Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Um argumento frágil https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/09/18/um-argumento-fragil/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/09/18/um-argumento-fragil/#comments Mon, 18 Sep 2017 21:44:23 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1214 Recentemente, o médico Drauzio Varella manifestou em uma de suas colunas seu repúdio ao crime de estupro. Conhecedor que é do ambiente carcerário, lembrou aos leitores que, na cadeia, esse crime é rechaçado com violência pelos presos a ponto de os estupradores terem de ser mantidos em isolamento sob pena de serem trucidados pelos outros criminosos.

Bem ou mal, isso não parece ser novidade. Mesmo quem não tem nenhuma familiaridade com penitenciárias já ouviu dizer que existe um código interno entre os presidiários e que a convivência nos presídios está longe de ser fácil.

Até aí, tudo bem. O problema surge quando se faz o raciocínio de que, se até os presidiários, entre os quais estarão homicidas de vários quilates, condenam o crime de estupro – a ponto de trucidarem os estupradores recém-chegados (ou de estuprá-los também, como se lhes aplicassem a pena de talião, fazendo algum tipo de justiça) –, isso quer dizer que a sociedade como um todo repudia fortemente esse tipo de crime.

Esse foi o raciocínio de Hélio Schwartsman, que escreveu isto: “Ora, se até nos presídios, onde vige uma moral permissiva em relação a um amplo rol de delitos, o estupro é visto como algo imperdoável, a situação não pode ser muito diferente nos segmentos sociais que abraçam éticas mais kantianas”, em alusão ao texto de Varella, que seria a comprovação disso.

A princípio, parece coerente, mas esse não é um raciocínio que se aceite assim tão facilmente quando se leem notícias como as que têm estampado as páginas dos jornais nos últimos tempos, quando casos de estupro vêm ganhando mais visibilidade.

Ao desenvolver seu raciocínio, o articulista chega a dizer que a frase “a mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada” pode ser interpretada “em termos probabilísticos”, ou seja, “mulher que usa trajes sumários tem mais chance de sofrer violência sexual”. A referida frase remonta a uma pesquisa feita pelo Datafolha, que mensurava a percepção dos brasileiros acerca da responsabilidade da mulher nesse tipo de crime. O resultado foi assustador: grande parcela de homens e de mulheres atribuiu o delito ao comportamento feminino e às roupas provocativas usadas pelas mulheres. Donde se depreende que, na visão dessas pessoas, cabe à mulher “não se expor”, ser recatada ou algo do gênero. Mais ou menos como se o estupro fosse um fenômeno da natureza e à mulher coubesse evitá-lo tanto quanto possível.

A pesquisa aferiu a percepção do senso comum, que, como podemos constatar, está permeada pelo machismo ou pela chamada “cultura do estupro”, que o articulista diz duvidar que exista. Creio que a expressão esteja ligada a uma suposta naturalização do estupro (em todas as suas modalidades), ao fato de, ao contrário do que ele disse, a sociedade como um todo não rechaçar tanto assim o delito. “Tá com vontade? Vai lá, estupra, mas não mata”, citando de memória o conhecido político brasileiro Paulo Maluf. Uma versão mais moderna e ainda mais grotesca coube ao deputado Jair Bolsonaro ao se dirigir à deputada Maria do Rosário: “Ela não merece [ser estuprada] porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece“. Que significa dizer “eu não sou estuprador, mas, se fosse (…)”? Significa que poderia ser sem nenhum problema. E mais: significa que o estuprador escolhe a mulher pelos atrativos dela, ou seja, ele não é um psicopata ou um criminoso, é apenas um homem como outro qualquer. E o pior de tudo é que há mulheres que, embora se apresentem como indignadas, contabilizam os assédios (não estupros, é claro) de que foram vítimas com certo orgulho, alimentando (talvez sem perceber, por mera vaidade ou ingenuidade) essa percepção de que, no fundo, um assédio tem um componente de elogio. É o “merecimento” de que fala Bolsonaro.

Enfim, se a frase da pesquisa Datafolha fosse interpretada “em termos probabilísticos”, hipótese aventada pelo articulista, seria necessário saber que roupas usou e que atitudes a mulher teve antes do estupro. Ora, a simples possibilidade de indagar isso da mulher pressupõe um julgamento moral. Ou não?

O noticiário, no entanto, não nos deixa ignorar a realidade: esse tipo de crime, na maior parte das vezes, ocorre dentro de casa, é cometido por pessoas em quem a vítima deposita confiança. Veja-se a estatística dos casos de estupro de pessoas com deficiência, por exemplo, em matéria assinada pela jornalista Cláudia Colluci na Folha.

Mas voltemos à “prova cabal” de que o estupro é um crime amplamente repudiado pela sociedade, ou seja, ao código de conduta dos presidiários. É, no mínimo, estranho acreditar que, num ambiente em que homicidas são respeitados, estupradores sejam repudiados porque seu crime é “imperdoável”. Seria preciso acreditar que, no presídio (masculino), a mulher é mais respeitada do que fora dele. Aqueles homens ali trancafiados têm mais respeito pela mulher do que os que estão do lado de fora. Será?

Infelizmente, parece muito mais plausível a ideia de que o estupro nessa comunidade seja visto como um crime “menor”, um crime de segunda categoria, cometido por um “macho menos macho”. Menos macho porque não enfrentou outro macho, menos macho porque agrediu um ser mais fraco, menos macho porque não consegue “pegar mulher” de outro jeito, menos macho, portanto mais fraco, vergonha do grupo, e, portanto, o alvo escolhido para o escoamento da violência represada. O estuprador não merece o respeito dos outros porque não cometeu um “crime de verdade”. Não mete medo nos machos “de verdade”. No mínimo, seria importante pesquisar os critérios desse código de conduta antes de tirar conclusões apressadas que em nada contribuem para um convívio mais civilizado entre todos os seres humanos. Obviamente, negar a cultura do estupro não é o caminho para combatê-la.

Vale lembrar que as mulheres se desdobram para visitar seus maridos, namorados, filhos, netos, irmãos na cadeia. Submetem-se à revista vexatória, a todo tipo de humilhação e, em caravanas, organizam-se para levar semanalmente comida e artigos de higiene ou roupas de que os homens necessitam. Transformam a própria rotina em função do homem que está preso, mas, quando são elas, as mulheres, que vão para a cadeia, não há homem fazendo fila na porta do presídio, levando comida ou agrados, submetendo-se a humilhações, gastando o próprio dinheiro com elas ou mesmo fazendo visita íntima. Como acreditar na benevolência ou no grau evolutivo superior desses machos? As mulheres, sim, educadas para o amor e a fidelidade, fazem todo e qualquer sacrifício por esses e outros homens. Dentro e fora da prisão.

 

 

 

 

 

 

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Chico Buarque, o amor e a saudade da Amélia: onde está o machismo? https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/08/23/chico-buarque-o-amor-e-a-saudade-da-amelia-onde-esta-o-machismo/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/08/23/chico-buarque-o-amor-e-a-saudade-da-amelia-onde-esta-o-machismo/#comments Wed, 23 Aug 2017 03:05:40 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1203 De uns tempos para cá, talvez em razão desse bate-papo de milhares de vozes que são as redes sociais, quase tudo é alvo de algum tipo de crítica. E, num ambiente de muito alarido, muitas vezes vence quem fala mais alto – ou quem é mais radical. 

Recentemente, o nosso Chico Buarque, que sempre cantou tão bem o amor e os amantes, foi alvo de uma injustiça. Sua nova canção, intitulada “Tua cantiga”, foi tachada de machista. A estrofe que deflagrou a polêmica foi esta:

Quando teu coração suplicar,
Ou quando teu capricho exigir,
Largo mulher e filhos
E de joelhos
Vou te seguir

Depreende-se da letra que o eu lírico (a voz que fala no poema) é um homem casado que se apaixona por outra mulher e se diz capaz de deixar o casamento para segui-la, caso ela assim o deseje. Trata-se de uma declaração de amor, como, de resto, o são as outras estrofes, em que fala de saudade, oferece proteção, sugere delicadamente a sensualidade da mulher, expressa desejo de fazer carinhos, sente ciúme etc.

Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Basta dar um suspiro
Que eu vou ligeiro
Te consolar

Se o teu vigia se alvoroçar
E, estrada afora, te conduzir
Basta soprar meu nome
Com teu perfume
Pra me atrair

Se as tuas noites não têm mais fim
Se um desalmado te faz chorar
Deixa cair um lenço
Que eu te alcanço
Em qualquer lugar

Quando teu coração suplicar
Ou quando teu capricho exigir
Largo mulher e filhos
E de joelhos
Vou te seguir

Na nossa casa
Serás rainha
Serás cruel, talvez
Vais fazer manha
Me aperrear
E eu, sempre mais feliz

Silentemente
Vou te deitar
Na cama que arrumei
Pisando em plumas
Toda manhã
Eu te despertarei

Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Basta dar um suspiro
Que eu vou ligeiro
Te consolar

Se o teu vigia se alvoroçar
E, estrada afora, te conduzir
Basta soprar meu nome
Com teu perfume
Pra me atrair

Entre suspiros
Pode outro nome
Dos lábios te escapar
Terei ciúme
Até de mim
No espelho, a te abraçar

Mas teu amante
Sempre serei
Mais do que hoje sou
Ou estas rimas
Não escrevi
Nem ninguém nunca amou

Se as tuas noites não têm mais fim
Se um desalmado te faz chorar
Deixa cair um lenço
Que eu te alcanço
Em qualquer lugar

E quando o nosso tempo passar
Quando eu não estiver mais aqui
Lembra-te, minha nega
Desta cantiga
Que fiz pra ti.

 

Os que viram machismo na letra talvez tenham privilegiado um viés moralista que não combina com nenhuma das poesias de Chico Buarque –  já dizia Oscar Wilde que a arte é amoral. “Amoral” (não “imoral”), ou seja, passa ao largo da moral.

Para falar de amor – e quem entre os nossos cancionistas o faz melhor que Chico? –, talvez seja mesmo necessário se desvestir das convenções da moral vigente, que, cá entre nós, têm muito de hipocrisia.

O próprio autor veio a público para explicar que machismo seria ficar com as duas mulheres. O eu lírico do poema se propõe a deixar o casamento para seguir o amor. Implícito está que, se o amor estivesse no casamento, não haveria a “amante”.

“Amante”, vale lembrar, é aquele ou aquela que ama, malgrado o sentido pejorativo que se pespegou à palavra, o que não deixa de ser curioso. Amar, este o tabu dos tempos modernos.

O casamento não requer necessariamente o amor, a paixão (nem mesmo o sexo), mas impõe deveres de responsabilidade e, ao mesmo tempo que oferece como bônus uma espécie de respeitabilidade aos que aderem a ele, ameaça retirar esse bônus daqueles que ousem partir em busca de outras paragens ou que se atrevam a correr o “risco de viver” – lanço mão das palavras do psicanalista Contardo Calligaris, que, em sua coluna do dia 17 de agosto na Folha, à maneira de um chiste, faz um jogo com a expressão “risco de vida”, a ela atribuindo um sentido literal (nada a ver com outra polêmica, aquela das aulas de português). Ele cita a filósofa e psicanalista francesa Anne Dufourmantelle (autora de “Éloge du Risque”), para quem

o risco não é tanto um ato pontual quanto uma maneira de ser, um jeito de estar no mundo com coragem, mesmo sem gestos extremos ou momentos de perigo. O risco de quem se arrisca a viver (risco de vida) é aceitar um desejo que nem nós mesmos conhecemos, um novo amor, uma paixão, a liberdade, a infidelidade, o risco de se separar ou de encontrar alguém, o risco de desapontar o outro, o risco de pensar além do que já sabemos, de não repetir as trivialidades compartilhadas.

Ora, Chico está falando de amor em sua canção. É disso que se trata. Amor implica o “risco de viver”, aquele risco que, muitas vezes, não temos coragem de correr por medo do julgamento alheio ou por culpa. Não faltam psicólogos para defender a moral e apaziguar corações inquietos, sob o argumento de que o amor se transforma em amizade etc. e tal – e de que isso é “normal”. Muito justo se o casal assim quiser viver, mas insuficiente diante da revolução que o amor pode fazer se aparecer no caminho de um dos dois. Que, pelo menos, na arte o amor não sucumba a convenções por vezes estéreis e a toda sorte de egoísmos travestidos de “deveres”.

Os que viram machismo na canção de Chico talvez não o vejam em “Ai, que saudade da Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago:

 

Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Não vê que eu sou um pobre rapaz

Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher

Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
E, quando me via contrariado, dizia
Meu filho, o que se há de fazer?

Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade

Nessa canção, o eu lírico se arrepende de ter deixado a mulher (a “verdadeira”) pela amante. É o homem que, seduzido por uma amante interesseira e cheia de luxos, enxerga que a mulher “de verdade” é aquela que passa fome ao lado dele, que não reclama e que não tem a menor vaidade. “Aquilo sim é que era mulher.”

Aqui não se fala propriamente de amor, mas daquilo em que se transformam os casamentos no decorrer do tempo – com sorte, uma relação de companheirismo, resignação e amizade. A “amante”, nesse contexto, é a vilã, a mulher sedutora – e o homem é a vítima dela.

As duas letras mostram atitudes opostas. Na de Chico, a mulher desperta o amor e o homem quer viver o amor, o que pode levá-lo a deixar uma mulher por outra (as duas em pé de igualdade, um amor depois do outro); na de Ataulfo, há dois modelos de mulher: uma é sedutora e interesseira, a outra é resignada e sem vaidade. A “verdadeira” é a que dá menos trabalho. Onde estará o machismo?

De resto, só pra terminar com Chico Buarque, vale lembrar a sua divertida canção “O casamento do pequenos burgueses” (da “Ópera do Malandro”), em que o poeta fala de casamento, não de amor (infelizmente, não encontrei um vídeo com o próprio Chico, mas vale ouvir a canção):

Ele faz o noivo correto
E ela faz que quase desmaia
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a casa caia
Até que a casa caia

Ele é o empregado discreto
Ela engoma o seu colarinho
Vão viver sob o mesmo teto
Até explodir o ninho
Até explodir o ninho

Ele faz o macho irrequieto
E ela faz crianças de monte
Vão viver sob o mesmo teto
Até secar a fonte
Até secar a fonte

Ele é o funcionário completo
E ela aprende a fazer suspiros
Vão viver sob o mesmo teto
Até trocarem tiros
Até trocarem tiros

Ele tem um caso secreto
Ela diz que não sai dos trilhos
Vão viver sob o mesmo teto
Até casarem os filhos
Até casarem os filhos

Ele fala de cianureto
E ela sonha com formicida
Vão viver sob o mesmo teto
Até que alguém decida
Até que alguém decida

Ele tem um velho projeto
Ela tem um monte de estrias
Vão viver sob o mesmo teto
Até o fim dos dias
Até o fim dos dias

Ele às vezes cede um afeto
Ela só se despe no escuro
Vão viver sob o mesmo teto
Até um breve futuro
Até um breve futuro

Ela esquenta a papa do neto
E ele quase que fez fortuna
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a morte os una
Até que a morte os una

 

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“Versos de Natal”, de Manuel Bandeira, trazem memória da infância https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/12/24/versos-de-natal-de-manuel-bandeira-trazem-memoria-da-infancia/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/12/24/versos-de-natal-de-manuel-bandeira-trazem-memoria-da-infancia/#comments Thu, 24 Dec 2015 11:51:07 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=905 Numa crônica de “Andorinha, Andorinha”, Manuel Bandeira discorre sobre seus poemas de Natal. O texto começa assim:

João Condé pediu-me: final sala de leitura

— Bandeira, você quer escrever pra mim a história dos seus poemas de Natal?

— Vou tentar — respondi.

Desobrigo-me da promessa.

Em seguida, fala sobre a concepção de seu poema intitulado “Natal”, de 1913, em que “o Natal não entra (…) senão como pretexto para uma declaração de ternura” e se lembra de seus “Versos de Natal”, compostos quando ele morava no Rio de Janeiro, na rua Morais e Vale, o célebre “beco” que aparece em suas “canções do beco”.

Nesses “Versos de Natal”, o poema recorda os Natais de sua infância. Em suas próprias palavras,

rememoram uma das vivências mais caras de minha infância: os chinelinhos postos atrás da porta do meu quarto de dormir, na véspera de Natal, e encontrados no dia seguinte cobertos de presentes ali colocados pela fada, segundo a encantadora mentira dos verdadeiros mimoseadores.

Rezam assim:

VERSOS DE NATAL

Espelho, amigo verdadeiro, 

Tu refletes as minhas rugas,

Os meus cabelos brancos,

Os meus olhos míopes e cansados.

Espelho, amigo verdadeiro,

Mestre do realismo exato e minucioso,

Obrigado, obrigado!

 

Mas se fosses mágico,

Penetrarias até ao fundo deste homem triste,

Descobririas o menino que sustenta esse homem,

O menino que não quer morrer,

Que não morrerá senão comigo.

O menino que todos os anos na véspera de Natal

Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.

 

Que neste Natal possamos todos procurar nosso espelho mágico e nele encontrar as mais suaves lembranças de carinho e ternura. Aos leitores do blog, feliz Natal! 🙂

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Um poema de Bocage: convite à leitura https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/09/28/um-poema-de-bocage-convite-a-leitura/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/09/28/um-poema-de-bocage-convite-a-leitura/#comments Tue, 29 Sep 2015 00:03:13 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=839  

A 15 de setembro de 1765, nascia na cidade de Setúbal, em Portugal, um dos maiores sonetistas da língua portuguesa. Estamos falando de Manuel Maria Barbosa du Bocage, muitas vezes lembrado pela autoria de poemas eróticos ou satíricos e por uma vida desregrada que lhe rendeu muitos dissabores, até mesmo a prisão. final sala de leitura

Foi o maior representante do Arcadismo português, tendo participado da Nova Arcádia, uma academia de belas-artes. Foi nessa instituição que adotou, como faziam os árcades, um pseudônimo. Criou-o fazendo um anagrama de seu primeiro nome e uma homenagem ao rio Sado, que banha a sua cidade. Foi assim que surgiu Elmano Sadino.

Na sua cidade natal, foi erigida uma estátua em sua homenagem. De autoria do escultor Pedro Carlos dos Reis, a peça, talhada em mármore, foi posta sobre uma coluna coríntia. O monumento, de 12 metros de altura ao todo, foi instalado na praça do Bocage em 1871.

A obra de Bocage está reunida nos três tomos do livro “Rimas”, publicados do fim do século XVIII ao início do XIX. A seguir, vamos degustar um soneto de Bocage que é considerado um autorretrato seu.

Magro, de olhos azuis, carão moreno,

Bem servido de pés, meão na altura,

Triste de facha, o mesmo de figura,

Nariz alto no meio, e não pequeno;

 

Incapaz de assistir num só terreno,

Mais propenso ao furor do que à ternura;

Bebendo em níveas mãos, por taça escura,

De zelos infernais letal veneno;

 

Devoto incensador de mil deidades

(Digo, de moças mil) num só momento,

E somente no altar amando os frades,

 

Eis Bocage em quem luz algum talento;

Saíram dele mesmo estas verdades,

Num dia em que se achou mais pachorrento.

 

O leitor percebe facilmente que algumas palavras não lhe são muito familiares ou mesmo que algumas delas hoje têm sentido diverso daquele que apresentam no texto. Para a boa compreensão da obra, é muito importante considerar a época em que foi produzida e tentar recuperar o sentido que as palavras evocavam então.

Logo de início, o poeta usa o termo “carão” para se referir à própria face. Pode o termo significar apenas uma cara grande, mas também pode ser uma cara feia. Hoje, a palavra é mais usada em seu sentido figurado, ou seja, como sinônimo de repreensão ou descompostura. Uma pessoa pode levar um carão (sofrer admoestação) ou dar um carão (censurar, repreender).

No universo das modelos, coisa bem mais recente, “carão” é a “expressão poderosa e sensual” que as garotas fazem na passarela ou diante dos fotógrafos para se transformarem em verdadeiras mulheres fatais.

Voltando ao nosso Bocage, que se diz “bem servido de pés” e “meão na altura”, ficamos sabendo que o poeta tem pés grandes e estatura mediana. “Facha”, segundo o dicionário “Houaiss” é um termo de uso informal para dizer “face”, datado de 1805 — era, portanto, um termo novo na época de Bocage, caso a sua datação seja mesmo essa.

Na segunda estrofe, aparece o verbo “assistir” numa acepção menos usual hoje, ao menos no Brasil. “Assistir”, no texto, não quer dizer “presenciar” ou “ver” (como em “assistir a um jogo ou a a uma aula”); nesse contexto, o termo significa “morar”. O poeta se diz “incapaz de assistir num só terreno”, revelando sua instabilidade, reforçada nas antíteses de que se vale em imagens como níveas mãos/ taça escura ou zelos infernais/deidades.

Na terceira estrofe, revela-se um lisonjeador de moças, a quem, metaforicamente, chama de “deidades” (divindades), metáfora que,  em seguida, numa espécie de autoironia, ele próprio traduz: “de mil deidades/ (Digo, de moças mil)”, substituindo deidades por moças, o etéreo pelo concreto e, de quebra, invertendo a posição do numeral “mil”, num quiasmo (disposição cruzada da ordem das partes simétricas de duas frases).

Finaliza o soneto (dois quartetos, dois tercetos, versos decassílabos organizados no esquema rímico abba/ abba/ cdc/dcd) resumindo a própria descrição: “Eis Bocage em quem luz algum talento”. Hoje é muito comum vermos as construções “eis aqui” ou mesmo “eis aí”, em que advérbios de lugar reforçam o sentido de “eis”, este também um advérbio cujo sentido é “aqui está”.

A etimologia dessa palavra é incerta, conforme atestam tanto Houaiss como Antônio Geraldo da Cunha. Segundo este, pode tratar-se de forma evolutiva do latim “ex”. Segundo Cegalla, pode provir de “heis” (por “haveis”) ou do latim “ecce”. Gramaticalmente, seu complemento, não sendo um nome, será um pronome pessoal do caso oblíquo (eis-me, ei-lo, eis-nos).

No mesmo verso, temos uma inversão sintática: “algum talento” é sujeito de luz” (forma do verbo “luzir”). Eis Bocage, em quem algum talento luz, brilha, sobressai.

Finalmente, rima “talento” com “pachorrento”, esta uma palavra nova à época do texto (segundo Houaiss, seu primeiro registro data de 1789). Sendo “pachorra” a falta de pressa, o poeta, num dia em que se achou se achou “mais pachorrento” (com tempo de sobra, sossegado), escreveu o poema.

Em textos poéticos, costuma haver grande concentração de recursos de estilo, que passam pelas chamadas figuras de linguagem, mas não se esgotam nelas. A escolha das palavras, sua disposição na frase ou no verso, o uso (ou não) de rimas e de metrificação regular, as imagens evocadas, tudo concorre para a construção e a expressão de ideias e estados de espírito. No exercício atento da leitura, vamos aprendendo a língua e o mundo.

 

 

 

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Hércules-Quasímodo, o sertanejo de Euclydes da Cunha https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/15/hercules-quasimodo-o-sertanejo-de-euclydes-da-cunha/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/15/hercules-quasimodo-o-sertanejo-de-euclydes-da-cunha/#comments Sat, 15 Aug 2015 22:23:08 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=803 É muito provável que, mesmo sem ter lido “Os Sertões”, muita gente conheça a frase que celebrizou a obra máxima de Euclydes (ou Euclides) da Cunha: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. final sala de leitura

Hoje, vamos ler um trecho do terceiro capítulo da segunda parte do livro (intitulada “O Homem”), que começa exatamente com essa afirmação. Para ajudar o leitor, foram postas entre colchetes explicações de alguns termos empregados pelo autor.

Como temos observado, chama a atenção no estilo do escritor a obsessão (no bom sentido!) pelo emprego preciso dos termos e pelo uso do par substantivo/adjetivo.

Procure observar outro traço estilístico da obra: a alternância de parágrafos longos (não raro constituídos de uma só frase bastante longa) com parágrafos muito curtos, de um só período. O parágrafo curto, de alto impacto, sintetiza a reflexão de Euclydes.

Hoje, 15 de agosto, aniversário da morte trágica do escritor, encerro esta sequência de textos da sua obra. Sua leitura é a maior homenagem que se pode fazer à memória do autor. Não se trata de tarefa das mais fáceis, como é preciso reconhecer, mas nisso reside o desafio. Reserve um tempo para ler, longe das inúmeras distrações do mundo real e do virtual.

Boa leitura!!

 

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno [porte elegante, ereto, desempenado], a estrutura corretíssima das organizações atléticas.

É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade [característica daquilo que é feio] típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo [posição elegante, ereta], quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal [susta o movimento do animal puxando as rédeas] para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela [parte da sela em que se apoia a coxa do cavaleiro]. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo — cai é o termo — de cócaras [variante de cócoras], atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.

É o homem permanentemente fatigado.

Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene [perda permanente do tônus muscular], em tudo: na palavra remorada [fala lenta, interrompida], no gesto contrafeito [desfigurado], no andar desaprumado, na cadência langorosa [fraca, enfraquecida] das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida [fraca, sem firmeza] operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas [variante de ‘adormecidas’]. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando [ostentando, exibindo com orgulho] novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes [com presteza, rapidamente], numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar [comum, corriqueiro, usual] do tabaréu canhestro [indivíduo simplório e desajeitado], reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado [gigante amorenado] e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.

Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja — caracterizado sempre pela intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas [longos períodos de desânimo].

É impossível idear-se [idealizar-se] cavaleiro mais chucro [não domado, sem traquejo, grosseiro] e deselegante; sem posição, pernas coladas ao bojo da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura [passo de cavalgadura] dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente [indiferente, desleixada, descuidada], acompanhando morosamente [lentamente], a passo, pelas chapadas, o passo tardo [lento] das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o campião [variante antiga de ‘campeão’] que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dois terços da existência.

Mas se uma rês alevantada [que fica em pé] envereda, esquiva [arredia, arisca], adiante, pela caatinga garranchenta [cheia de galhos tortuosos]; ou se uma ponta [chifre] de gado, ao longe, se trasmalha [escapa, se afasta do bando], ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates [esporas] de rosetas largas [parte móvel da espora, em forma de roda dentada] nas ilhargas [parte lateral do corpo] da montaria e partindo como um dardo, atufando-se [embrenhando-se] velozmente nos dédalos [labirintos] inextricáveis [que não se podem desembaraçar] das juremas [árvores de caule tortuoso].

Vimo-lo neste steeple-chase [corrida com obstáculos] bárbaro [desumano, feroz].

Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem [que se lhe apresentem aos olhos] quebradas [declives de montanhas], acervos [grandes quantidades] de pedras, coivaras [gravetos e troncos soltos], moitas de espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede encalçar [perseguir] o garrote [bezerro] desgarrado, porque por onde passa o boi passa o vaqueiro com o seu cavalo

Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças à pressão dos jarretes [parte da perna oposta ao joelho, pela qual este se flexiona] firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco [tosco, não polido]: emergindo inopinadamente [inesperadamente] nas clareiras [local de vegetação rasteira ou sem vegetação em meio a um bosque]; mergulhando nas macegas [tipo de arbusto} altas; saltando valos [muros; fossos] e ipueiras [charcos]; vingando cômoros alçados [ultrapassando, vencendo dunas ou montes elevados]; rompendo [atravessando], célere [com rapidez], pelos espinheirais mordentes; precipitando-se, a toda brida [a toda a velocidade, à rédea solta], no largo dos tabuleiros [tipos de terreno]

A sua compleição robusta ostenta-se, nesse momento, em toda a plenitude. Como que é o cavaleiro robusto que empresta vigor ao cavalo pequenino e frágil, sustenta-o nas rédeas improvisadas de caroá [planta de cuja fibra se fazem cordas], suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na carreira [lançando-o com ímpeto na estrada] – estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente, torso colado no arção [armação da sela],escanchado [montado] no rastro do novilho esquivo: aqui curvando-se agilíssimo, sob um ramalho [ramo cortado de árvore, grande e seco] que lhe roça quase pela sela; além desmontando, de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal, para fugir ao embate de um tronco percebido no último momento e galgando, logo depois, num pulo, o selim; — e galopando sempre, através de todos os obstáculos, sopesando à destra [equilibrando (coisa pesada) com a mão direita] sem a perder nunca, sem a deixar no inextricável dos cipoais, a longa aguilhada [aguilhão, vara de tanger bois] de ponta de ferro encastoada [arrematada] em couro, que por si só constituiria, noutras mãos, sérios obstáculos à travessia…

Mas terminada a refrega, restituída ao rebanho a rês dominada, ei-lo, de novo caído sobre o lombilho retovado [sela forrada de couro], outra vez desgracioso e inerte, oscilando à feição da andadura lenta, com a aparência triste de um inválido esmorecido [desanimado, triste].

(IN: CUNHA, E – “Os Sertões”, Círculo do Livro, s/d)

Hércules-Quasímodo

A expressão com que Euclydes da Cunha sintetizou sua percepção do sertanejo é dos mais conhecidos oximoros da literatura brasileira. Oximoro é o nome de uma figura de retórica que consiste em combinar palavras de sentido oposto, que, à primeira vista, parecem contradizer-se, excluindo-se mutuamente, mas que, no contexto, reforçam um sentido pretendido.

A força do herói mitológico Hércules e a fealdade de Quasímodo (referência à personagem monstruosa da obra “Notre-Dame de Paris”, de Victor Hugo), na visão do autor, são, juntas, a síntese do sertanejo que ele encontrou em Canudos. Ele vê um homem adaptado ao meio em que vive, cuja aparência “permanentemente fatigada” oculta a força de um guerreiro.

Um pouco de gramática

“Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso.”

Nessa frase, o autor constata que a aparência de cansaço desaparece repentinamente. A estrutura sintática escolhida por ele em “vê-la desaparecer”  nem sempre é empregada no registro oral da língua. É comum ouvirmos “ver ela desaparecer”, “ver ela chegar” etc. Você já notou que há uma diferença entre essas estruturas? Este costuma ser o momento em que as pessoas perguntam qual é, afinal, a forma “correta”.

Vamos tentar não fazer essa pergunta, pois, ao considerar uma forma “correta” e a outra “errada”, estamos  apenas simplificando uma questão complexa. Certamente as duas estruturas coexistem na língua portuguesa, queiramos ou não.

A do texto euclidiano está no registro formal, no qual o sujeito do infinitivo (“desaparecer”) é representado por um pronome de objeto direto (oblíquo/ -la), enquanto a da fala sinaliza possível mudança no decorrer do processo evolutivo da língua (substituição do pronome de objeto direto pelo de sujeito/ -la para ela).

Vamos compreender a estrutura própria do registro formal: existe um grupo de verbos auxiliares (chamados causativos e sensitivos) cujo complemento são orações reduzidas de infinitivo (como a da frase de Euclydes: vê-la desaparecer) ou orações desenvolvidas (ver que ela desaparece). Como esses verbos (mandar, deixar, fazer, ver, ouvir, sentir) são transitivos diretos, a oração que vier a completar algum deles será o seu objeto direto.

Essa estrutura foi, por assim dizer, herdada do latim. Os verbos acima (todos transitivos diretos) regem uma oração infinitiva no caso acusativo (grosso modo, o caso acusativo do latim equivale ao objeto direto do português), cujos elementos apareciam no latim declinados no acusativo. O português não herdou as declinações do latim, mas conservou, nos pronomes pessoais, a distinção entre formas de sujeito (eu, tu, ele, nós, vós, eles) e formas de objeto (me, te, se, lhe, o, a, nos, vos, lhes, os, as).

O sujeito do infinitivo é uma espécie de sujeito no caso acusativo (é sujeito, mas é representado pelo pronome de objeto direto). É por isso que, no registro formal, veremos construções como “mandou-o sair” e “deixe-me ver”, que, em contextos (bem) menos formais aparecem como “mandou ele sair” e “deixe eu ver”.  Note que a substituição do pronome oblíquo pelo reto parece mais frequente na terceira pessoa gramatical (ele, eles).

Procure observar, nos ambientes que você frequenta, qual é a construção mais usada. 🙂

 

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Os singulares higrômetros de Euclydes da Cunha https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/11/os-singulares-higrometros-de-euclydes-da-cunha/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/11/os-singulares-higrometros-de-euclydes-da-cunha/#comments Tue, 11 Aug 2015 12:57:59 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=799 Você sabe o que é um higrômetro? final sala de leitura

Do grego “higr(o)-”, úmido, molhado, chuvoso, e “-metro”, instrumento para medir, higrômetro é o nome genérico dos instrumentos que servem para medir a umidade de gases ou do ar.

Numa passagem da primeira parte do livro “Os Sertões”, intitulada “A Terra”, Euclydes da Cunha descreve o que chamou de “higrômetros inesperados e bizarros”. Vejamos o que ele quis dizer com essa expressão. Vamos à leitura, aqui auxiliada pela definição de alguns termos, postos entre colchetes:

Não a [refere-se à secura da atmosfera, mencionada no parágrafo anterior] observamos através do rigorismo de processos clássicos, mas graças a higrômetros inesperados e bizarros.

Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneio [descarga de canhões] frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes [verdejantes] viçando [vicejando] em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes [luzentes, cintilantes], davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a [sobrepondo-se à] vegetação franzina [de talhe fino].

O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela — braços largamente abertos, face volvida para os céus, — um soldado descansava.

Descansava… havia três meses.

Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da mannlicher [tipo de rifle] estrondada [avariada, quebrada], o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se [vergando-se] à violenta pancada que lhe sulcara a fronte [testa; face], manchada de uma escara [crosta de ferida] preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes…

E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranquilo [adaptado à nova ortografia] sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.

Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimes empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas [ressecadas, sem umidade] e o arcabouço engelhado [esqueleto enrugado] e duro.

À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a montada de um valente, o alferes Wanderley; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar [deslizar], porém, estrebuchando malferido [gravemente ferido], pela rampa íngreme, quedou, adiante, à meia encosta, entalado entre fraguedos [grupo de fragas, rochas]. Ficou quase em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto [saliência] da pedra… E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste [vento forte, típico da região], se lhe agitavam as longas crinas ondulantes…

Quando aquelas lufadas [rajadas de vento], caindo a súbitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos [mudanças bruscas na direção do vento] turbilhonantes [que rodopiam], à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação [ressecamento excessivo] do ambiente adusto [abrasado, de temperatura muito elevada]: cada partícula de areia suspensa do solo gretado [rachado, estriado] e duro irradiava em todos os sentidos, feito um foco calorífico, a surda combustão da terra.

(IN: Cunha, E – “Os Sertões”, Círculo do Livro, s/d)

 

Euclydes usou os adjetivos “inesperados e bizarros” para caracterizar o que, metaforicamente, chamou de “higrômetros”. O termo “bizarro”, embora também signifique “elegante, garboso, valente”, é empregado, não só no texto acima como pela maioria dos falantes brasileiros, como sinônimo de “insólito, excêntrico, estranho”.

O trecho exemplifica o gosto do autor pela descrição pormenorizada, em que alterna termos específicos (note que ele nomeia cada árvore ou plante que encontra: quixabeira, icozeiro, palmatória) com impressões (vale observar os adjetivos que emprega, em expressões como “canhoneio frouxo”, “tiros espaçados e soturnos”, “anfiteatro irregular”, “vale único”, “icozeiros virentes”, “flores rutilantes”, “quixabeira alta”, “vegetação franzina”, “promiscuidade lúgubre”, “fosso repugnante”, “sóis ardentes”, “luares claros”, “estrelas fulgurantes”, “tranquilo sono”, “árvore benfazeja”, “animal fantástico”, “rajadas ríspidas”, “crinas ondulantes” etc.). É quase como se cada substantivo recebesse um adjetivo, sendo este, não raro, um termo que revela a percepção subjetiva do autor.

Vamos destacar duas questões gramaticais, constantes objeto de dúvida, que a passagem bem ilustra.

A primeira delas diz respeito à colocação pronominal. É comum as pessoas terem dúvida sobre a posição do pronome átono quando, mesmo existindo um claro fator de próclise, ocorre uma intercalação de expressão (entre vírgulas) antes dele. Pergunta-se se prevalece a próclise ou se, por haver uma expressão entre vírgulas, a ênclise seria mais adequada.

A orientação que costumo dar aos consulentes é que mantenham a próclise, exatamente como faz Euclydes em algumas passagens do texto acima. Vejamos:

… sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes…

Quando aquelas lufadas, caindo a súbitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos turbilhonantes, à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação do ambiente adusto:…

A oração iniciada pela conjunção “quando” (subordinada adverbial) constitui fator de próclise (quando se lhe agitavam; quando se compunham). O fato de haver elementos intercalados (ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste; caindo a súbitas) não alterou a posição do pronome átono, que se manteve antes do verbo (próclise).

A segunda questão é o emprego das formas “há” e “havia” para indicar o tempo decorrido. Ambas se prestam a isso, mas não expressam a mesma ideia. Estamos aqui no campo da categoria gramatical do aspecto verbal.

Voltemos ao texto para extrair dois exemplos:

  1. Descansava… havia três meses.
  2. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes…

Na primeira das passagens acima, o autor empregou “havia”, no pretérito imperfeito (mesmo tempo verbal em que está a forma “descansava”). Esse tempo, além de indicar ação interrompida (daí o nome “imperfeito”), apresenta o aspecto durativo, ou seja, indica que uma ação se prolonga no tempo.

Ao dizer que o soldado morto “descansava havia três meses”, Euclydes deixa claro que ele ali permaneceu por três meses (quando foi encontrado pelo escritor, fazia três meses que estava lá). Foi, aliás, a sua permanência lá, no clima árido, que o mumificou.

Na segunda passagem, Euclydes afirma que o destino o deixara (pretérito mais-que-perfeito) ali há três meses. Nesse trecho, Euclydes não se refere à duração, mas ao momento exato (aspecto pontual) em que o soldado morreu (morreu há três meses).

Há, portanto, uma diferença entre dizer que algo ocorreu há três meses (ação terminada três meses atrás) e dizer que algo ocorria havia três meses (vinha ocorrendo durante três meses).

Não faltam temas a extrair dos textos de Euclydes da Cunha, mas hoje ficamos por aqui. Espero que tenham gostado da leitura. 🙂

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Euclydes da Cunha recebe homenagens durante a semana https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/09/euclydes-da-cunha-recebe-homenagens-durante-a-semana/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/09/euclydes-da-cunha-recebe-homenagens-durante-a-semana/#comments Sun, 09 Aug 2015 13:00:43 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=797 Anualmente, de 9 a 15 de agosto, São José do Rio Pardo (São Paulo) abriga uma série de palestras e eventos em homenagem a Euclydes da Cunha. A cidade acolheu o escritor, que lá redigiu boa parte de seu principal livro, “Os Sertões”, publicado em 1902.final sala de leitura

A obra, de difícil classificação, um misto de ensaio sociológico com literatura, nasceu da famosa Caderneta do autor. Como repórter de campo do jornal “A Província de São Paulo” (mais tarde “O Estado de São Paulo”), Euclydes esteve em Canudos, sertão da Bahia, acompanhando de perto o desenrolar da sangrenta batalha das forças da recém-implantada república contra a população, que seguia Antônio Conselheiro (1896-97).

O autor não se empenhou apenas na narrativa do combate. Muito mais do que isso, pesquisou a região, seu solo, sua vegetação, seu clima, bem como as pessoas que ali viviam. O resultado de seu trabalho extrapolaria a reportagem, tornando-se uma obra monumental. Ainda que embasado num pensamento determinista (em voga à época), Euclydes deixou-se surpreender pelo que observou e, em contraste com teorias que condenavam a miscigenação, viu no sertanejo “antes de tudo um forte”, o homem adaptado às condições de um meio inóspito.

A leitura de “Os Sertões” é um mergulho no universo do sertão, ali descrito em inimagináveis pormenores. A escrita de Euclydes é, por si só, desafiadora. Sua capacidade de descrever, em termos a um só tempo precisos e poéticos, constitui um estilo único na literatura brasileira.

Durante esta semana, relembrando meus velhos tempos de “maratonista” (é esse o nome dado aos estudantes que participam da Semana Euclidiana, “maratona” de estudos euclidianos), publicarei trechos da obra do autor, cuja leitura, desde já, está recomendada a todos.

Hoje, um trecho da primeira parte de “Os Sertões”, intitulada “A Terra”. Seguem algumas das “primeiras impressões” do autor diante da paisagem árida do sertão:

 

É uma paragem impressionadora.

As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas, e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal cobertos por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em que ressalta, predominantemente, o aspecto atormentado das paisagens.

Porque o que estas denunciam – no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos, no contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada em esgalhos – é de algum modo o martírio da terra, brutalmente golpeada pelos elementos variáveis, distribuídos por todas as modalidades climáticas. De um lado a extrema secura dos ares, no estio, facilitando pela irradiação noturna a perda instantânea do calor absorvido pelas rochas expostas às soalheiras, impõe-lhes a alternativa de alturas e quedas termométricas repentinas; e daí um jogar de dilatações e contrações que as disjunge, abrindo-as segundo os planos de menor resistência. De outro, as chuvas que fecham, de improviso, os ciclos adurentes das secas, precipitam estas reações demoradas.

As forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima e na superfície, sem intervalos na ação demolidora, substituindo-se, com intercadência invariável, nas duas estações únicas da região.

(IN: CUNHA, E. – Os Sertões, Círculo do Livro, s/d)

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Esdrúxulo https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/02/27/esdruxulo/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/02/27/esdruxulo/#comments Sat, 28 Feb 2015 00:37:06 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=747 Não por acaso, foi intitulada “Esdrúxulo” a exposição  que homenageia Augusto dos Anjos por ocasião do centenário de sua morte.

O termo designa aquilo ou aquele que é excêntrico, extravagante, fora dos padrões e, ao mesmo tempo, o verso terminado em palavra proparoxítona. Augusto dos Anjos é o que se pode chamar de um poeta singular.

Sua poesia é conhecida pelo emprego inusitado de termos científicos, talvez os únicos capazes de exprimir não tanto um universo sombrio, mas a consciência da morte como finitude da matéria.

É preciso lembrar que o bardo paraibano viveu seus parcos 30 anos entre o final do século 19 e o início do século 20, período cujo pano de fundo eram teorias como o positivismo, o determinismo e o evolucionismo.

Quem ainda não passou pelas Casa das Rosas poderá fazê-lo até o próximo domingo, 1º de março.

Se  você pretende tirar uma foto para registrar a sua presença lá, saiba que o cenário imita lápides de um cemitério, nas quais se inscrevem alguns dos poemas.

A ANJOS - Poema Negro + Asa de Corvo

Augusto dos Anjos - Idealismo

 

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A Indesejada das gentes https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2014/07/24/a-indesejada-das-gentes/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2014/07/24/a-indesejada-das-gentes/#comments Thu, 24 Jul 2014 13:00:35 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=658 CONSOADA

Quando a Indesejada das gentes chegar

(Não sei se dura ou caroável),

Talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga:

final sala de leitura — Alô, iniludível!

O meu dia foi bom, pode a noite descer.

(A noite com seus sortilégios.)

Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,

A mesa posta,

Com cada coisa em seu lugar.

O poema é de autoria de Manuel Bandeira, poeta que se notabilizou por tratar do tema morte em sua obra.O título do texto, “Consoada”, pode referir-se à ceia da noite de Natal na tradição católica ou a uma leve refeição noturna, sem carne, que se toma em dia de jejum.

Na leitura atenta de um poema, vale observar os possíveis significados de cada termo ou expressão, pois a linguagem figurativa é polissêmica, isto é, aciona, ao mesmo tempo, mais de um significado.

No verso inicial, Bandeira emprega uma antonomásia, ao substituir a palavra “morte” pela perífrase “a Indesejada das gentes”; em seguida, então entre parênteses, o poeta demonstra dúvida sobre o modo de ela se apresentar — “dura” ou “caroável” ( “afável, gentil, afetuosa”) — e sobre a reação dele diante dela.

Os termos “dia” e “noite” são metáforas de “vida” e “morte”, respectivamente. Em seguida, o poeta retoma o uso dos parênteses, como se estivesse expressando algo tomado como ideia secundária: “a noite com seus sortilégios”. “Sortilégio” pode significar tanto “magia ou feitiço” como “sedução, fascínio, encanto” e até mesmo “conspiração ou maquinação”. Todos os significados são cabíveis e complementares no contexto.

Nos versos finais,  “Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,/ A mesa posta,/ Com cada coisa em seu lugar”, vale notar o emprego dos particípios (lavrado, limpa, posta) com valor de adjetivos em função de predicativo do objeto. Na função de predicativo, o adjetivo passa a caracterizar um ser tomado em determinado momento ou circunstância. Quando a morte chegar,  o campo estará lavrado, a casa estará limpa e a mesa estará posta.

O poeta, portanto, sente-se preparado para esse momento. Sente que “cumpriu sua missão”, ou seja, viveu.

Um dos maiores poetas brasileiros do século 20, o pernambucano Manuel Bandeira faleceu com 82 anos de idade, em outubro de 1968. Seu legado estará sempre entre nós.

Nos últimos dias, perdemos João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves e Ariano Suassuna, outros três grandes que nos deixam importante herança. Que seu desaparecimento físico seja apenas a sua passagem para a imortalidade.

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Notas sobre a construção do suspense no conto “A Causa Secreta” (2) https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2014/04/20/a-construcao-do-suspense-no-conto-a-causa-secreta-2/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2014/04/20/a-construcao-do-suspense-no-conto-a-causa-secreta-2/#comments Sun, 20 Apr 2014 16:48:16 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=594  

De volta à seção Sala de Leitura, segue mais um trecho do conto “A Causa Secreta”, de Machado de Assis. final sala de leituraÉ muito interessante observar nesse conto o modo como o autor constrói o suspense. Vamos lá:

Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No ano de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta  da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na Rua de D. Manuel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.  

A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouviu-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo Beco do Cotovelo, Rua de São José, até o Largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No Largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da Praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada.

TINHA-SE FORMADO

Note-se o emprego do hífen, que demarca a ênclise ao verbo auxiliar da locução. Hoje, no português do Brasil, existe certa tendência a omitir esse hífen, como se o pronome “se” estivesse proclítico ao verbo principal (“formado”). Isso decorre da pronúncia brasileira, que confere tonicidade ao pronome átono. Em alguns exames de português, o uso desse hífen ainda é cobrado.

DESCRIÇÃO

Com poucos elementos, Machado consegue caracterizar cenas e personagens, criando a atmosfera de suspense que conduz o texto.  Nesse trecho, vemos o personagem Fortunato pelos olhos de Garcia (“Fez-lhe impressão a figura”), embora não saibamos em detalhes como é essa “figura”. Sabemos apenas que não passou despercebida aos olhos de Garcia. Ficamos sabendo ainda que Garcia não era dado a sair, afinal  ir ao teatro que ficava próximo de sua casa era uma de suas “raras distrações”. Da expressão “raras distrações” podemos inferir como era a vida de Garcia. Machado não perde tempo com detalhes – ele escolhe o que dizer e o que deixar que o leitor deduza. Esse é um dos motivos de sua prosa ser tão instigante. Sem perceber, o leitor é “cooptado” pelo narrador e fica preso até a última linha do conto.

RARAS DISTRAÇÕES/ SINGULAR INTERESSE/ APARECEU ALI …

Em algumas passagens, o autor opta pelo uso do adjetivo antes do substantivo e pelo sujeito posposto ao verbo. Que efeito obtém com essas inversões?  Os adjetivos (“raras”, “singular”) ganham relevo e, como poderá o leitor perceber, eles são fundamentais na construção do suspense. O sujeito posto depois do verbo também reforça a atmosfera de suspense (a ação aparece antes do agente).

A PEÇA ERA UM DRAMALHÃO, COSIDO A FACADAS, MAS FORTUNATO OUVIU-A COM SINGULAR INTERESSE.

O narrador, já em tom de cumplicidade com o leitor, descreve a peça como algo que não deveria ser levado a sério (“dramalhão cosido a facadas”).  Ao usar a conjunção adversativa “mas”, reforça essa ideia e cria oposição entre o ponto de vista do narrador (e do leitor) e o de Fortunato. Alimenta, assim, a desconfiança a respeito da conduta do personagem.  Segue-se a descrição do movimento de seus olhos, que iam “avidamente de um personagem a outro” . O advérbio “avidamente”, que indica o modo de uma ação,  é altamente caracterizador da personalidade de Fortunato. A descrição do personagem não é estática, mas diluída nas suas ações.

DRAMA, DRAMALHÃO E FARSA /ENTROU NUM TÍLBURI.  QUE SABEMOS SOBRE FORTUNATO ATÉ AGORA?

Era médico, sua figura impressionava, assistia avidamente a um dramalhão cosido a facadas, dispensou a farsa (peça ligeira, cômica), dava bengaladas em cães, andava devagar, cabisbaixo, solitário. “Garcia voltou para casa sem saber mais nada”. E nós, leitores, estamos tão desconfiados quanto Garcia. Garcia é o homem comum com quem nos identificamos. O narrador põe lenha na fogueira e está feito o suspense.

Note-se ainda que o fato de a ação transcorrer num local conhecido (lá estão os nomes das ruas) aumenta a adesão do leitor, pois a verossimilhança está criada. As notas da edição Garnier (do volume “Várias Histórias”) informam que o Beco do Cotovelo é a atual Rua Vieira Fazenda  e que a Praça da Constituição é hoje a Praça Tiradentes.

COSIDO E COZIDO

Não vale confundir um e outro, certo? “Coser”, com “s”, é “costurar”, enquanto “cozer”, com “z”, é “cozinhar”.

(Quem quiser retomar o início do conto poderá pôr “A Causa Secreta” no buscador do blog).

 

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