma, estudantes e professores fizeram a sala de aula migrar para as telas de computadores, e o recurso da videoconferência logo se popularizou. Cinemas e salas de espetáculo fecharam, e os serviços de “streaming” se ampliaram. Compras pela internet, pedidos de refeições por aplicativo e uma série de mudanças de hábito são consequência dessa medida de sofreamento da pandemia.

Diante da redução da adesão da população ao distanciamento social, seja pelo cansaço, seja pelo desencontro na comunicação vinda das várias instâncias administrativas do país, fruto da ideologização da crise sanitária, existe a possibilidade de que uma medida mais drástica venha a ser tomada, o chamado “lockdown”.

O termo, que quer dizer “confinamento”, é usado quando as autoridades impõem restrições severas que obrigam as pessoas a manter-se em reclusão, ressalvando-se os profissionais de saúde, de coleta de lixo e de segurança, cujas atividades são consideradas essenciais.

Pandemia e cenário político no Brasil

No Brasil, a pandemia encontrou um cenário político peculiar: o presidente da República, diferentemente de médicos, cientistas, governadores de estados da Federação e prefeitos, demonstra não acreditar no poder devastador da doença, que já chamou de “gripezinha” – e o diminutivo aqui sugere baixa intensidade. Tem insistido em sair às ruas sem máscara, cumprimentar pessoas, eventualmente tossir e, sobretudo, afirmar com todas as letras que as pessoas deveriam estar tocando suas atividades sem se preocupar, afinal todos vão morrer um dia.

O resultado desse descompasso é uma grande confusão; e a população, já acostumada à polarização política, enfrenta a pandemia tomando partido. Há pouco tempo, o nome de um fármaco antimalárico tornou-se bandeira ideológica: a cloroquina esteve no centro de acalorados debates entre os defensores de seu uso no combate à Covid-19, mesmo sem comprovação de eficácia e sem conhecimento de seus efeitos colaterais, e os adeptos do #fiqueemcasa.

O simples uso de uma máscara de proteção para prevenir o contágio também divide o eleitorado: os que acreditam na ciência e os que a desprezam se encontram na rua, na farmácia, na padaria, no açougue… Quem imaginaria que uma dessas máscaras seria o pivô de uma briga, com tiros e morte, dentro de um supermercado?

Vocabulário científico na boca do povo

Se, por um lado, muitas dessas palavras acionam um conjunto de significados contextuais que vão além do dicionário, por outro, o noticiário trouxe para o cotidiano expressões de uso científico. “Pico da epidemia” e “achatamento da curva”, por exemplo, caíram na boca do povo. Uma e outra estão relacionadas ao desenho da linha nos gráficos de evolução da disseminação do vírus. O pico sugere aumento intenso e abrupto no número de casos, situação que pode levar o sistema de saúde a colapsar; já uma curva achatada indica desaceleração e, portanto, possibilidade de rodízio dos leitos disponíveis.

Anglicismo sintático

Não foi só o vocabulário, porém, que sofreu o impacto do assunto que tomou conta da realidade e do imaginário das pessoas. No plano da sintaxe, voltou a circular a expressão “testar positivo” (por influência do inglês), que já teve largo uso no noticiário esportivo para indicar o resultado de um exame “antidoping” a que tivesse sido submetido um atleta. Como, em português, não se diz que “alguém testou” quando foi “submetido a um teste”, tal sintaxe não é bem-aceita em textos formais, sendo considerada uma tradução malfeita ou apressada. O uso, é claro, pode vir a consolidá-la, como costuma acontecer, embora tenda a haver mais resistência à incorporação de construções sintáticas estrangeiras na língua do que à entrada de palavras novas. O tempo dirá.

As palavras do momento

Numa rápida busca no Google, até o momento em que este texto era escrito, a palavra coronavírus aparecia mais de 2,5 bilhões de vezes, e Covid-19 tinha quase 4 bilhões de registros. Esses termos já estão atrelados a um momento crítico da história da humanidade. Que, nesta batalha que ora travamos, a eles se juntem outros: solidariedade, esperança e união.

 

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O internauta, a loja física, o jornal de papel e o amigo virtual: uma conversa sobre arcaísmos e neologismos https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/23/o-internauta-a-loja-fisica-o-jornal-de-papel-e-o-amigo-virtual-uma-conversa-sobre-arcaismos-e-neologismos/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/23/o-internauta-a-loja-fisica-o-jornal-de-papel-e-o-amigo-virtual-uma-conversa-sobre-arcaismos-e-neologismos/#respond Fri, 23 Aug 2019 14:49:36 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/termo-internauta-Moacyr-Lopes-Júnior-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1402 Talvez com atraso tomo conhecimento de uma discussão sobre a suposta obsolescência do termo “internauta”, que hoje, quando estamos todos conectados em tempo integral, perde a sua função.

Na década de 1990, “internauta” surgiu como neologismo, formado dos elementos “inter” (redução de “internet”) e “nauta” (do grego “naútes”). Calcado em “astronauta”, o “internauta” era, então, a pessoa que explorava o ambiente virtual ou navegava por ele, como astronautas navegam o espaço sideral, aeronautas navegam o espaço aéreo e nautas propriamente ditos navegam pelos oceanos.

Naturalmente soa pueril dizer que internauta não navega porque a internet não é um oceano e que, portanto, melhor seria substituir o termo por “usuário”. É próprio da língua estender o sentido de um termo a outros contextos (e a prova disso, no caso de nauta, está nos termos aeronauta e astronauta, entre outros).

Quanto a “usuário”, esse é um termo que requer complemento. É frequentemente associado a consumo de entorpecentes (usuários de drogas), portanto teria de ser sempre seguido de seu complemento: usuário de internet. Ocorre, porém, que, nesse caso, estaríamos, como dizem os antigos, trocando seis por meia dúzia.

O problema real é outro. Não se trata de substituir um termo por outro, coisa que, aliás, quando ocorre, costuma ser espontânea. Palavras precisam ser funcionais, ter serventia, para que sejam acolhidas pela língua, afinal esta é um fenômeno social.

A língua tanto acolhe palavras novas, os chamados neologismos, como aposenta termos sem utilidade. Os neologismos, como toda novidade, chamam a atenção, despertam a curiosidade, chegando até a suscitar discussões e algumas paixões.  Já os que saem de cena costumam fazê-lo em silêncio, discretamente, sem um último aceno de adeus. Esses são os arcaísmos, que vão sendo esquecidos pouco a pouco, deixando de aparecer nos textos e nas conversas.

Talvez seja esse o destino do “internauta” num futuro próximo, quando lhe restará a companhia de termos como adail (antigo posto militar), almotacel (certo inspetor), albende (bandeira), samicas (talvez), toste (depressa), asinha (depressa), adur (dificilmente, a custo), nacibo (destino, sina), talaca (divórcio)…

Vários são os motivos que levam um termo a tornar-se um arcaísmo. Almotacel (ou almotacé), por exemplo, era, na Idade Média, um inspetor encarregado da aplicação de pesos e medidas e da taxação e distribuição dos gêneros alimentícios. Esse é um caso em que a palavra saiu do uso porque deixou de existir aquilo que ela nomeava. O mesmo se deu com a expressão “em cabelo” que, na época, era aplicada a mulheres solteiras, uma vez que as casadas deveriam cobrir a cabeça com uma touca. Despareceu o costume, desapareceu a expressão.

“Internauta”, se estiver mesmo em via de extinção, estará nesse grupo de arcaísmos e talvez venha a configurar o caso de palavra de vida mais curta na língua, que terá durado míseros 30 anos. Vale notar, entretanto, que há termos que persistem, sobretudo em expressões idiomáticas, mesmo quando sua base referencial é algo que já deixou de existir. Vejam-se os casos de “pegar o bonde andando” e “cair a ficha”, ambos plenamente em uso, mesmo por quem nunca tenha tomado um bonde ou feito uma ligação telefônica nos equipamentos públicos, aqueles com fichas metálicas (anteriores aos modelos com cartão, ainda existentes).

A questão da aposentadoria precoce do “internauta” ainda divide opiniões porque, enquanto, para alguns, estar conectado é como respirar, portanto seria desnecessário caracterizar alguém como tal (chamar alguém de “internauta” seria como chamar a pessoa de “respirante”), para outros, o termo ainda tem vitalidade, pois permite caracterizar a pessoa como usuária de um meio específico, a internet (afinal, a palavra “telespectador”, usada para quem vê televisão, continua em circulação).

O fato é que a internet dominou nossos hábitos de tal forma que passou a ser o principal meio de comunicação das pessoas. Quando alguém diz que leu uma notícia ou que assistiu a um vídeo, a um filme ou a um seriado ou que ouviu uma música nova, logo imaginamos que tenha feito tudo isso pela internet, com seu smartphone – principalmente se essa pessoa tiver nascido no século 21.

Mudou a percepção do “natural”, daquilo que não precisa ser nomeado. Hoje, quando lê um livro ou jornal impresso em papel, a pessoa tende a contar isso como experiência específica (é até engraçado para nós, os jurássicos, ouvir e até dizer também “jornal de papel”). Vejam-se expressões como “loja física” ou “livro físico”. O adjetivo antes era desnecessário, pois ninguém imaginaria que uma loja ou livro pudessem ser desprovidos de sua materialidade.

Hoje essas expressões se tornaram corriqueiras, um sinal de que o nosso referencial vem mudando a passos largos.  Por enquanto, ainda usamos a expressão “amigo virtual”, que denomina aqueles nossos amigos que só conhecemos pelo avatar nas redes sociais, com os quais nunca tivemos o prazer de um cafezinho. Quanto tempo levará para que a expressão natural seja “amigo físico”, quando este, enfim, for a exceção, como um jornal de papel…?

 

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Insulto: uma estratégia de quem não tem argumentos https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/09/insulto-uma-estrategia-de-quem-nao-tem-argumentos/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/09/insulto-uma-estrategia-de-quem-nao-tem-argumentos/#respond Fri, 09 Aug 2019 16:03:43 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/Bolsonaro-2-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1382 As últimas semanas, em que o presidente da República nos brindou com declarações mais agressivas ainda que as de costume, registraram uma espécie de reação catártica nas redes sociais, traduzida em listas de adjetivos capazes de exprimir o sentimento de repúdio à grosseria, ao deboche, ao escárnio, à avacalhação.

As pessoas entraram na brincadeira. O professor Ernani Terra, com sua conhecida agudeza de espírito, publicou no Facebook a seguinte aula-provocação:

ADJETIVOS são palavras usadas para atribuir uma propriedade singular a elemento que é denominado por um substantivo. Podem, portanto, funcionar como adjetivo palavras como [as seguintes]: 
racista, autoritário, homofóbico, machista, intolerante, fascista, imbecil, mentiroso, estúpido, mal-educado, tosco, preconceituoso, inescrupuloso, sórdido, ignorante, truculento, pulha, desassisado, torpe, boquirroto, lambe-botas, estulto, estúpido, parvo, bronco, boçal, obtuso, sacripanta, chucro, ignóbil, tacanho, prepotente, agressivo, inepto, tacanho, desairoso, bruto, infame, odioso, estúpido, impolido, grosseiro, provocador, vil, deplorável, indigno, estouvado, leviano, abjeto, violento, velhaco, patife, desonroso, incivilizado…
A lista é enorme. Fiquem à vontade para ampliá-la.
PS: não preciso dizer a que substantivo os adjetivos devem fazer referência.

A caixa de comentários logo se encheu de uma grande quantidade de adjetivos, aqui organizados em ordem alfabética: abestalhado, abilolado, abjeto, anta, ardiloso, arrogante, asselvajado, avilanado, banana, bandalho, beócio, bizarro, bocó, boquirroto, burro, canalha, chicaneiro, chucro, cínico, covarde, cretino, criminoso, cruel, debochado, desnecessário, destrutivo, ditador, energúmeno, enganador, escroto, estroina, estrume, estúrdio, excrementoso, falacioso, falso, fingido, gatuno, genocida, gentalha, hipócrita, ignorante, impostor, incapaz, incompetente, inepto, inescrupuloso, infame, infeliz, invejoso, larápio, malcriado, maldoso, marionete, “micto”, monstro, morfético, neandertal, néscio, nojento, odioso, otário, parvo, pelintra, pérfido, prevaricador,  pulha, pusilânime, ridículo,  sacripanta, safado, satânico, tacanho, tosco, “vilento”.

O último da lista bem poderia figurar na coluna de Sérgio Rodrigues, na Folha, em que o autor foi além e conclamou os leitores a inventar palavras (os neologismos) com a mesma finalidade, endereçadas ao mesmo personagem.

Um de nossos leitores, o sr. Mouzar Benedito, no Painel do Leitor, da Folha, em vez de recorrer aos neologismos, respondeu ao desafio tirando do fundo do baú uma saborosa lista de palavras, todas com o sabor vintage do arcaísmo, que aqui reproduzo: latrinário, injucundo, malignante, sanguissedento, bilhostre, trastalhão, estupor maligno, merca-honras, cheringalho, bandurrilha, gangolino, coração de víbora, escalfúrnio, fedífrago, bilontra, bisbórria.

Muito divertido, mas o que diz aquele a quem se dirigem os nomes arrolados? O presidente, quando confrontado com suas más-criações, retruca ser esse o “seu jeito”. Esbanjar impropérios e distribuir ofensas, ainda que paradoxalmente, pode ser mesmo o seu jeito de ser (ou parecer) sincero – pelo menos aos olhos de seus simpatizantes. E isso cria certa confusão.

Ser sincero é exprimir-se “sem artifício nem intenção de enganar ou de disfarçar o seu pensamento ou sentimento (pessoa sincera)”, segundo nos ensina o dicionário Houaiss, que continua assim: “que é dito ou feito de modo franco, isento de dissimulação (felicitações sinceras, arrependimento sincero)”; “em quem se pode confiar; verdadeiro, leal (amigo sincero)”; “que demonstra afeto; cordial (abraço sincero)”.

Segundo Schopenhauer (1788-1860), “os amigos se dizem sinceros; os inimigos o são”. Ora, o aforismo reforça a ideia de que os elogios são sempre falsos e só vêm a propósito de interesses ocultos, enquanto as ofensas são as “verdades” que ocultamos por polidez (ou falsidade).

Assim, quando descobrimos no outro uma falha, um defeito qualquer, uma atitude questionável, logo temos a certeza de que, então, sim, sabemos quem de fato é aquela pessoa.

Em tal pensamento forçosamente se embute um traço de descrença no ser humano, de profundo pessimismo ante a vida. Somos todos vilões disfarçados, odiamos uns aos outros. Estamos em guerra com nossos vizinhos, com nossos colegas de trabalho, com as pessoas com quem dividimos os espaços coletivos. Se assim for, aquele sujeito que nos ofende gratuitamente será mesmo o nosso espelho.

O mesmo Schopenhauer, tão conhecido por seu pessimismo, no entanto, nos dirá que o insulto pode ser a estratégia argumentativa de quem não tem como enfrentar um debate de ideias: “Quando perceber que o adversário é superior e que você acabará por perder a razão, torne-se ofensivo, ultrajante, grosseiro, isto é, passe do objeto da contestação (dado que aí a partida está perdida) ao contendor e ataque de algum modo sua pessoa”. O trecho está na “Arte de Ter Razão”, citado na introdução de Franco Volpi à conhecida “Arte de Insultar”, ambas obras do filósofo alemão).

Ao que tudo indica, a suposta sinceridade do personagem não passa de um subproduto da sua inépcia e incapacidade de argumentar sobre bases racionais e nada tem de positivo. Infelizmente, não há como ignorar o interlocutor (conforme recomendaria o próprio filósofo), pois ele empunha a caneta mais importante do país e a ele foi passada uma procuração para definir os nossos caminhos. Enquanto ele distrai a nossa indignação, sua caneta vai deslizando sobre o papel.

Talvez, então, depois das listas catárticas de insultos, seja chegada a hora de convocar à cena o campo semântico da solidariedade e do companheirismo, para que não nos esqueçamos dos nossos valores mais caros.

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Domingo, 11 de agosto de 2019: Uma leitora nos avisou de que os adjetivos colhidos na página do Facebook do professor Ernani Terra não estavam em ordem alfabética, conforme anunciado. De fato. Estava ela coberta de razão. Tentei agora corrigir o erro e confesso que me senti frustrada ao perceber que a lista é muito modesta. Ao mexer na ordem das palavras, outros adjetivos me vieram à mente, em total desordem alfabética: paspalho, paspalhão, bocó, quizilento, debochado, cínico,  chato, desagradável, bananão, velhaco, patife, rezingueiro, arengueiro…

 

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Uma conversa (gramatical) sobre laranjas https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/02/19/uma-conversa-gramatical-sobre-laranjas/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/02/19/uma-conversa-gramatical-sobre-laranjas/#respond Tue, 19 Feb 2019 05:09:31 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/Bolsonaro-laranja-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1339 O termo “laranja” tem estado nas páginas da Folha nas últimas semanas em razão de uma série de reportagens que vêm descortinando um esquema, usado pelo PSL, para fazer uso fraudulento das verbas públicas do fundo partidário por meio de candidaturas de fachada.

Como não poderia deixar de ser, a palavra em si despertou a curiosidade do leitor. Os dicionários há algum tempo registram o termo na acepção de “homem tolo, ingênuo”. Houaiss atualizou esse sentido, acrescentando o traço de “indivíduo nem sempre ingênuo, cujo nome é utilizado por outro na prática de diversas formas de fraudes financeiras e comerciais, com a finalidade de escapar do fisco ou aplicar dinheiro de origem ilícita”.

Essa acepção fundamenta a expressão “candidato laranja” (ou mesmo o substantivo composto “candidato-laranja”), ainda que a criatividade dos políticos quando o assunto é fraude esteja a pedir novas atualizações lexicográficas. Do ponto de vista morfológico, vale notar que o segundo elemento (“laranja”) é um substantivo que atua como determinante específico, exatamente como “fantasma” em “conta fantasma” (ou “conta-fantasma”).

“Laranja”, nesse caso, não diz respeito à cor e talvez nem mesmo à fruta. Exatamente por não se tratar de cor, não se sujeita à concordância dos substantivos que nomeiam cores, os quais permanecem invariáveis.

Quem não se lembra das bicicletas laranja  do projeto Bike Sampa? Muito bem. Quando se refere à cor (cor de laranja), de fato, o substantivo “laranja”, usado como adjetivo, permanece invariável. Bicicletas laranja é o mesmo que bicicletas cor de laranja. Vale ainda lembrar que, mesmo quando identifica uma cor, “laranja” pode ter plural, o que ocorrerá caso seja usado no sentido de “tons de laranja” (Na decoração, usou com parcimônia os laranjas e os vermelhos).

Que não se confunda “laranja” na acepção de cor com “laranja” na acepção de indivíduo que se presta à prática de diversos tipos de fraude. Este último é um substantivo e, como tal, tem flexão de número.

Ainda que, à semelhança de “empresa-fantasma”, sejam admitidas as grafias com hífen e sem hífen, sendo o segundo elemento um determinante específico, é mais seguro o uso do composto com hífen, de modo que não paire dúvida sobre as possibilidades de flexão.

O substantivo composto candidato-laranja, por ser formado de dois elementos variáveis, admite o plural candidatos-laranjas. Podendo o segundo substantivo ser interpretado como um elemento que limita o anterior, é também lícita a flexão apenas do primeiro elemento do composto (candidatos-laranja).

Quanto às candidaturas em si, o ideal é que se diga que são candidaturas de laranjas, ou seja, candidaturas de indivíduos ingênuos – ou não necessariamente ingênuos – que emprestam a própria identidade a outros para fins ilícitos.

A concordância parece ser mais fácil de resolver do que aquilo que mais espicaça a curiosidade do leitor, ou seja, a origem do termo. Por que, afinal, o nome de uma fruta tão saborosa assumiu esse sentido pejorativo?

Hipótese sobre a origem do termo

As várias hipóteses que andam pela internet não parecem mais que fruto da imaginação e, de tão fantasiosas, não se sustentam. Não é difícil que o atual sentido de “laranja” seja uma extensão do sentido anterior de “indivíduo tolo, otário”, dado que este se deixa usar por alguém mais esperto.

O que permanece incógnito é o elo entre o simplório, tolo, aparvalhado e a laranja. A meu ver, enquanto estivermos em busca de uma associação semântica com a fruta, dificilmente sairemos do atoleiro da dúvida.

As pessoas tendem a esquecer-se de que a língua tem outros mecanismos de criação de palavras para além das analogias e metáforas, embora estas sejam talvez os mais frutíferos.

Convido o leitor que tiver paciência a fazer um raciocínio um pouco diferente, baseado, é claro, em comportamentos observáveis na língua. Aviso aos mais sensíveis que terei de usar alguns termos de baixo calão a fim de explicitar o meu raciocínio.

Para lançar mão de exemplos facilmente acessíveis na memória, vamos, de início, ao termo “paca”, usado, na linguagem popular, no sentido de “grande quantidade” ou de intensidade (Fulano fala paca!), que, segundo o próprio Houaiss, nasce de uma alteração de natureza eufêmica (própria de eufemismo) das expressões chulas “para caralho” ou “para cacete”, ambas também empregadas como intensificadores. A forma “paca” ameniza o tabuísmo, o mesmo valendo para as expressões “para caramba”, com uso da interjeição de espanto de origem espanhola, e “para cachorro” (Fala para caramba! Fala para cachorro!). Pergunta-se: o que é que caralho, cacete, caramba e cachorro têm de comum? Todas têm três sílabas, são paroxítonas e iniciadas pela sílaba “ca-”. Pareceu estranho?

O leitor se lembrará por certo de ter ouvido ou dito a interjeição “cacilda!” diante de uma situação de espanto, admiração ou impaciência. Se procurar saber quem foi a tal Cacilda que deu origem à expressão, é provável que não chegue a lugar algum. Por outro lado, se observar a semelhança entre cacilda e cacete, estará no rumo certo. A semelhança formal faz que se use um termo no lugar de outro com transferência de significado, mais uma vez evitando o uso do palavrão.

O recurso não é nada novo na língua: “diacho”, por exemplo, é uma alteração de “diabo”, que, em outros tempos, era palavra a evitar. Muito bem. E o laranja? Onde é que ele entra nessa história?

A hipótese que podemos formular nessa linha de raciocínio é que, de início, se tenha usado o termo “laranjão”, com o sufixo “-ão” de aumentativo com matiz afetivo (o mesmo que ocorre em toleirão, parvalhão, bobalhão, paspalhão, bestalhão etc.) e que esse termo se tenha confundido com o informal “janjão”, que, embora não esteja nos dicionários regulares, aparece definido no Dicionário Informal  como “um cara abestalhado e lento para entender as coisas de uma forma geral, fácil de ser ludibriado”, o que demonstra ter existência na língua.

Ainda mais curioso é lembrar que Janjão é o nome de um personagem do conto “Teoria do Medalhão”, de Machado de Assis, que, ao atingir a maioridade, ouve do pai uma série de conselhos sobre o melhor caminho a seguir para ter sucesso na vida. O conto é uma das joias do bruxo do Cosme Velho, que, sob a forma de um diálogo, põe em cena um jovem e seu pai, a este cabendo encarnar a sua incansável veia irônica.

O termo “medalhão”, hoje meio fora de moda, descreve, de modo pejorativo, o indivíduo que obteve fama e que passou a viver em função disso ou, mais especificamente, um indivíduo de “infundada notoriedade” (Houaiss).

O Janjão de Machado de Assis é o protótipo do sujeito anódino, medíocre, que, por isso mesmo, na visão do próprio pai, tem toda a disposição para se tornar um verdadeiro “medalhão”:

Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança, No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas ideias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.

O sentido dado a “janjão”, somado à semelhança fônica com “laranjão” parece trazer uma pista. Teríamos ainda de entender por que “laranjão”, sendo válida a hipótese, teria recuado para “laranja”. Esse, no entanto, não seria o maior dos problemas.

Veja-se, para tanto, o que ocorreu com o nome da doença chamada “sarampão”. Popularmente percebido como aumentativo (embora não o fosse), o termo, por derivação regressiva, recuou para um suposto grau positivo na forma que se consagrou: sarampo. E hoje pode até parecer estranho dizer que “sarampo” veio de “sarampão”.

Pode-se dizer que algo semelhante, embora não idêntico, ocorreu com o termo “lanterninha”, claramente um diminutivo de “lanterna”. Era desse modo que se chamavam os funcionários das salas de cinema que, com uma pequena lanterna, ajudavam os retardatários a encontrar um lugar para se sentar depois que o filme já tinha começado e as luzes estavam apagadas. Quem precisava do lanterninha era quem chegava atrasado. Está talvez aí a origem do uso do termo para fazer alusão ao que chega em último lugar num campeonato esportivo. Detalhe: nessa acepção, as pessoas passaram a usar o termo no grau positivo (lanterna), rechaçando o sufixo de diminutivo, novamente num processo de derivação regressiva.

E mais: o termo “lanterna”, nesse sentido, já não está restrito à área esportiva, embora predomine nesse campo. Veja este exemplo, que, aliás, nos reconduz ao laranjal da política: “Outra candidata campeã de dinheiro do PSL, mas lanterna de votos, é Mila Fernandes. Teve 334 votos a deputada federal”.

Ora, se a hipótese for válida, “janjão”, por semelhança fônica, terá resultado em “laranjão” (com sufixo “-ão”, de matiz afetivo) e este terá regredido a um grau positivo, tendo passado a “laranja”(como sarampão > sarampo). Assim: janjão > laranjão > laranja.

Ainda que não tenhamos nenhuma comprovação disso – daí estarmos aqui falando meramente em hipótese –, o raciocínio pode servir para lembrar que parte do fascínio da língua está nas surpresas que ela põe no caminho de quem se dedica ao seu estudo.

 

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Declarações não são bravatas https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/10/06/declaracoes-nao-sao-bravatas/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/10/06/declaracoes-nao-sao-bravatas/#respond Sat, 06 Oct 2018 14:46:16 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/ELE-NÃO-STRINGER-REUTERS-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1316 “Ai, bota aqui/ Ai, bota aqui o seu pezinho/ Seu pezinho bem juntinho com o meu/ E depois não vá dizer que você se arrependeu!”

Não é novidade para ninguém que o candidato favorito ao cargo de presidente da República é pródigo em declarações ofensivas a mulheres, pessoas LGBT, negros, indígenas, pobres etc. Será que declarar essas coisas tem alguma importância?

Seus eleitores, excetuados aqui os homens brancos heterossexuais bem-sucedidos (em tese, não atingidos pelas diatribes do candidato), costumam minimizar o efeito dessas declarações, tomadas como gestos de sinceridade ou bravatas inconsequentes, mera expressão do “jeitão de machão” dele etc.

Como explicar a adesão feminina ao candidato que aceita como normal que mulheres (bonitas) sejam alvo de estupro? Ainda que não defenda o ato em si, ele o toma como resultado de um instinto normal em homens viris, cabendo, portanto, à mulher dar-se ao respeito, vestir-se adequadamente, esconder a beleza tentadora, a fim de que o homem consiga conter-se.

O que subjaz a esse discurso é que homens viris desejam estuprar, mas, é claro, devem tentar conter-se na maior parte das vezes. A solução para o problema passa, nesse tipo de raciocínio, pela contenção e, quando isso não funciona, pela punição.

Seria muito melhor pensar que os homens não são todos potenciais estupradores que têm de se conter diante de uma mulher que os atraia, que virilidade não é isso. É a mudança de mentalidade que traz o respeito à mulher, o qual implica vê-la como um ser dotado de inteligência, sujeito de suas vontades, não como mero objeto ou apêndice, a quem cabe apenas a gerência do lar de um homem.

O mesmo vale para os gays. Não é razoável dizer que preferia ver morto um filho gay ou dizer que não tem um filho gay porque deu aos seus boa educação em casa. Gays mais jovens, brancos e bem-sucedidos ou oriundos de famílias mais abastadas, porém, podem achar que as “bravatas” do candidato não têm o poder de interferir na sua vida e nas suas conquistas.

Mulheres brancas, casadas, ricas ou apenas bem-sucedidas, igualmente podem achar que nada disso é com elas, que ele é “machão”. Negros e afrodescendentes de modo geral, igualmente, se gozam de uma situação econômica boa ou razoável, também podem achar que as declarações do candidato não vão mudar a sua vida, podem até achar que não existe racismo na sociedade.

O fato é que as lutas das minorias (minorias de poder, não minorias numéricas) por reconhecimento e respeito vão dando resultado aos poucos, não de uma só vez. É por isso que, felizmente, há mulheres, LGBTs e afrodescendentes que já conseguiram galgar posições na sociedade, bem como pessoas de origem pobre que conseguiram ascender economicamente. Essas pessoas são, sim, fruto de seus esforços e de sua luta pessoal, mas também são fruto da luta coletiva que se empreende em favor delas, luta que jamais foi encampada por regimes de extrema direita.

Em suma, o ambiente de liberdade é o que permite que as pessoas desenvolvam suas potencialidades e se expressem como quiserem, respeitando umas às outras. Declarações vindas de um candidato a presidente da República não são palavras ditas ao vento ou bobagens inconsequentes ditas em reuniões privadas. Ao serem manifestadas em público, elas reivindicam legitimidade. Preconceitos que deveriam estar enterrados ganham o status de “opinião”.

Será que nós queremos uma sociedade que legitima o preconceito racial, a misoginia, a homofobia, a segregação dos mais pobres (sobre os quais recai toda a responsabilidade pelos crimes), a censura a livros e obras de arte, a solução dos problemas pela força, pondo as pessoas armadas umas contra as outras?

Nas redes sociais, muitas vezes faz sucesso quem é debochado, iconoclasta, aquele sujeito que parece comum, “igual a todo o mundo”. Talvez esse critério de valor não seja o melhor na hora de escolher o representante máximo da nação. A fanfarronice de hoje será lei amanhã. Se eleitas as forças retrógradas, acordaremos no dia seguinte sob a nuvem negra do preconceito e de todo tipo de rancor.

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O zero e a negação: “Estou zero preocupado com isso” https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/09/18/o-zero-e-a-negacao-estou-zero-preocupado-com-isso/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/09/18/o-zero-e-a-negacao-estou-zero-preocupado-com-isso/#respond Tue, 18 Sep 2018 22:18:31 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1304 Observo com curiosidade como se disseminou uma prática linguística que, até pouco tempo atrás, era bissexta e, por isso mesmo, muito expressiva. Estou falando do uso da palavra “zero”, um numeral, no lugar de uma partícula de negação (pronome indefinido, advérbio ou preposição) ou do adjetivo “nulo”.

Em vez de dizer que não estou preocupado com alguma coisa, digo que estou zero preocupado. Em vez de dizer que uma pessoa não tem nenhum conhecimento sobre um tema, digo que ela tem zero conhecimento sobre aquilo.

Tenho visto esse uso com certa frequência e convido o leitor a observá-lo também.

Vale lembrar que o “zero” posposto a um substantivo não é novidade em situações em que aparece ainda como quantificador, indicando ausência de um elemento (morfema zero) ou ponto inicial de uma escala (grau zero, gravidade zero), daí provavelmente derivando expressões como “marco zero”, “estaca zero” ou “começar do zero” — e, mais recentemente, “prioridade zero”, à qual voltarei em outro momento.

É claro que não podemos subestimar a influência do inglês, que nos deu “tolerância zero” (“zero tolerance”) e similares. Daí para “Fome Zero” (nome de programa governamental) e outras expressões do mesmo tipo, o passo foi curto. O título jornalístico corrobora o uso: Desmatamento zero do Cerrado é reivindicação aos presidenciáveis”.

A fala (em provável tradução literal) de Moritz Poehl, antigo analista do banco Lehman Brothers, “Você tinha zero controle sobre alguém que podia apertar o botão errado, no andar errado”, atesta essa marca do inglês sobre o português.

Vejamos alguns exemplos de como o “zero” vem aparecendo no lugar das formas tradicionais de negação em português.

Do atleta Alexsandro de Souza: “Eu vejo que realmente deu resultado, mas o nosso poder de execução é zero”.

Da historiadora Mary del Priore,  ao comentar o incêndio do Museu Nacional: “Tivemos a Capela Imperial, na UFRJ, que foi queimada, mas as pessoas apenas lamentam depois. Toda vez que o Museu Nacional precisou de verbas, o apoio da população era zero. Agora todo o mundo chora, mas a verdade é que há uma negligência do cidadão carioca”.

De um deputado: “Bolsonaro fez, de forma orientada, vários gestos para a comunidade [judaica], especialmente em relação a Israel, mas o conhecimento dele sobre desafios do povo judeu é zero”.

De Ivan Monteiro, presidente da Petrobras: “Houve zero submissão ao governo. Temos toda uma política de governança. A proposta vinha sendo estudada há 60 dias. Quando ficou madura, submetemos à diretoria executiva”.

Enfim, nesses exemplos, vemos o “zero” com característica de adjetivo e de pronome indefinido, dado que relacionado diretamente a um substantivo, seja em função predicativa (o poder era zero, o apoio era zero, o conhecimento é zero, em vez de “nulo”), seja como adjunto adnominal (zero controle, zero submissão, em vez de “nenhum controle”, “nenhuma submissão”).

Há que se questionar o porquê de usar um numeral (cardinal, portanto quantificador) para adjetivar substantivos abstratos, não contáveis. Ora, se posso dizer “zero controle”, poderia igualmente dizer “um controle”, “dois controles”, “três controles” etc., mas isso não se verifica. Daí se conclui que “zero” nessas construções não deve ser tomado como numeral – ele perdeu a faculdade de quantificar, passando a ocupar o lugar de um pronome indefinido indicador de totalidade exclusiva (nenhum).

É interessante observar que, em uma construção como “Houve zero submissão”, não há partícula de negação, enquanto, em seu equivalente tradicional (“Não houve nenhuma submissão”), aparecem dois elementos negativos (não, nenhum).

O que vemos é que o “zero” parece ter entrado na moda.  Quando alguém diz que está zero preocupado, o “zero” está no lugar de uma negação enfática (Não estou nem um pouco preocupado), exercendo função adverbial, dado que modifica o adjetivo “preocupado” e que de modo algum seria permutável com um numeral cardinal qualquer (um, dois, três etc.).

É possível que esse uso tenha tido seu início em expressões ligadas a medidas (carro zero-quilômetro ou simplesmente carro zero; taxa zero). Note-se que, nesses casos, o “zero” denota um valor positivo (carro novo; sem taxa), o que é bem diferente de “ser um zero à esquerda” ou mesmo de “ser um zero”, expressões de caráter negativo. Ao que tudo indica, esse uso veio para ficar.

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Pedagiar e escanear https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2013/10/01/pedagiar-e-escanear/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2013/10/01/pedagiar-e-escanear/#comments Tue, 01 Oct 2013 21:45:36 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=446 Vale ainda conversar um pouco mais sobre a conjugação dos verbos terminados em “-iar” e “-ear”. Apesar de uma confusão aqui, outra acolá, muitas vezes fruto da preocupação em “acertar” (a chamada hipercorreção), a tendência dos falantes do português é intuitivamente fazer as flexões adequadas.

Isso ocorre porque quem conhece uma língua internaliza a sua gramática, ou seja, “sabe sem saber que sabe” – mais ou menos isso. Uma maneira interessante de observar essas estruturas já apreendidas é examinar os neologismos, isto é, as palavras novas que passam a integrar o léxico da língua.

Há vários caminhos para o surgimento do neologismo, inclusive a influência de termos estrangeiros, que se acomodam à nossa língua no processo de incorporação ao uso.

Os verbos que intitulam este texto são neologismos. O primeiro deles ainda não conquistou seu lugar nos nossos dicionários, mas o segundo já está registrado. É um derivado de “escâner”, este um aportuguesamento do inglês “scanner”.

“Pedagiar” uma rodovia é instalar nela as chamadas “praças de pedágio”, coisa muito comum nas estradas que passam pelo estado de São Paulo, mas nem tanto nas que cortam outras regiões do país. Aparentemente, o termo surgiu na forma de um verbo no particípio passado, usado como adjetivo, como ocorre normalmente com essa forma nominal (a expressão “rodovia pedagiada” é um exemplo desse uso). É difícil saber se “pedagiar” veio antes de “pedagiada”, mas é fato que ambos vieram de “pedágio”. (Vale um parêntese: o já antigo “pré-datado”, de “cheque pré-datado”, parece ser um particípio surgido antes do infinitivo “pré-datar”.)

Para criar os verbos “pedagiar” e “escanear”, não foi preciso que alguém consultasse uma gramática, pois as palavras nascem espontaneamente (exceção feita aos termos científicos, para cuja formação geralmente se recorre a radicais gregos ou latinos). Muito bem: “pedagiar” termina com “-iar” e “escanear” termina com “-ear”. Por que será?

É aí que a entra a gramática que já está internalizada. Sem precisarem parar para pensar, as pessoas usaram a terminação “-iar” para formar um verbo derivado de um substantivo terminado em  “-io” (“pedagiar” – “pedágio”). Essa associação explica-se porque tal comportamento é frequente na língua (plágio – plagiar, salário – assalariar, frio – esfriar etc.). A terminação “-ia” de substantivos e adjetivos também leva à forma “-iar” (cópia – copiar, via – desviar, notícia – noticiar, polícia – policiar). Os exemplos são muitos.

“Escanear”, por sua vez, vem de “escâner”. Sua formação segue a de verbos oriundos de substantivos terminados em consoante (mar – marear, flor – florear, pastor – pastorear). É bom que se diga que a terminação “-ear” é típica dos verbos cujos nomes correlatos terminam em “-é” (tônico), “-eio” ou “-eia” (pé – apear, feio – enfear, rateio – ratear, ceia – cear, areia – arear; estreia – estrear) e dos terminados em vogal átona “-a”, “-e” ou “-o” precedida de consoante (granja –  granjear, prata – pratear, bronze – bronzear, sorte – sortear, branco – branquear).

Também é verdade, no entanto, que a terminação “-ear”, por vezes, concorre com a terminação “-ar” (caracolear/ caracolar, dosear/ dosar, pipoquear/ pipocar,  reboquear/rebocar, tricotear/ tricotar, sambear/ sambar) e que podem ocorrer tanto “-ear” como “-ar” em situações semelhantes (cabo – cabear, mapa – mapear, mas planta – plantar, pasto – pastar). Ainda na linha dos comportamentos de exceção, estão os verbos “alumiar” (de “lume”) , “abreviar” (de “breve”) e “ampliar” (de “amplo”), que se consagraram com a terminação em “-iar”, não em “-ear”.

CARREATA

Como uma palavra dá origem a outras, mesmo os termos que são novos têm sua grafia baseada na dos preexistentes. Veja-se um termo como “carreata”, formado por analogia a “passeata”. Este é derivado de “passear”, aquele é calcado na forma do verbo “carrear”. “Negociata”, por sua vez, vem de “negociar”. O que fundamenta a grafia desses termos é ainda a oposição “-ear”/ “-iar”.

Os verbos “negociar” e “premiar”, no Brasil, conjugam-se apenas como regulares (negocio, negocias, negocia; premio, premias, premia), mas, em Portugal, são aceitas (e comuns) as formas “negoceio” e “premeio”.

ORTOGRAFIA

Não é difícil perceber por que escrevemos prateado, bronzeado, bronzeamento, branqueamento, todos com a letra “e”, mesmo que a sua pronúncia tenda ao som de “i”, certo?  Eles são derivados de verbos terminados em “-ear”.

“CREAÇÕES”

O verbo “criar”, do português, tem origem na forma latina creare (creo, creas, creat). Embora na passagem do latim ao português o “i” tenha substituído o “e”, durante certo tempo houve hesitação entre as grafias criar/crear. No Brasil, chegou a existir uma suposta distinção de uso, que, aliás, caiu por terra. Entendia-se que “crear” fosse dar existência, tirar do nada e que “criar” fosse educar, cultivar, promover o desenvolvimento. Daí distinções como creação (a obra de Deus) e criação (de gado, dos filhos). Curiosamente, ainda hoje sobrevivem nomes comerciais (geralmente de confecções) que incluem o termo “creações”, assim com  a letra “e” (Creações Kelman Confecções, Creações Vital Ltda., Pingo Doce Creações etc.).

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