Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Polaridade na língua: à guisa de retrospectiva https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/12/30/polaridade-na-lingua-a-guisa-de-retrospectiva/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/12/30/polaridade-na-lingua-a-guisa-de-retrospectiva/#comments Fri, 30 Dec 2016 14:34:00 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1138 À guisa de retrospectiva, 2016 foi um ano da polaridade também nos assuntos de língua. Não por acaso, já que a língua manifesta nossos anseios, preocupações, sentimentos e, sobretudo, nossa visão de mundo. A divisão está na sociedade e, como não poderia deixar de ser, na língua.

Na semântica, o principal corte apareceu na escolha entre os termos “impeachment” e “golpe” para definir a troca de mãos ocorrida na Presidência do país. A opção por um ou outro passa pela crença ou não na legitimidade do processo. Dito isso, o mais é o que se sabe.

Não se chegará a consenso sobre isso, pelo menos por ora. Vale dizer que os militares chamaram 1964 de “revolução” (e ainda há quem assim se reporte ao fato), mas o termo “golpe” ganhou a imprensa e os livros de história. portugues em dia“Revolução”, nesse caso, é um termo claramente marcado do ponto de vista ideológico.

A polaridade de hoje não parece que vá ser superada tão cedo. Teremos de conviver com ela e com o possível insucesso dos discursos bem-intencionados que tomam as redes sociais no fim do ano, os quais, cheios da alegria do espírito natalino, manifestam o desejo de confraternização independentemente da visão política de cada um. Enquanto a desigualdade existir (e, com ela, a injustiça), haverá polaridade, sobretudo num ambiente de grande circulação de informação, como o propiciado pela internet.

Nada indica que vá ser possível tomar decisões ditas “impopulares”, mais ou menos camufladas pelo discurso algo simplista de que visam ao “bem do país”, sem que haja oposição.  O adjetivo “impopular” e a expressão “para o bem do país”, juntos, exprimem a ideia de que estamos diante de “males necessários”. No mínimo, estamos diante de eufemismos. “Impopular” é aquilo que desagrada ao povo, que contraria a sua expectativa (cf. “Houaiss”). Para uns, “impopular” é basicamente “antidemocrático”, mas, para outros, poderá soar como “austero”.

A propósito, o presidente Michel Temer disse não se importar com a sua impopularidade. Para uns, está assumindo sua falta de compromisso com a população, mas, para outros, está dando um sinal de seriedade, de uma suposta capacidade de resistir ao populismo fácil. Vale a leitura do texto de Bernardo Mello Franco, publicado em 23 de dezembro último na Folha, em que o articulista faz uma reflexão sobre isso.

O “bem do país” deveria ser o bem das pessoas, mas, ao substituir o concreto pelo abstrato (“pessoas” por “país”), o referido “bem”, supostamente advindo das medidas “amargas”, desloca-se para um plano vago, que não coincide necessariamente com o concreto (quem exatamente será o “país”, o qual se beneficia das medidas impopulares?).  A escolha dos termos, como se vê, não é gratuita.

O ano ainda requentou a velha questão do uso do termo “presidenta”, no feminino, quando a ministra Cármen Lúcia, ao assumir a presidência do STF (Supremo Tribunal Federal), afirmou, em resposta a uma indagação do ministro Ricardo Lewandowski, que não queria ser chamada dessa forma por ter estudado a língua portuguesa (“Eu fui estudante e eu sou amante da língua portuguesa. Acho que o cargo é de presidente, né?”).

Mais uma vez, o que vemos é a marcação ideológica do termo. Talvez a ministra não soubesse que a palavra existe há muito tempo na língua (o dicionário “Houaiss” registra o ano de 1812 como data de surgimento documentado da palavra). Muita gente que passa o dia na internet recebendo informação pensa que foi o PT que inventou a palavra “presidenta”. Seria bom, de uma vez por todas, esquecer essa bobagem.

De todo modo, o uso do termo no século 21 é entendido como parte de uma ação afirmativa de gênero. Ele marcava o fato de termos tido, pela primeira vez, uma mulher no exercício da Presidência da República. É claro que ações afirmativas têm, de fato, um viés progressista, pois partem do pressuposto de que existe preconceito – racial, de gênero, social etc. – e de que é preciso atuar de maneira proativa, dia após dia, para ativar a percepção das pessoas e estimular a superação de injustiças vistas como “atitudes naturais”.  Quem acredita que não exista preconceito, que essa conversa não passe de “mimimi” (palavra onomatopaica que ganhou as redes sociais), certamente repugna qualquer ação desse teor.

Em geral, ao que tudo indica, quem escolhe usar “impeachment” (não “golpe”) igualmente não admite usar o termo “presidenta”, certo?  Até aí, tudo bem. A opção pelo termo uniforme (“presidente”), no entanto, é justificada como defesa da correção gramatical, como se esta fosse um corpo de leis impermeável à ideologia. Aviso: a correção gramatical (aqui entendida como a “norma culta”) admite “a presidente” e “a presidenta”. A escolha é de cada um. Tem viés? Toda escolha tem viés. A esta altura, isso já deve estar suficientemente claro.

A língua portuguesa também ganhou a cena com a mesóclise do presidente, ainda interino, Michel Temer. O emprego da forma pouco usual no Brasil não passou despercebido. Acionou, de imediato, a percepção de que estávamos diante de uma pessoa culta, que sabia se comportar linguisticamente.

Não faltaram comparações com o estilo dos governantes anteriores (Lula, que fala como o povo, e Dilma, que, embora formal, tropeça na expressão oral), e Temer, à primeira vista, pareceu ter saído bem na foto. Pelo menos em alguns reavivou um vago sentimento de orgulho da correção gramatical, espécie de valor perdido nos novos tempos. Nas redes sociais, porém, prevaleceu o aspecto cômico da escolha da estrutura gramatical, um tanto afetada, distante da fala da maioria da população, inclusive daquela fatia que domina a norma culta do idioma.

Houve quem visse com bons olhos o que se considerou um estímulo ao uso do português culto (finalmente, alguém que sabe falar o português!), o que denota uma visão conservadora da língua, esta compreendida como um repositório de estruturas e palavras imutáveis.

O fato é que tudo passou a ser filtrado pela polaridade e, nesse contexto, um voto de confiança no novo presidente passaria pela aprovação de seu português (!). Em língua, porém, as coisas não são tão simples assim. Nem que o presidente fosse um líder carismático, coisa que nem de longe ele é, a mesóclise ressuscitaria entre os falantes brasileiros. O máximo que o fato produziu, em suma, foi um sem-número de piadas nas redes sociais, coisa que nem é novidade — afinal, dificilmente Temer vai conseguir desbancar Jânio Quadros seja no uso do português, seja no anedotário.

Outro mimimi de internet foi a mudança da palavra “paraolimpíada” (e seus derivados) para “paralimpíada” e derivados (sem o “o” de olimpíada, de Olimpo) sob o argumento da aproximação com o inglês e o subargumento de que o termo é uma marca comercial, o que, de pronto, libera ou legitima a sua transfiguração.

O problema é que existia a palavra “paraolimpíada” para denominar exatamente o mesmo evento, e os atletas, por sua vez, eram “paraolímpicos”. Em língua, como os linguistas não se cansam de ensinar, as mudanças são fruto do uso, que, soberano, leva à consolidação de uma forma nova.

Os adeptos da inovação acreditam que as pessoas vão usar (e já estejam usando) porque “agora é assim”, já que “ficou decidido pelo Comitê Olímpico Brasileiro” (ou Comitê Límpico Brasileiro?).  Sendo assim, passam a usar a forma e o uso a legitima.  Não deixa de ser um caminho, mas a mudança foi feita em gabinete, não de modo espontâneo pelos usuários da língua, o que dá margem à discussão. Como a inovação já está dicionarizada – à prova, portanto, de contestação (será?) –, para muita gente é fato consumado.

Muito mais simples seria ter adotado o nome do evento em inglês, língua hoje universal. Estaria dado o recado de que o evento é internacional e, portanto, precisa falar inglês. Bem mais simples.

A população aceitou de bom grado trocar paraolimpíada por paralimpíada e paraolímpico por paralímpico para satisfazer a interesses do marketing, mas não parece reagir com tanta naturalidade a demandas linguísticas vindas de ações afirmativas de inclusão, muitas vezes vistas como simples “mimimi”.  Eis um tema que merece mais desenvolvimento e discussão, ao qual voltaremos no ano vindouro.

Vale anotar, acerca dessa questão, que a ministra Cármen Lúcia fez um pedido público de desculpas pelo uso do termo “autista”. Para afiançar que, no julgamento da Operação Lava Jato, o STF demonstraria o mesmo empenho revelado no julgamento do “mensalão”, ela tinha afirmado que os ministros do STF não eram “autistas”. Diante da repercussão negativa, reconheceu a inadequação do uso.  recomendados thais 2

Não poderia deixar de encerrar este texto com a indicação do livro  “Língua e Sociedade Partidas: a Polarização Sociolinguística do Brasil” (Editora Contexto), do professor Dante Lucchesi, que brindou este blog com uma instigante entrevista por ocasião dos debates sobre o Acordo Ortográfico.

A polarização de que fala Lucchesi é a que instaura o preconceito linguístico. Enquanto certa elite vê nas formas lusitanas o padrão de bom uso da língua, as populações que se expressam de outras formas são estigmatizadas, reforçando o apartheid social.

O trabalho de Lucchesi, fruto de longo trabalho de pesquisa, não se contenta em constatar um estado de coisas. O autor tem propostas concretas de ensino da língua. Longe de certos radicalismos, considera a importância de ensinar a norma culta, mas sem o ranço do preconceito. Com um texto envolvente, o autor convida professores e outros interessados no tema a desenvolver uma visão científica da língua, livre, portanto, respostas fáceis, que geralmente não nos levam muito longe. Não à toa, acabou de ganhar o Prêmio Jabuti.

Que 2017 traga esperança e alegria a todos!

 

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Palavras carregam recortes do mundo https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/06/22/palavras-carregam-recortes-do-mundo/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/06/22/palavras-carregam-recortes-do-mundo/#comments Wed, 22 Jun 2016 18:58:29 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=999 Um termo pode revelar mais de quem o usa do que daquilo que deveria nomear. É por essas e por outras que nunca se pode tratar a língua como uma ciência exata. portugues em dia

Aquele que, para alguns, é teimoso ou obsessivo, para outros, pode ser apenas determinado; o que é enfadonho para uns é meticuloso para outros; o irresponsável de uns pode ser o ousado de outros; o que uns chamam de pessimismo outros chamam de realismo. Impeachment ou golpe, eis uma questão do momento (vale lembrar que o que houve em 1964 no Brasil, embora seja comumente chamado de golpe militar, ainda tem quem o chame de revolução).

Como vemos, as palavras carregam uma espécie de recorte da realidade, portanto a escolha de cada uma delas revela o modo como a pessoa vê o mundo.

Não faz muito tempo, era comum usarem a expressão “de cor” em referência a pessoas negras. Tratar uma característica natural de uma pessoa (como a cor de sua pele) com um eufemismo faz parecer que a característica é, de alguma forma, um traço negativo, algo a ser disfarçado. Em geral, quem usava “de cor” no lugar de “negro” o fazia em tom de cochicho, quase como se pedisse ao interlocutor permissão para dizer um palavrão.

POLITICAMENTE CORRETO

Nos Estados Unidos da América, a palavra “nigger” é que é pejorativa, altamente ofensiva. Por lá, usam-se os termos “afro-american” e “afrodescendant”, fruto de ações afirmativas. No Brasil, o termo “afrodescendente” aparece sobretudo em traduções do inglês, mas, salvo engano, não é um termo disseminado entre os falantes.

Entre as ações afirmativas, que visam a dar voz às minorias, está o estímulo ao emprego de termos chamados de politicamente corretos, uma forma de introduzir um recorte livre de preconceitos arraigados. O uso dessas palavras é, portanto, parte de um processo de reeducação.

As pessoas que têm algum tipo de deficiência física ou intelectual costumam ser chamadas de “portadores de necessidades especiais”. Embora essa expressão, que tenta abranger num só grupo pessoas com quaisquer tipos de deficiência, seja usada como politicamente correta, aqueles que ela procura nomear pensam de modo diverso, pois repelem o termo “portador”. Vejamos por quê.

Uma consulta ao verbete “portador” do dicionário “Houaiss” traz-nos, entre vários outros significados, estes dois:

  1. que ou aquele que apresenta certa característica diferencial [vagas para (pessoas) portadoras de deficiência]
  2. infectologia – que ou aquele que se encontra infectado por germes de doença [são (crianças) portadoras de malária]

Já que se buscam formas politicamente corretas (ou afirmativas) de denominar pessoas com deficiência, seria melhor escolher um termo que não servisse também a algo negativo, associado à ideia de doença, sobretudo porque ainda é comum na sociedade a ideia (falsa!) de que a deficiência é uma doença.

O termo “especial”, usado não só na locução “necessidades especiais” como também na alusão a certas síndromes (fulano tem um filho especial), substituiu o antigo “excepcional”, relativo à ideia de “exceção”, que aparece definido no “Houaiss”, entre outras acepções, assim:

  1. diz-se de ou indivíduo que tem deficiência mental [baixo QI (quociente de inteligência)], física [deformação do corpo] ou sensorial [cegueira, surdez etc.]

 

“Especial”, naturalmente, é um termo mais adequado, pois substitui a ideia de exceção pela de especificidade. Como sabemos, no entanto, “especial” carrega fortemente a noção de superioridade (excelente, fora de série, capaz de evocar coisas boas, aquilo que tem vantagens extras etc.), o que pode fazer parecer que se está empregando um eufemismo. O emprego de “necessidades específicas” talvez fosse mais adequado.

“Específico”, todavia, não resolve o emprego genérico pretendido por quem diz ter um “filho especial” (não se diria “específico” nesse caso, em que se faz alusão, geralmente, a alguma síndrome). Não é difícil perceber que estamos num terreno delicado, portanto sujeitos a errar na tentativa de acertar.

UM NOVO OLHAR, UMA NOVA ATITUDE

Certamente mais importante que os termos é a atitude que os acompanha. Embora seja bem-intencionado (e importante), o vocabulário politicamente correto, por si só, não basta. É preciso reeducar o olhar a fim de ver o outro como outra possibilidade, outra condição, outro modo de estar no mundo. Isso significa não ver o outro filtrado pelo deficit, pelo sinal negativo, mas apenas como diferente, se tanto.

Não poderia aqui deixar de indicar a leitura do comovente texto de Gregório Duvivier, publicado na Folha, em que, em seu habitual estilo descontraído, trata dessa questão com muita sensibilidade.

recomendados thais 2“MALACABADO”

Menos ainda poderia deixar de citar todos os textos do blog Assim Como Você, de Jairo Marques, colunista da Folha, que, há vários anos, vem trabalhando nesse processo de reeducação do olhar das pessoas.

Jairo, ora provocador em sua linguagem, ora comovente em suas descrições, mas, sobretudo destemido, porque não teme mostrar suas emoções, acaba de publicar seu primeiro livro.

Desde o título, “Malacabado”, o autor desafia o esforço da linguagem politicamente correta. Não quer, no entanto, dizer que esse empenho não seja válido. Ao dizer “malacabado”, engolindo o hífen da palavra e dando a ela um tom jocoso, Jairo provoca o leitor (eu sei que é assim que você me vê). Paraplégico desde os seis meses de idade, em decorrência da poliomielite, o autor vai narrando histórias de sua vida, que fazem chorar, mas também fazer rir ou, mais que isso, fazem refletir.

Quem estiver em São Paulo na próxima terça-feira, 28 de junho, poderá, a partir das 18h30, trocar um dedo de prosa com o Jairo Marques, que lançará o seu “Malacabado” na Livraria Martins Fontes, da avenida Paulista (a loja fica no número 509).

 

 

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“Que horas ela volta?” https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/01/04/que-horas-ela-volta/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/01/04/que-horas-ela-volta/#comments Mon, 04 Jan 2016 22:02:15 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=909 Alguns leitores ficaram incomodados com o título do último filme de Anna Muylaert, em que Regina Casé dá show de interpretação na pele da empregada doméstica Val.  Afinal, não estará faltando um “a” antes do “que”?

A resposta é positiva quando consideramos o registro formal do português. Se voltamos às 7h ou às 8h, com a preposição “a”, é claro que, pelo menos em tese, a preposição deve anteceder o pronome interrogativo: a que horas ela volta? recomendados thais 2

Digo “em tese” porque qualquer falante do português do Brasil pode perceber facilmente que, no registro informal, essa preposição tende a ser apagada.

E não foi outro o motivo da escolha do título do filme, que se explica logo na cena inicial, quando o menino, praticamente criado pela empregada, pergunta a ela qual seria o horário de chegada da mãe – para ouvir em seguida um “só Deus sabe” e ganhar um abraço de cumplicidade afetuosa.

Vale notar que esse traço linguístico tem largo uso inclusive entre as pessoas das camadas mais escolarizadas da sociedade: construções como o filme que eu assisti, a rua que eu moro, a hora que eu cheguei e outras parecidas são ouvidas com muita frequência. Isso não significa, é claro, que sejam a forma adequada ao registro formal, tanto escrito como oral, mas são fato linguístico.

A questão merece aprofundamento, mas, por ora, não quero perder a oportunidade de recomendar vivamente aos leitores que assistam ao filme.

Os diálogos são muito precisos; com poucas palavras e situações bem escolhidas, a diretora consegue revelar o cinismo estrutural da relação entre os patrões e a empregada doméstica, que é “parte da família”, só que não, como se diz por aí.

O que se vê o tempo todo é o discurso edulcorado dos patrões, em que se manifesta o que devem considerar respeito pela empregada, sem se dar conta de que o verdadeiro respeito se mede mais pelas ações que pelas palavras.

O descompasso entre a fala de gente educada e as condições de vida da empregada, que mora apertada num quartinho da área de serviço de uma luxuosa residência, a todo momento fisga o espectador.

A “patroa” é uma estilista, que, numa entrevista filmada nas dependências de sua casa, instada a definir “estilo”, dirá que “não tem segredo, é ser o que você é”.

Cheia de “estilo”, a filha da empregada rouba a cena exatamente porque foge ao “script” de “filha da empregada”: a moça, vinda do Nordeste para prestar vestibular em São Paulo, acaba instalada na casa da patroa de sua mãe como hóspede da família.

A presença da jovem é que revelará o conflito latente na relação e que desencadeará um processo de tomada de consciência e de transformação. Pode ser que essa transformação ainda vá demorar na vida real, mas o filme dá uma bela chacoalhada em quem acha muito “natural” distinguir o sorvete da patroa do sorvete da empregada e continuar dizendo que esta é uma “pessoa da família”.

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Drummond, Portinari e Cervantes na ponta das sapatilhas https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/11/19/drummond-portinari-e-cervantes-na-ponta-das-sapatilhas/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/11/19/drummond-portinari-e-cervantes-na-ponta-das-sapatilhas/#comments Thu, 19 Nov 2015 18:49:51 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=860 Nada mais instigante que o encontro e o entrelaçamento de diferentes linguagens artísticas. É isso o que os amantes da arte, em suas mais variadas manifestações, podem degustar no espetáculo “O Sonho de D. Quixote”, balé levado ao palco pela São Paulo Companhia de Dança, em versão do clássico criada por Márcia Haydée.recomendados thais 2

Portinari 2Em cena, a par de um corpo de bailarinos cada vez mais amadurecido, que, para além de dançar, aceita o desafio da linguagem teatral, expressa em gestos e fisionomia, estão reproduções dos belíssimos desenhos feitos por Candido Portinari em 1955/56, baseados no “Dom Quixote de La Mancha”, de Cervantes.

Não bastasse isso, compõem o espetáculo versos que Carlos Drummond de Andrade criou em 1972 com base nesses mesmos desenhos, publicados no ano seguinte no álbum “D. Quixote, Cervantes, Portinari, Drummond” e posteriormente revistos para publicação no volume “As Impurezas do Branco”, reeditado pela Companhia das Letras em 2012.

A tradicional música de Ludwig Minkus (1826-1917) ganhou, na versão de Haydée, o violão (espetacular) de Norberto Macedo (1939-2011), em composições inspiradas em Portinari e Drummond.

 

                 Soneto da Loucura – Carlos Drummond de Andrade

A minha casa pobre é rica de quimera
e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.

Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.

Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto em meu rocim, corisco, espada, grito,
o torto endireitando, herói de seda e ferro,

e não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas.

 

Haverá sessão extra do espetáculo no próximo sábado, 21/11/15, às 15h00.

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