Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 De ofensas e elogios https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/07/20/de-ofensas-e-elogios/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/07/20/de-ofensas-e-elogios/#respond Fri, 20 Jul 2018 17:06:12 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/GILMAR-LAXANTE-Pedro-Ladeira-Folhapress-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1281 “O maior laxante do Brasil”. Foi assim que o promotor Fernando Krebs, do Ministério Público Estadual de Goiás, se referiu ao ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal). Muita gente deve ter achado graça da metáfora jocosa (Gilmar Mendes solta quem está preso na penitenciária, enquanto o laxante solta o que está preso no intestino…), mas o ministro do STF não deixou barato: apresentou queixa-crime contra o promotor de Goiás e pede que este seja condenado por injúria e difamação qualificada.

Ofender (isto é, ferir, machucar) o outro por meio de palavras é coisa muito antiga, daquelas que existem desde que o mundo é mundo. O teor do xingamento, o contexto, a intenção, tudo isso pode agravar ou atenuar a ofensa, mas é certo que nem só os tabuísmos ou palavrões têm o condão de magoar.

Os palavrões constituem em si linguagem rebaixada, portanto ferem o decoro. Geralmente estão associados às práticas sexuais (o leitor me poupe de fazer uma lista) e, muitas vezes, às necessidades fisiológicas (“cagada” no lugar de “estupidez” ou coisa errada, por exemplo). “Laxante” é apenas um remédio, mas a associação à sua ação medicamentosa é imediata e nos remete a uma imagem desagradável. O fato de a declaração ter sido pública tornaria a situação vexatória, mas, ao que tudo indica, a informalidade e o gosto pelo chiste, tão próprios das interações nas redes sociais, parecem amenizar o efeito ofensivo – em outras palavras, ninguém fica chocado com a declaração do promotor (o que não significa que não seja ofensiva).

Associação com animais também é algo comum na hora de xingar (e ser xingado, é claro): asno, burro, porco, cachorro, veado, cavalo, macaco, galinha, piranha. Alguns traços do comportamento dos animais são selecionados e metaforicamente associados àquilo que representa algum demérito. Em muitos casos, alguns desses termos traduzem preconceitos, o que torna as coisas mais graves, de modo que o feitiço vira contra o feiticeiro: certos xingamentos (por exemplo, chamar o outro de maloqueiro, favelado, veado, macaco, galinha) dizem mais de quem xingou do que de quem foi alvo do xingamento.

Insultos à inteligência ou ao excesso de astúcia mantêm-se em pleno uso: ser tolo, palerma, parvo, bobo, paspalho, simplório, tapado, trouxa, pacóvio ou toleirão não engrandece ninguém, e o mesmo vale para trambiqueiro, trapaceiro, bilontra, burlão, caloteiro, desonesto, escroque, tratante, velhaco, golpista ou vigarista.

Ser “moderno” é sempre bom, logo ser “antigo” – ou “antiquado” – é ruim. Novo é bom, mas velho é ruim, é “pré-histórico” ou do “tempo do onça”. “Dinossauro” é o que resiste à mudança – péssimo, portanto. Bom é ser “antenado”, ou seja, estar perfeitamente inserido no modo de vida contemporâneo, disposto a absorver o máximo possível de informações.

Chamar alguém de “infeliz” hoje, quando todos esbanjam felicidade nas redes sociais, é quase um ultraje. Ser infeliz (e até estar triste) é ter fracassado de alguma forma num mundo de bem-sucedidos e vencedores.

“Mesquinho”, “pão-duro” e afins continuam sendo ofensivos, pois, embora o egoísmo pareça ser um traço marcante do nosso tempo (e assumido como normal), as pessoas ainda consideram pouco educado demonstrá-lo. O repertório da saúde mental e/ou da psicanálise é largamente usado para xingar o outro: neurótico, histérica, psicopata, esquizofrênico, esclerosado, senil, autista ou bipolar hoje servem para ofender (particularmente, acho de muito mau gosto). Note-se que antigamente o adjetivo “lazarento” exercia essa mesma função (a lepra era chamada de “mal de Lázaro”, e “lazarento”, aquele que fora acometido pela doença que hoje é chamada de hanseníase, era uma espécie de ofensa).

Do ponto de vista formal, muitas vezes, é a aposição de um sufixo que confere à palavra o seu tom pejorativo: poetastro, bobão, beberrão, padreco, jornaleco, palavroso, pinguço, velhusca, porcalhão, populacho, gorducho, portuga, sargentão, gerentona, chefete etc. E não nos esqueçamos do “juizeco de primeira instância”, expressão usada pelo senador Renan Calheiros, já comentada aqui.

Enfim, o repertório de ofensas – como tudo na língua – é vasto e móvel, claramente relacionado aos costumes e valores da sociedade. Os tabuísmos tendem a ofender os mais conservadores; para os jovens, falar palavrão pode ser algo libertador, uma forma de contestar os valores vigentes – nem sempre com valor ofensivo. 🙂

 

 

 

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Com emoção e ironia, Machado de Assis tratou da escravidão https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/11/20/870/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/11/20/870/#comments Fri, 20 Nov 2015 10:54:52 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=870 Machado de AssisNeste Dia da Consciência Negra, os leitores do blog estão convidados a relembrar dois contos de Machado de Assis (1839-1908), “Pai contra Mãe” e “O Caso da Vara”, cujo tema é a escravidão.

 

Pai contra Mãe (trecho inicial)

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas.

Mas não cuidemos de máscaras. O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal.  [continua]

O Caso da Vara (trecho inicial)

Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano, foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava, finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não, lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria coisa útil. Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor:

Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.

– Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom. A verdadeira grandeza é chã. Moço…

Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. [continua]

Nesses dois textos, o pano de fundo é o cotidiano da escravidão, que o autor mostra com a naturalidade de quem apenas compõe o cenário de uma história. Usa a ironia na escolha dos elementos descritivos, jogando para um aparente segundo plano elementos essenciais ao desenvolvimento do enredo e, sobretudo, ao seu desfecho. Adão segunda edicao thais

Em ambas as histórias, Machado critica, sem estardalhaço ou sentimentalismo, a torpeza da escravidão. Põe em cena personagens marcados pela frouxidão de caráter, cada qual prestes a sacrificar a ética em nome de seus interesses — afinal, paira uma atmosfera de amoralidade, para dizer o mínimo, numa sociedade que não se envergonha da escravidão.

Em “Pai contra Mãe”, a trama é centrada num homem que, sem inclinação para o trabalho, vivia de capturar escravos fugidos, ofício tão legítimo quanto a moral vigente à época; em “O Caso da Vara”, o personagem que conduz a linha narrativa é Damião, um seminarista fugitivo que precisa dos favores de uma certa viúva, amiga de seu padrinho, a única pessoa que poderia interceder junto a seu pai para devolver-lhe a liberdade sequestrada pela vida religiosa, para a qual, por certo, lhe faltava a vocação.

A obrigação de ir para o seminário para satisfazer a família também é um tema abordado por Machado também em “Dom Casmurro”, em que a promessa de entregar o filho ao seminário é renegociada e, suprema ironia, Bentinho é trocado por um escravo, a quem não caberia escolha. Esse é mais um componente da época.

Em ambos os contos, Machado habilmente põe em confronto pessoas que vivem situações semelhantes, mas que se encontram em posições antagônicas na escala social.

Em “Pai contra Mãe”, como resume o próprio título, um pai e uma mãe vivem o dilema de desejar salvar o próprio filho da desgraça. O pai é o “caçador” de negros fugidos, que precisa do dinheiro da gratificação para evitar que seu filho recém-nascido vá para a roda dos enjeitados; a mãe é a escrava grávida, a “caça” que será entregue à sanha de seu proprietário e espancada até abortar o filho.

Em “O Caso da Vara”, são dois jovens, o seminarista Damião e a negra Lucrécia, definida como uma “cria” da casa da viúva que, sob a batuta da vara de marmelo, ensinava meninas como ela a fazer renda de bilro. A situação da jovem, advertida por ter achado graça nas pilhérias do rapaz (o rosto já marcado de castigos anteriores), comoveu em silêncio o seminarista, que prometeu a si mesmo proteger a menina de novas punições. Cumprir a promessa, todavia, era arriscar-se a perder o apoio da viúva, imprescindível na matemática dos interesses e da política familiar.

Nos dois contos, a compaixão cede ao egoísmo  e a moral se ajusta às circunstâncias. O final feliz de um é a tragédia do outro, como, aliás, a vida real, diferentemente dos romances românticos da segunda metade do século 19, nos lembra todos os dias.

Boa parte dos críticos vê nas narrativas curtas da segunda fase do trabalho de Machado seu momento de auge, quando atinge a depuração do estilo, o melhor da fina ironia e da escolha precisa dos termos. As narrativas condensadas parecem favorecer a estratégia de elaboração do enredo — a imaginação prodigiosa domada pela perspicácia da razão.

[texto originalmente publicado no caderno “Fovest”, da Folha de S.Paulo, em 12/1/2010]

 

 

 

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