Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Educação deve ser antídoto a discurso de ódio https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/06/18/educacao-deve-ser-antidoto-a-discurso-de-odio/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/06/18/educacao-deve-ser-antidoto-a-discurso-de-odio/#respond Thu, 18 Jun 2020 21:49:48 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/Apoiadores-Bolsonaro-Pedro-Ladeira-Folhapress.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1509 Não há dúvida de que tudo o que atenta contra a liberdade de expressão merece repúdio. Pelo menos em bases racionais, ninguém se atreve a defender o contrário. Essa situação aparentemente cria uma cilada para os defensores da democracia quando postos diante da circulação do discurso de defesa do fim da própria democracia, que aparece de variadas formas, como apologia de racismo ou homofobia e incitação à perseguição de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), entre outras.

Se sou democrata, estou obrigado a defender o direito de qualquer pessoa a dizer qualquer coisa –e, por certo,  discursos racistas ou totalitaristas padecerão de graves defeitos de argumentação, o que, em si os levará para o lixo da história. Embora seja lógico, esse raciocínio pode ser um tanto simplista, pois pressupõe um embate racional de ideias, com disputa de argumentos, ou seja, um gênero específico de produção discursiva.

Ocorre, porém, que os defensores de preconceito, ditadura, fechamento de Congresso, perseguição de ministros, lançamento de bombas no STF e coisas do gênero não estão escrevendo textos argumentativos com vistas a contribuir para o debate de ideias.

Em suma, importa não apenas o que se diz mas quem diz, como diz, em que circunstâncias diz, em que lugar diz, com que intenção diz (vale rever a teoria dos atos de fala de Austin, revista por John Searle). É por isso que uma frase como “Perdeu, madame”, para efetivamente ser uma ameaça e levar a uma ação específica (entrega dos pertences), requer certo agente e circunstâncias. Se ditas por um assaltante munido de uma arma, as palavras levam à ação; se ditas numa brincadeira entre amigos, por exemplo, podem provocar o riso.

É preciso, portanto, trazer para essa discussão outros fatores que convergem para o significado do que se diz e, sobretudo, a análise da intenção de quem fala e dos elementos do discurso capazes de induzir ações. O que se convencionou chamar de “discurso de ódio”, por exemplo, deixa claro que o que está em jogo são emoções, não razão ou argumentação lógica. Pode-se dizer que esse tipo de discurso constitui um gênero textual. Ao pôr em circulação certos afetos, instiga mais e mais o ódio e, como consequência, desencadeia ações potencialmente criminosas. É razoável, por complexo que seja, buscar formas de responsabilizar os disseminadores desse tipo de discurso, que, ao que tudo indica, não se combate apenas com argumentos lógicos.

Há dois anos, no calor da campanha política que levaria o clã Bolsonaro ao poder, o Enem teve de alterar um de seus critérios de correção de redações por iniciativa de um certo movimento intitulado Escola sem Partido. Até então, o participante que defendesse no texto ideias que afrontassem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, teria sua redação eliminada.

Não faltaram acusações de que a prova desrespeitava o princípio da liberdade de expressão, e muita gente entrou no debate para defender o direito que tinham os estudantes de manifestar seu racismo e outros eventuais preconceitos num exame nacional que equivale a um vestibular para as universidades públicas. O presidente, depois de eleito, chegou a dizer que analisaria, ele próprio, as questões da prova.

De lá para cá, o cenário piorou muito. Aquela foi uma falsa discussão, pois a liberdade de expressão não estava ameaçada. A Declaração Universal dos Direitos Humanos resolve o paradoxo ao enunciar que seus signatários se comprometem a seguir todos os seus preceitos, entre os quais está o da liberdade de expressão, não apenas um ou outro item da cesta. Em suma, quando põe em risco a liberdade como um todo ou contradiz os demais artigos do documento, a liberdade de expressão deixa de ser considerada como tal.

A antiga regra do Enem estimulava os professores a fazer o debate de ideias com os alunos à luz dos direitos humanos, que hoje andam tão fora de moda. O exame continua pedindo aos participantes que respeitem esses princípios, mas mudou o critério de pontuação, deixando de anular os textos que desobedecem a essa instrução. Independentemente de quantos fossem os estudantes que desejassem manifestar esse tipo de ideia, o que chamou a atenção na ocasião foi o aspecto simbólico da reivindicação, que, apoiada por pais de alunos, acabou sendo atendida.

O problema é estarem os jovens à mercê das redes sociais, onde nem sempre há espaço (ou tempo) para refletir sobre as questões. O ritmo de escrita e leitura, bem como o tipo de comentário e o catálogo de emoções (emojis), são dados pela plataforma. O único critério de validação de uma ideia é o quantitativo (quantidade de likes, de seguidores etc.), que, como se sabe, é frágil, pois a quantidade pode ser produzida artificialmente por robôs e algoritmos.

Uma publicação, por mais absurda que seja, se for chancelada por milhares ou milhões de likes, tenderá a produzir mais adesão. Nesse ambiente, cuja lógica é a da publicidade, prevalece o discurso da emoção, seja ela qual for. Quem “lacra” nas redes sociais, muitas vezes, é quem diz uma frase de efeito, não raro uma grosseria –e, quando menos esperamos, estamos todos discutindo as piadinhas sexistas de Eduardo Bolsonaro ou as manifestações racistas de uma youtuber qualquer.

O pior de tudo é que a educação, que seria a melhor arma para levar as pessoas a distinguir o joio do trigo, o fake do verdadeiro, o fato da mentira, o ódio da razão, vem sendo destruída. A depender do sr. Paulo Guedes, deveríamos resgatar do baú da ditadura a disciplina escolar OSPB (organização social e política do Brasil). O sr. Weintraub, finalmente, deixa o ministério, mas não sentimos alívio, pois, nesse governo, tudo sempre pode piorar, mesmo que pensar em algo pior seja um grande desafio à nossa imaginação.

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O mistério da grafia de ‘intubação’ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/05/13/o-misterio-da-grafia-de-intubacao/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/05/13/o-misterio-da-grafia-de-intubacao/#respond Wed, 13 May 2020 19:52:00 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/Blog-Intubação.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1490 Em meio ao noticiário da pandemia, tem sido recorrente uma questão de ortografia que talvez em outro momento passasse despercebida. Ganha frequência e importância o uso dos termos “intubar” e “intubação”, cujo “i” inicial parece um enigma para alguns leitores. Por que não “entubar” e “entubação”?

É possível que muita gente associe o prefixo “i(n/m/r)-” apenas à ideia de negação (legal/ ilegal, feliz/ infeliz, provável/ improvável, real/ irreal etc.). Ocorre, porém, que o prefixo “i(n/m)-”, entre outros sentidos, também pode indicar movimento para dentro, caso em que se opõe ao prefixo “e(x)-”, como atestam, por exemplo, os seguintes pares opositivos: interno/ externo, importar/ exportar, imigrar/ emigrar, imergir/ emergir, incluir/ excluir, inclusivo/ exclusivo, inspirar/ expirar, intubar/ extubar, intubação/ extubação.

Em resumo, usa-se o prefixo “i-” com dois sentidos, o de negação (útil/ inútil, legível/ ilegível) e o diretivo, cuja origem está no advérbio-preposição do latim “in”.  Este último tem o sentido básico de “entrada”, ou seja, de movimento para dentro (inserir), que pode ser ampliado para o de aproximação (inerente), de hostilidade, esta entendida como um tipo de aproximação (insurgir), ou mesmo para o de avesso, tipo específico de movimento para dentro (inverter), e ainda para o de mudança de estado (intumescer).

Esse segundo “in-”, denotador de movimento para dentro, está na origem da variante popular “en-”, que nos dá um grande número de termos, entre os quais o próprio verbo “entrar” (do latim “intrare”). É também essa variante a que mais aparece nas formações que indicam mudança de estado (entardecer, envelhecer, enfastiar-se, endividar-se, ensandecer) – diga-se, aliás, uma formação com grande fertilidade na língua hoje, capaz de gerar neologismos.

Quem chegou até aqui já observou que o par in-/en-, pelo menos em alguns casos, sugere a oposição erudito/ popular. É por isso que certos termos iniciados por “in-”, calcados na forma latina, não têm o sentido tão claro para o falante do português.

No âmbito da medicina, a tendência é optar pelas formas eruditas (infarto/ infartar em vez de enfarte/ enfartar; intubar/ intubação em vez de entubar/ entubação). Vale lembrar que o latim é a principal fonte da nomenclatura científica internacional.

Existem, em português, com direito a registro em dicionários, as formas “entubar” e “entubação”, que são variantes populares de “intubar” e “intubação”. Ocorre, porém, que as grafias com “e-” inicial apresentam outros significados para além do sentido médico de introduzir tubo na traqueia para criar uma passagem de ar.

“Entubar” também quer dizer “dar formato de tubo” (Ele entubou a folha de papel), “entrar no tubo e nele surfar” (O surfista vai entubar aquela onda?) e ainda, na condição de tabuísmo, “manter coito anal”.

Em inglês, o termo é “intubation”; em italiano, é “intubazione”; em espanhol, “intubación”; em francês, “intubation”; em holandês, é “intubatie”; em romeno, “intubatie”; em dinamarquês, “intubation”; em alemão, “intubation”. Enfim, todos remetem ao latim.

Dicionários como “Houaiss” e “Priberam” admitem as duas grafias (intubação e entubação), “Aulete” (em versão eletrônica) revisou seu verbete original “intubação” e passou a admitir “entubação”. “Aurélio”, em sua quinta edição, distingue “entubar” (dar feição de tubo a) de “intubar” (Med. introduzir cânula na traqueia de), não admitindo, como se vê, a forma “entubar” no sentido médico.

Essa oposição, que o “Aurélio” reforça, é a mesma que se mantém no par incubar/ encubar. “Incubar” é chocar (incubar ovos) ou possuir em estado latente (incubar vírus, incubar ideias); “encubar” é “recolher em cuba” (encubar o vinho). Quanto a esses termos, os dicionários estão todos de acordo: “incubar” é uma coisa e “encubar” é outra.

Quanto a “impostar” e “empostar”, esta segunda já se fixou como variante da primeira, que é idêntica à grafia italiana (impostar a voz). “Intitular” continua com “i”, sem variante reconhecida em dicionários.

Vemos, portanto, que, em alguns casos, “in-” e “en/m-” são apenas variantes, que sinalizam uso erudito ou popular, mas, em outros, levam a termos de diferentes significados. A escolha de “intubação” pela Folha reflete a escolha feita no âmbito da medicina.

PS. As aspas simples (no lugar das aspas duplas) do título são empregadas por razões técnicas, alheias à vontade da autora. Sabemos que esse não é o uso correto em língua portuguesa, mas assim o fazemos para que o texto não perca a configuração em determinados dispositivos. Agradecemos a compreensão.

 

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Ministério ‘homenageia’ professor com português claudicante https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/10/16/ministerio-homenageia-professor-com-portugues-claudicante/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/10/16/ministerio-homenageia-professor-com-portugues-claudicante/#respond Wed, 16 Oct 2019 21:36:07 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/Astronauta-e-Bolsonaro-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1436 Passou mais um Dia do Professor. Em meio às frases de reconhecimento da importância da categoria e às homenagens afetuosas, na celebração virtual das redes sociais, apareceu uma mensagem do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações que roubou a cena no Twitter.

A peça publicitária do governo, de tão claudicante, parece ter sido produto da negligência, do desleixo, de flagrante imperícia – ou de tudo um pouco. No mínimo, o redator escolhido para escrever em nome do ministério ainda não tem o domínio da escrita: comete erros primários, não distingue vírgula de ponto, tropeça na sintaxe, ainda não entendeu para que serve um pronome relativo e anda às turras com a crase, como se pode ver a seguir, na reprodução da mensagem, e abaixo na bandeira verde-amarela:

Hoje é o dia do profissional, que sem ele, nada seria possível, este profissional é o professor.

Todos que venceram e se tornaram ícones, referência, e mudaram a história da humanidade para sempre, um dia tiveram um professor que os encaminhou, que os ensinou e lhes abriu a mente para receber o conhecimento, e ir além.

À vocês, profissionais do ensino, que se dedicam de corpo e alma à missão de formar pessoas, de qualificar profissionais, toda a gratidão e os cumprimentos pelo seu dia, parabéns mestres, parabéns professores.

A ciência e a tecnologia, que são o alicerce de muitas nações desenvolvidas, dependem muito deste profissional e de sua dedicação em sala, não apenas para ensinar, mas, com o seu amor pela profissão, e por seus alunos, fazer com que tomem gosto por estas áreas, incentivando os à dar o primeiro passo a na direção do conhecimento .

O Mês de Outubro traz o dia do professor, e trará também a Semana Nacional de Ciência em Brasília, e o mês da Ciência e Tecnologia em todo o Brasil. de 21 a 27 de Outubro, participe da SNCT em Brasília, ou em sua cidade.

Não nos cabe, porém, condenar o escriba, que, por certo, fez o melhor que pôde. Condena-se, naturalmente, o desmazelo de quem o escolheu e deixou que se publicasse um texto tão constrangedor como homenagem aos professores. O mais triste é que a displicência e a bisonharia não nos deixam esquecer o desprezo terraplanista  que os novos donos do poder têm pela ciência, pela pesquisa e pela educação como um todo.

Se a mensagem tivesse sido escrita por um aluno num cartão endereçado a seu professor, seu conteúdo, por certo, valeria muito mais que a forma. Uma mensagem oficial do governo, porém, é avaliada em outro nível: seu emissor é um ente abstrato, seu conteúdo é político e sua forma não deveria estar saltando aos olhos por causa de incorreções gramaticais. Sendo uma mensagem aos professores, a situação é ainda mais irônica.

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Novo livro de Carlos A. Faraco e Eduardo Vieira ensina a escrever na universidade https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/09/30/novo-livro-de-carlos-a-faraco-e-eduardo-vieira-ensina-a-escrever-na-universidade/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/09/30/novo-livro-de-carlos-a-faraco-e-eduardo-vieira-ensina-a-escrever-na-universidade/#respond Mon, 30 Sep 2019 14:35:42 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/Sala-de-leitura-na-Biblioteca-Pùblica-de-Nova-York-Phil-Roeder-Reprodução-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1425 Um dos primeiros desafios do estudante universitário é lidar com a rotina de ler e escrever. A quantidade de leituras a fazer, o tempo de executá-las e a sua contrapartida, que é a produção textual, provocam em muitos um impacto inicial, que não raro se alia a dificuldades herdadas de sua vida escolar pregressa.

Não por outro motivo, os pesquisadores Carlos Alberto Faraco (ex-reitor da Universidade Federal do Paraná), autor de vasta produção acadêmica na área de linguística, e Francisco Eduardo Vieira, linguista e professor na Universidade Federal da Paraíba, reuniram suas experiências como docentes universitários e se lançaram na empreitada de escrever uma coleção de livros para promover, em suas palavras, o “letramento universitário”.

Os autores conversaram com o blog por ocasião do lançamento do primeiro volume da coleção “Escrever na Universidade” (editora Parábola), intitulado “Fundamentos”.

Faraco conta que há, entre os professores do ensino superior, uma percepção de que muitos estudantes têm chegado à universidade sem um domínio maduro da leitura e da escrita. Como sociolinguista, atribui o problema a fatores históricos. “O Brasil nunca foi um país letrado. Temos uma história de pouca familiaridade com a língua escrita, o que continua afetando o sistema escolar como um todo e limitando as relações dos alunos com a língua escrita”, afirma.

Vieira, por sua vez, credita o problema mais especificamente à falta de leitura de textos formais por parte dos jovens: “A maioria dos jovens parece ler poucas notícias, reportagens, artigos de opinião, artigos de divulgação científica, leis, clássicos da literatura em língua portuguesa, entre outros gêneros semelhantes em estrutura e norma aos gêneros acadêmicos que eles precisarão ler e escrever quando chegarem ao ensino superior”.

Ser um bom leitor

Pode-se dizer, então, que o primeiro passo para escrever bem é ser um bom leitor. Desmistificando a percepção do senso comum de que ler é uma atividade passiva, de mera recepção de informações, os autores mostram que, ao contrário disso, ler é um evento ativo, uma vez que cabe aos leitores construir os sentidos do texto, mobilizando sua rede de conhecimentos prévios para estabelecer relações entre as ideias.

Fazem questão de lembrar que todo texto tem um autor (ainda que não claramente identificado), que escreve para alcançar certos resultados. Deixar de perceber isso é ser ingênuo e ler menos do que está escrito.

Na sala de aula

Essas e muitas outras questões complexas são tratadas com a simplicidade de uma conversa. Ao ler o livro, tem-se a sensação de estar dentro de uma sala de aula, ouvindo as explicações de um professor muito didático. E isso tanto pelo tom adotado como pela seleção de textos de apoio, todos escolhidos a dedo, apropriados não só para a análise formal que deles se faz como também para suscitar reflexões necessárias sobretudo para quem esteja envolvido na produção de conhecimento: pós-verdade, fake news e variação linguística estão entre os temas abordados.

Todas as unidades contêm propostas de exercícios, o que sugere que o livro pode ser adotado como instrumento didático – não só na universidade, ainda que os universitários sejam o seu público-alvo, mas mesmo na fase preparatória para os vestibulares e o Enem (no primeiro volume, apenas a unidade 4 é específica para os universitários).

O estudo dos gêneros textuais

Todo o trabalho de ensinar a escrever bem (e a ler bem) é baseado no estudo de gêneros textuais, que, aliás já vêm sendo solicitados nos principais exames vestibulares. “Nós, quando escrevemos, produzimos não apenas um texto, mas um texto situado numa determinada atividade social (o jornalismo, o direito, a ciência, a literatura, a ensaística, a publicidade etc.), na qual predominam determinados gêneros. Por isso, tem-se enfatizado o estudo dos gêneros textuais. O aluno precisa perceber que sua escrita é situada socialmente e que, no interior de cada atividade sociointeracional, há gêneros específicos”, explica Faraco.

A percepção de que todos os textos pertencem a algum gênero e de que é esse gênero que determina as características de cada um deles é a base sobre a qual se constrói o aprimoramento do processo de leitura e escrita.

“Se formos instados a atender uma determinada demanda de nossa vida prática, buscaremos o gênero textual que historicamente, em nossa cultura, vem sendo utilizado com recorrência nessa situação. Saber escolher os gêneros textuais adequados (um requerimento, um abaixo-assinado, uma carta de reclamação ou mesmo um post numa rede social) faz parte, portanto, de nossa competência de sujeitos de linguagem imersos numa sociedade de cultura letrada”, explica Vieira.

Os autores chamam a atenção para o fato de serem infinitos os gêneros, exatamente por estarem estes sujeitos a situações de comunicação, com seus próprios objetivos, embora possam agrupar-se segundo graus de formalidade (informais, semiformais, formais, ultraformais).

Como escrever bem

Hoje é menos comum, mas há não muito tempo proliferavam livros que se propunham a ensinar a escrever por meio de fórmulas de simplificação (não use gerúndio, substitua a expressão x pela expressão y etc.). O leitor tinha diante de si um compêndio de recomendações que se pretendiam objetivas, organizadas em listas de isto sim/isto não. Escrever, sob a tutela desse tipo de obra, era antes um suplício que um prazer.

Segundo Faraco, “listas e macetes – essa visão fragmentada e miseravelmente instrumentalista – não contribuem em nada para o domínio maduro da escrita”.  Para o professor, os caminhos que dão resultado são bem diferentes disso: “É preciso ler e analisar textos, mergulhar numa tradição discursiva e sentir na prática os horizontes e limites dos gêneros aí praticados, bem como escrever e refazer o escrito, ou seja, aprender a ser, ao mesmo tempo, autor e leitor de seus próprios textos”.

“Esse tipo de literatura me faz lembrar algumas seções de gramáticas quinhentistas e seiscentistas, que proscreviam listas de solecismos e barbarismos, espécies de ‘vícios de linguagem a serem remediados’”, afirma Vieira, que, antes que alguém imagine o contrário, ressalta ser importante o estudo da gramática da língua. Para ele, “o componente estrutural e normativo dos textos escritos também é um conhecimento que não se sustenta apenas na mera intuição linguística; a reflexão sobre questões normativas, atrelada a uma perspectiva pedagógica que leve em conta a variação não só na fala, mas também na escrita, precisa estar no horizonte de toda professora e de todo professor de português”.

A leitura do volume “Fundamentos” deixa claro, a todo momento, que a escrita pode ser prazerosa mesmo nos domínios da produção acadêmica, em que é preciso adequar-se aos padrões de formalidade exigidos pelos gêneros. Há no senso comum uma falsa percepção de que o texto acadêmico tem de ser frio ou enfadonho, mais uma ideia que Faraco e Vieira desmistificam.

O livro mostra, enfim, que é possível aprender a escrever bem, mas que a tão desejada fórmula mágica para atingir esse objetivo está antes no processo de letramento como um todo (no aprendizado da leitura competente e na internalização de práticas de escrita) que em alguma lista de recomendações fragmentadas.

Educação: competição ou solidariedade?

A todo processo educativo subjaz uma filosofia, que expressa o que se pretende atingir ao fim do trajeto e como fazer isso. No caso do letramento, isso não poderia ser diferente. Tendo como objetivo a produção de textos com autonomia, o ensino da leitura e da escrita está intimamente ligado à construção da cidadania.

Recentemente o ministro da educação, Abraham Weintraub, disse a uma plateia de crianças que o Brasil não tem espaço para todos, “só para os melhores”. Segundo ele, estimular a competitividade é uma “técnica de gestão” que visa a fazer que as pessoas deem o seu melhor. Há algo de perverso nessa afirmação, uma vez que, a levá-la às últimas consequências, estaríamos dizendo que nem todos merecem ser cidadãos, numa espécie sombria de pedagogia da exclusão.

Segundo o professor Faraco, que considerou lastimável o teor da afirmação, uma vez que emanada de uma autoridade da área de educação,  a competição, no caso específico do ensino da escrita, não leva a lugar nenhum. “Uma das atividades mais eficazes é a refacção coletiva dos textos produzidos pelos alunos. Trata-se de uma construção em conjunto do domínio da produção de textos, em que todos podem perceber as qualidades dos textos dos colegas e, ao mesmo tempo, os caminhos para aperfeiçoar a expressão de todos. É uma prática coletiva e solidária em que todos avançam sem precisar excluir ninguém”, explica, lembrando que o exercício pleno da cidadania “envolve também o desenvolvimento de uma ética da solidariedade social, e não de uma perspectiva competitiva, individualista e excludente”.

Escrever na Universidade: Fundamentos [vol.1], editora Parábola (2019), de Francisco Eduardo Vieira e Carlos Alberto Faraco

 

 

 

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O internauta, a loja física, o jornal de papel e o amigo virtual: uma conversa sobre arcaísmos e neologismos https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/23/o-internauta-a-loja-fisica-o-jornal-de-papel-e-o-amigo-virtual-uma-conversa-sobre-arcaismos-e-neologismos/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/23/o-internauta-a-loja-fisica-o-jornal-de-papel-e-o-amigo-virtual-uma-conversa-sobre-arcaismos-e-neologismos/#respond Fri, 23 Aug 2019 14:49:36 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/termo-internauta-Moacyr-Lopes-Júnior-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1402 Talvez com atraso tomo conhecimento de uma discussão sobre a suposta obsolescência do termo “internauta”, que hoje, quando estamos todos conectados em tempo integral, perde a sua função.

Na década de 1990, “internauta” surgiu como neologismo, formado dos elementos “inter” (redução de “internet”) e “nauta” (do grego “naútes”). Calcado em “astronauta”, o “internauta” era, então, a pessoa que explorava o ambiente virtual ou navegava por ele, como astronautas navegam o espaço sideral, aeronautas navegam o espaço aéreo e nautas propriamente ditos navegam pelos oceanos.

Naturalmente soa pueril dizer que internauta não navega porque a internet não é um oceano e que, portanto, melhor seria substituir o termo por “usuário”. É próprio da língua estender o sentido de um termo a outros contextos (e a prova disso, no caso de nauta, está nos termos aeronauta e astronauta, entre outros).

Quanto a “usuário”, esse é um termo que requer complemento. É frequentemente associado a consumo de entorpecentes (usuários de drogas), portanto teria de ser sempre seguido de seu complemento: usuário de internet. Ocorre, porém, que, nesse caso, estaríamos, como dizem os antigos, trocando seis por meia dúzia.

O problema real é outro. Não se trata de substituir um termo por outro, coisa que, aliás, quando ocorre, costuma ser espontânea. Palavras precisam ser funcionais, ter serventia, para que sejam acolhidas pela língua, afinal esta é um fenômeno social.

A língua tanto acolhe palavras novas, os chamados neologismos, como aposenta termos sem utilidade. Os neologismos, como toda novidade, chamam a atenção, despertam a curiosidade, chegando até a suscitar discussões e algumas paixões.  Já os que saem de cena costumam fazê-lo em silêncio, discretamente, sem um último aceno de adeus. Esses são os arcaísmos, que vão sendo esquecidos pouco a pouco, deixando de aparecer nos textos e nas conversas.

Talvez seja esse o destino do “internauta” num futuro próximo, quando lhe restará a companhia de termos como adail (antigo posto militar), almotacel (certo inspetor), albende (bandeira), samicas (talvez), toste (depressa), asinha (depressa), adur (dificilmente, a custo), nacibo (destino, sina), talaca (divórcio)…

Vários são os motivos que levam um termo a tornar-se um arcaísmo. Almotacel (ou almotacé), por exemplo, era, na Idade Média, um inspetor encarregado da aplicação de pesos e medidas e da taxação e distribuição dos gêneros alimentícios. Esse é um caso em que a palavra saiu do uso porque deixou de existir aquilo que ela nomeava. O mesmo se deu com a expressão “em cabelo” que, na época, era aplicada a mulheres solteiras, uma vez que as casadas deveriam cobrir a cabeça com uma touca. Despareceu o costume, desapareceu a expressão.

“Internauta”, se estiver mesmo em via de extinção, estará nesse grupo de arcaísmos e talvez venha a configurar o caso de palavra de vida mais curta na língua, que terá durado míseros 30 anos. Vale notar, entretanto, que há termos que persistem, sobretudo em expressões idiomáticas, mesmo quando sua base referencial é algo que já deixou de existir. Vejam-se os casos de “pegar o bonde andando” e “cair a ficha”, ambos plenamente em uso, mesmo por quem nunca tenha tomado um bonde ou feito uma ligação telefônica nos equipamentos públicos, aqueles com fichas metálicas (anteriores aos modelos com cartão, ainda existentes).

A questão da aposentadoria precoce do “internauta” ainda divide opiniões porque, enquanto, para alguns, estar conectado é como respirar, portanto seria desnecessário caracterizar alguém como tal (chamar alguém de “internauta” seria como chamar a pessoa de “respirante”), para outros, o termo ainda tem vitalidade, pois permite caracterizar a pessoa como usuária de um meio específico, a internet (afinal, a palavra “telespectador”, usada para quem vê televisão, continua em circulação).

O fato é que a internet dominou nossos hábitos de tal forma que passou a ser o principal meio de comunicação das pessoas. Quando alguém diz que leu uma notícia ou que assistiu a um vídeo, a um filme ou a um seriado ou que ouviu uma música nova, logo imaginamos que tenha feito tudo isso pela internet, com seu smartphone – principalmente se essa pessoa tiver nascido no século 21.

Mudou a percepção do “natural”, daquilo que não precisa ser nomeado. Hoje, quando lê um livro ou jornal impresso em papel, a pessoa tende a contar isso como experiência específica (é até engraçado para nós, os jurássicos, ouvir e até dizer também “jornal de papel”). Vejam-se expressões como “loja física” ou “livro físico”. O adjetivo antes era desnecessário, pois ninguém imaginaria que uma loja ou livro pudessem ser desprovidos de sua materialidade.

Hoje essas expressões se tornaram corriqueiras, um sinal de que o nosso referencial vem mudando a passos largos.  Por enquanto, ainda usamos a expressão “amigo virtual”, que denomina aqueles nossos amigos que só conhecemos pelo avatar nas redes sociais, com os quais nunca tivemos o prazer de um cafezinho. Quanto tempo levará para que a expressão natural seja “amigo físico”, quando este, enfim, for a exceção, como um jornal de papel…?

 

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Transparecer e deixar transparecer https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/21/transparecer-e-deixar-transparecer/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/21/transparecer-e-deixar-transparecer/#respond Wed, 21 Aug 2019 22:58:08 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/DALLAGNOL-monumento-à-Lava-Jato-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1394 “Moro, em conversa no aplicativo, transpareceu contrariedade: ‘Não é melhor esperar acabar?’”

A frase apareceu em um texto sobre os vazamentos da Lava Jato, em que o então juiz Sérgio Moro hesitava ante a possibilidade de erguer um monumento à referida operação em Curitiba, ideia aventada pelo procurador Deltan Dallagnol.

Não pretendo comentar a criatividade do procurador, que queria promover uma nova modalidade de turismo na cidade, o “turismo patriótico”, mas já fico a imaginar as multidões em disputa por um selfie diante de um busto dos novos heróis nacionais, bem como a desejada repercussão na mídia, nas redes sociais… Nada como uma inteligência empreendedora!

A frase acima foi destacada aqui por um motivo com bem menos poder de instigar a curiosidade dos milhares de internautas sedentos de novidade: o uso peculiar do verbo “transparecer” feito pelo redator: Moro transpareceu contrariedade.  Ora, se “transparecer” é aparecer total ou parcialmente, o que transparece é a contrariedade, não a pessoa em si (no caso, Moro). É a contrariedade de Moro que transparece na conversa com Dallagnol.

Para que a ação recaia sobre Moro, sendo ele o sujeito da oração, será necessário criar um período um pouco mais complexo, usando o verbo auxiliar causativo “deixar”: Moro, em conversa no aplicativo, deixou transparecer contrariedade, o que equivale a dizer que Moro, em conversa no aplicativo, deixou que sua contrariedade transparecesse.

O redator não está sozinho no uso desse regime impróprio do verbo “transparecer”. O leitor poderá aguçar a percepção e encontrar outros casos nas suas leituras diárias (não só na Folha, é claro).

Em recente texto, um ex-assessor de Flávio Bolsonaro fez a seguinte declaração acerca do caso Queiroz, reproduzida entre aspas: “Fabrício Queiroz sempre transpareceu receio de que essa atividade empresarial chegasse ao conhecimento do [então] deputado estadual Flávio Bolsonaro, pois acreditava que ele não concordaria com a forma que era realizada”.

Novamente estamos diante desse falso regime do verbo “transparecer”. Mais curioso ainda é este uso: “De sua parte, se de início transpareceu concordar, Cármen Lúcia adotou súbita rigidez contra o agendamento do tema”. Nesse caso, o mais adequado seria usar o verbo “parecer” (se, de início, pareceu concordar).

Há casos em que haveria ganho em substituir “transparecer” por “demonstrar”. Vejamos este:  “O ministro procurou transparecer tranquilidade —na avaliação da oposição, deboche. Descontraído, Moro comeu e bebeu refrigerante e café durante a audiência, e riu com o presidente da CCJ.”

Do ponto de vista semântico, vale observar que a ação de “transparecer” tem o traço de não intencionalidade, de algo que não conseguimos disfarçar ou esconder, donde a estranheza da construção acima, uma vez que “procurar” denota intenção. É por isso que “demonstrar” seria uma escolha lexical mais adequada (O ministro procurou demonstrar tranquilidade – na avaliação da oposição, sua atitude denotava deboche).

Em suma, um sentimento ou uma intenção transparecem na fisionomia, nas palavras ou nas atitudes de alguém (Sua irritação transparecia no modo como gesticulava; Sua emoção transparecia em sua voz); uma pessoa deixa transparecer um sentimento ou intenção (Ele não deixava transparecer o nervosismo). Havendo a intenção de que o outro perceba certo sentimento ou intenção, o melhor é usar o verbo “demonstrar” (Ele não demonstrava o que sentia, Ele demonstrava imenso apreço pelos colegas).

Da mesma família do verbo “transparecer” é o substantivo “transparência”, que, usado na moda ou na política, sempre sugere aquilo que não impede a visão do que é verdadeiro. Assim como a transparência nas roupas revela o corpo, quando na política e nas relações humanas, ela revela as verdadeiras intenções e sentimentos. Ao usar o verbo “transparecer”, vale lembrar que ele sugere a ideia de deixar aparecer algo que talvez a pessoa desejasse esconder. Em tempos de “fake news”, mais do que nunca, é preciso buscar a transparência, aquilo que está sob o disfarce de notícia.

 

 

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Insulto: uma estratégia de quem não tem argumentos https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/09/insulto-uma-estrategia-de-quem-nao-tem-argumentos/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/09/insulto-uma-estrategia-de-quem-nao-tem-argumentos/#respond Fri, 09 Aug 2019 16:03:43 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/Bolsonaro-2-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1382 As últimas semanas, em que o presidente da República nos brindou com declarações mais agressivas ainda que as de costume, registraram uma espécie de reação catártica nas redes sociais, traduzida em listas de adjetivos capazes de exprimir o sentimento de repúdio à grosseria, ao deboche, ao escárnio, à avacalhação.

As pessoas entraram na brincadeira. O professor Ernani Terra, com sua conhecida agudeza de espírito, publicou no Facebook a seguinte aula-provocação:

ADJETIVOS são palavras usadas para atribuir uma propriedade singular a elemento que é denominado por um substantivo. Podem, portanto, funcionar como adjetivo palavras como [as seguintes]: 
racista, autoritário, homofóbico, machista, intolerante, fascista, imbecil, mentiroso, estúpido, mal-educado, tosco, preconceituoso, inescrupuloso, sórdido, ignorante, truculento, pulha, desassisado, torpe, boquirroto, lambe-botas, estulto, estúpido, parvo, bronco, boçal, obtuso, sacripanta, chucro, ignóbil, tacanho, prepotente, agressivo, inepto, tacanho, desairoso, bruto, infame, odioso, estúpido, impolido, grosseiro, provocador, vil, deplorável, indigno, estouvado, leviano, abjeto, violento, velhaco, patife, desonroso, incivilizado…
A lista é enorme. Fiquem à vontade para ampliá-la.
PS: não preciso dizer a que substantivo os adjetivos devem fazer referência.

A caixa de comentários logo se encheu de uma grande quantidade de adjetivos, aqui organizados em ordem alfabética: abestalhado, abilolado, abjeto, anta, ardiloso, arrogante, asselvajado, avilanado, banana, bandalho, beócio, bizarro, bocó, boquirroto, burro, canalha, chicaneiro, chucro, cínico, covarde, cretino, criminoso, cruel, debochado, desnecessário, destrutivo, ditador, energúmeno, enganador, escroto, estroina, estrume, estúrdio, excrementoso, falacioso, falso, fingido, gatuno, genocida, gentalha, hipócrita, ignorante, impostor, incapaz, incompetente, inepto, inescrupuloso, infame, infeliz, invejoso, larápio, malcriado, maldoso, marionete, “micto”, monstro, morfético, neandertal, néscio, nojento, odioso, otário, parvo, pelintra, pérfido, prevaricador,  pulha, pusilânime, ridículo,  sacripanta, safado, satânico, tacanho, tosco, “vilento”.

O último da lista bem poderia figurar na coluna de Sérgio Rodrigues, na Folha, em que o autor foi além e conclamou os leitores a inventar palavras (os neologismos) com a mesma finalidade, endereçadas ao mesmo personagem.

Um de nossos leitores, o sr. Mouzar Benedito, no Painel do Leitor, da Folha, em vez de recorrer aos neologismos, respondeu ao desafio tirando do fundo do baú uma saborosa lista de palavras, todas com o sabor vintage do arcaísmo, que aqui reproduzo: latrinário, injucundo, malignante, sanguissedento, bilhostre, trastalhão, estupor maligno, merca-honras, cheringalho, bandurrilha, gangolino, coração de víbora, escalfúrnio, fedífrago, bilontra, bisbórria.

Muito divertido, mas o que diz aquele a quem se dirigem os nomes arrolados? O presidente, quando confrontado com suas más-criações, retruca ser esse o “seu jeito”. Esbanjar impropérios e distribuir ofensas, ainda que paradoxalmente, pode ser mesmo o seu jeito de ser (ou parecer) sincero – pelo menos aos olhos de seus simpatizantes. E isso cria certa confusão.

Ser sincero é exprimir-se “sem artifício nem intenção de enganar ou de disfarçar o seu pensamento ou sentimento (pessoa sincera)”, segundo nos ensina o dicionário Houaiss, que continua assim: “que é dito ou feito de modo franco, isento de dissimulação (felicitações sinceras, arrependimento sincero)”; “em quem se pode confiar; verdadeiro, leal (amigo sincero)”; “que demonstra afeto; cordial (abraço sincero)”.

Segundo Schopenhauer (1788-1860), “os amigos se dizem sinceros; os inimigos o são”. Ora, o aforismo reforça a ideia de que os elogios são sempre falsos e só vêm a propósito de interesses ocultos, enquanto as ofensas são as “verdades” que ocultamos por polidez (ou falsidade).

Assim, quando descobrimos no outro uma falha, um defeito qualquer, uma atitude questionável, logo temos a certeza de que, então, sim, sabemos quem de fato é aquela pessoa.

Em tal pensamento forçosamente se embute um traço de descrença no ser humano, de profundo pessimismo ante a vida. Somos todos vilões disfarçados, odiamos uns aos outros. Estamos em guerra com nossos vizinhos, com nossos colegas de trabalho, com as pessoas com quem dividimos os espaços coletivos. Se assim for, aquele sujeito que nos ofende gratuitamente será mesmo o nosso espelho.

O mesmo Schopenhauer, tão conhecido por seu pessimismo, no entanto, nos dirá que o insulto pode ser a estratégia argumentativa de quem não tem como enfrentar um debate de ideias: “Quando perceber que o adversário é superior e que você acabará por perder a razão, torne-se ofensivo, ultrajante, grosseiro, isto é, passe do objeto da contestação (dado que aí a partida está perdida) ao contendor e ataque de algum modo sua pessoa”. O trecho está na “Arte de Ter Razão”, citado na introdução de Franco Volpi à conhecida “Arte de Insultar”, ambas obras do filósofo alemão).

Ao que tudo indica, a suposta sinceridade do personagem não passa de um subproduto da sua inépcia e incapacidade de argumentar sobre bases racionais e nada tem de positivo. Infelizmente, não há como ignorar o interlocutor (conforme recomendaria o próprio filósofo), pois ele empunha a caneta mais importante do país e a ele foi passada uma procuração para definir os nossos caminhos. Enquanto ele distrai a nossa indignação, sua caneta vai deslizando sobre o papel.

Talvez, então, depois das listas catárticas de insultos, seja chegada a hora de convocar à cena o campo semântico da solidariedade e do companheirismo, para que não nos esqueçamos dos nossos valores mais caros.

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Domingo, 11 de agosto de 2019: Uma leitora nos avisou de que os adjetivos colhidos na página do Facebook do professor Ernani Terra não estavam em ordem alfabética, conforme anunciado. De fato. Estava ela coberta de razão. Tentei agora corrigir o erro e confesso que me senti frustrada ao perceber que a lista é muito modesta. Ao mexer na ordem das palavras, outros adjetivos me vieram à mente, em total desordem alfabética: paspalho, paspalhão, bocó, quizilento, debochado, cínico,  chato, desagradável, bananão, velhaco, patife, rezingueiro, arengueiro…

 

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Olimpíada de Língua Portuguesa mobiliza estudantes de todo o país https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/04/25/olimpiada-de-lingua-portuguesa-mobiliza-estudantes-de-todo-o-pais/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/04/25/olimpiada-de-lingua-portuguesa-mobiliza-estudantes-de-todo-o-pais/#respond Thu, 25 Apr 2019 16:19:34 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/Itaú-alunos_durante_oficina_de_textos_na_semifinal-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1352 Fazer que estudantes adquiram o pleno domínio da leitura e da escrita tem sido um grande desafio enfrentado pelos professores de língua portuguesa. Dados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), coordenado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), ajudam a mapear a situação da aprendizagem.

O objetivo dessa avaliação internacional, em linhas gerais, é saber quanto os alunos apreendem da educação escolar e como isso se dá – em suma, em que medida estão preparados para a vida adulta. É claro que, para fazer uma medição desse porte, é necessário um entendimento sobre o que se deseja alcançar num processo educativo.

Do ponto de vista da leitura e da escrita, que aqui nos interessa mais de perto, o objetivo é aferir, muito além da habilidade de decifrar letras e palavras, a capacidade de compreender aquilo que se lê, de usar a linguagem para expressar-se, de refletir sobre ela, enfim, de desenvolver, por meio dela, o intelecto e participar da sociedade como sujeito ativo.

Os dados do penúltimo Pisa (2015), os últimos divulgados (mais para o final deste ano, será conhecido o resultado da avaliação feita no ano passado), mostravam que a maior parte dos estudantes brasileiros não ultrapassava o nível 2 (entre 7 níveis) em letramento de leitura. Isso quer dizer que ainda temos um longo caminho pela frente na tarefa de preparar os jovens para o pleno exercício da cidadania, mas não quer dizer, como poderia parecer à primeira vista, que nada esteja dando certo.

É importante lembrar, neste momento, que há consenso entre os especialistas em educação acerca das habilidades a desenvolver, do objetivo a perseguir, que é o de formar cidadãos, e também dos caminhos pedagógicos, ancorados na ideia de engajamento dos estudantes naquilo que lhes é proposto como atividade na escola.

Muito mais do que instruir ou apresentar informações a serem memorizadas, hoje, mais do que nunca, é necessário apresentar ao estudante situações de aprendizado que lhe permitam reagir ao que lê, interpretar as informações, fazer conexões entre elas e usar seu conhecimento como forma de inserção na vida social – afinal, ninguém aprende sem estar motivado.

Vai longe o tempo em que se acreditava que o aluno tinha de literalmente apanhar para aprender alguma coisa. Herdeira da velha palmatória é a ideia de disciplina rígida como motor de aprendizado. Desse ponto de vista, estudar seria um tormento necessário. Ao contrário disso, a disciplina surge espontaneamente do engajamento na atividade, e este, por sua vez, surge quando a atividade tem um sentido para o estudante.

É na interação entre os membros do grupo, nas relações que se estabelecem, que o conhecimento se constrói. Bem se vê que, nessa perspectiva, todo tema que esteja em discussão na sociedade deve estar presente na escola, a qual, por sua vez, deve fomentar um ambiente de liberdade e de estímulo ao diálogo, ou seja, ao uso da palavra como forma de mediação de conflitos.

Esse aprendizado é, por natureza, paulatino, pois implica e é implicado pelo desenvolvimento e pelo amadurecimento do jovem, no seu ritmo. Induzir e administrar esse processo é a tarefa hercúlea a que se dedicam os professores, não raro em meio a grandes dificuldades, sobretudo quando se considera o conjunto heterogêneo da rede pública de ensino.

“Escrevendo o Futuro”

Para contribuir nesse processo, instituições privadas têm-se aproximado do Estado para oferecer programas na área de educação. A Fundação Itaú Social criou em 2002 o projeto Escrevendo o Futuro, que atua em conjunto com os professores de português da rede pública. Com a coordenação técnica do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), oferece aos professores inscritos cursos a distância ou presenciais, com suporte pedagógico e metodológico, e um espaço virtual para troca de experiências. Além disso, promove um concurso de produção textual entre os alunos da rede pública de todo o país.

Desde 2008, tornou-se uma política pública, incluído entre as ações do Plano de Desenvolvimento da Educação, ao firmar parceria com o Ministério da Educação. Nessa ocasião, ampliou-se passando a abranger não só os alunos do quinto e do sexto ano, como antes, mas todos os estudantes do ensino fundamental 2 e do médio. Foi nesse momento que o concurso recebeu o nome de Olimpíada de Língua Portuguesa.

Olimpíada de Língua Portuguesa

A última Olimpíada, realizada em 2016, envolveu 4.874 municípios brasileiros (o país tem pouco mais de 5.500), quase 40 mil escolas e mais de 80 mil professores, com a participação de mais de 5 milhões de alunos nas oficinas de redação e escrita.

A expectativa é que esses números sejam ainda mais expressivos na 6ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa, a ser realizada neste ano (2019). Embora o projeto seja permanente, o concurso se dá a cada dois anos – a partir deste ano, ocorrerá nos anos ímpares (os anteriores se deram em 2008, 2010, 2012, 2014 e 2016).

O projeto, que já atinge 87% dos municípios brasileiros, ainda que tenha a forma de uma competição, dada pelo seu nome e pela existência de premiação de alunos, professores e escolas, é uma grande mobilização em torno da língua portuguesa como vetor de expressão e de exercício da cidadania.

Alunos da rede pública do 5º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio participam de um processo de produção textual, sob a supervisão de seus professores, os quais, por sua vez, têm acesso a orientações metodológicas, que os ajudam na preparação dos estudantes para o concurso.

As categorias do concurso foram baseadas no aprendizado da língua por meio da teoria de gêneros textuais, da qual os pesquisadores Joaquim Dolz e Bernard Schneuwly, ambos da Universidade de Genebra, entre outros estudiosos, são importante referência. Produzidos nas mais variadas situações sociais, os gêneros são, por isso mesmo, entendidos como formas de funcionamento da língua. Na prática pedagógica, por meio dos gêneros, os estudantes percebem a importância e o sentido do aprendizado da língua.

Foram escolhidos cinco gêneros textuais como as categorias nas quais os alunos podem se inscrever, de acordo com o ano que estejam cursando. Os do 5º ano do ensino fundamental escreverão poemas, os do 6º e do 7º farão memórias literárias, os do 8º e do 9º escreverão crônicas. Os estudantes do 1º e do 2º ano do ensino médio serão os primeiros a desenvolver pequenos documentários – o gênero foi introduzido nesta edição da Olimpíada e, como todo o projeto, está em consonância com a BNCC (Base Nacional Curricular Comum), em que se inclui a produção oral em língua portuguesa. Com a tecnologia disponível em seus telefones celulares, os jovens farão vídeos curtos (de aproximadamente três minutos) em grupos de até três integrantes. Os alunos do 3º ano do ensino médio escreverão artigos de opinião.

A superintendente do Itaú Social, Angela Dannemann, enfatiza que o objetivo da Olimpíada de Língua Portuguesa não é ser uma espécie de caça-talentos, como ocorre com a conhecida olimpíada de matemática. “Usamos o nome [Olimpíada] como isca”, diz ela em tom de brincadeira, enquanto explica que, “nesta Olimpíada todos são vencedores”. Isso porque o projeto envolve todos os alunos da turma, com oficinas realizadas durante as próprias aulas.

O resultado, como não poderia deixar de ser, é permanente. Os professores têm a oportunidade de atualizar conhecimentos, em contato com o trabalho de pesquisa feito nas universidades, e de estabelecer importante diálogo com a inovação, pondo em prática novas metodologias e recursos didáticos. E quem ganha são todos: alunos, professores, gestores escolares. Afinal, o objetivo é um só: aprender, evoluir, desenvolver habilidades de leitura e escrita.

“O lugar onde vivo”

O tema geral da Olimpíada, sobre o qual todos os participantes escreverão, nos variados gêneros textuais, é “O lugar onde vivo”. A escolha, que se mantém desde a primeira edição da Olimpíada, permite a qualquer estudante exprimir algo próprio de sua vivência, que o toque pelos mais diversos motivos: a emoção de uma lembrança, uma paisagem, pessoas, mas também as carências e dificuldades que, por vezes, são parte da sua rotina.

Poder falar e, sobretudo, poder falar-se, saber-se ouvido, esse é o grande ganho no aprendizado da língua, que só amadurece quando o jovem percebe a potência da linguagem na própria existência, como instrumento de ser e estar num mundo que é – ou deve ser – em si mesmo um lugar onde todos possam viver, respeitando as diferenças e aprendendo uns com os outros.

SERVIÇO

As inscrições no projeto podem ser feitas ainda até o fim deste mês (30 de abril de 2019). Basta seguir o link, onde estão disponíveis todas as informações.

 

 

 

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Uma conversa (gramatical) sobre laranjas https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/02/19/uma-conversa-gramatical-sobre-laranjas/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/02/19/uma-conversa-gramatical-sobre-laranjas/#respond Tue, 19 Feb 2019 05:09:31 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/Bolsonaro-laranja-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1339 O termo “laranja” tem estado nas páginas da Folha nas últimas semanas em razão de uma série de reportagens que vêm descortinando um esquema, usado pelo PSL, para fazer uso fraudulento das verbas públicas do fundo partidário por meio de candidaturas de fachada.

Como não poderia deixar de ser, a palavra em si despertou a curiosidade do leitor. Os dicionários há algum tempo registram o termo na acepção de “homem tolo, ingênuo”. Houaiss atualizou esse sentido, acrescentando o traço de “indivíduo nem sempre ingênuo, cujo nome é utilizado por outro na prática de diversas formas de fraudes financeiras e comerciais, com a finalidade de escapar do fisco ou aplicar dinheiro de origem ilícita”.

Essa acepção fundamenta a expressão “candidato laranja” (ou mesmo o substantivo composto “candidato-laranja”), ainda que a criatividade dos políticos quando o assunto é fraude esteja a pedir novas atualizações lexicográficas. Do ponto de vista morfológico, vale notar que o segundo elemento (“laranja”) é um substantivo que atua como determinante específico, exatamente como “fantasma” em “conta fantasma” (ou “conta-fantasma”).

“Laranja”, nesse caso, não diz respeito à cor e talvez nem mesmo à fruta. Exatamente por não se tratar de cor, não se sujeita à concordância dos substantivos que nomeiam cores, os quais permanecem invariáveis.

Quem não se lembra das bicicletas laranja  do projeto Bike Sampa? Muito bem. Quando se refere à cor (cor de laranja), de fato, o substantivo “laranja”, usado como adjetivo, permanece invariável. Bicicletas laranja é o mesmo que bicicletas cor de laranja. Vale ainda lembrar que, mesmo quando identifica uma cor, “laranja” pode ter plural, o que ocorrerá caso seja usado no sentido de “tons de laranja” (Na decoração, usou com parcimônia os laranjas e os vermelhos).

Que não se confunda “laranja” na acepção de cor com “laranja” na acepção de indivíduo que se presta à prática de diversos tipos de fraude. Este último é um substantivo e, como tal, tem flexão de número.

Ainda que, à semelhança de “empresa-fantasma”, sejam admitidas as grafias com hífen e sem hífen, sendo o segundo elemento um determinante específico, é mais seguro o uso do composto com hífen, de modo que não paire dúvida sobre as possibilidades de flexão.

O substantivo composto candidato-laranja, por ser formado de dois elementos variáveis, admite o plural candidatos-laranjas. Podendo o segundo substantivo ser interpretado como um elemento que limita o anterior, é também lícita a flexão apenas do primeiro elemento do composto (candidatos-laranja).

Quanto às candidaturas em si, o ideal é que se diga que são candidaturas de laranjas, ou seja, candidaturas de indivíduos ingênuos – ou não necessariamente ingênuos – que emprestam a própria identidade a outros para fins ilícitos.

A concordância parece ser mais fácil de resolver do que aquilo que mais espicaça a curiosidade do leitor, ou seja, a origem do termo. Por que, afinal, o nome de uma fruta tão saborosa assumiu esse sentido pejorativo?

Hipótese sobre a origem do termo

As várias hipóteses que andam pela internet não parecem mais que fruto da imaginação e, de tão fantasiosas, não se sustentam. Não é difícil que o atual sentido de “laranja” seja uma extensão do sentido anterior de “indivíduo tolo, otário”, dado que este se deixa usar por alguém mais esperto.

O que permanece incógnito é o elo entre o simplório, tolo, aparvalhado e a laranja. A meu ver, enquanto estivermos em busca de uma associação semântica com a fruta, dificilmente sairemos do atoleiro da dúvida.

As pessoas tendem a esquecer-se de que a língua tem outros mecanismos de criação de palavras para além das analogias e metáforas, embora estas sejam talvez os mais frutíferos.

Convido o leitor que tiver paciência a fazer um raciocínio um pouco diferente, baseado, é claro, em comportamentos observáveis na língua. Aviso aos mais sensíveis que terei de usar alguns termos de baixo calão a fim de explicitar o meu raciocínio.

Para lançar mão de exemplos facilmente acessíveis na memória, vamos, de início, ao termo “paca”, usado, na linguagem popular, no sentido de “grande quantidade” ou de intensidade (Fulano fala paca!), que, segundo o próprio Houaiss, nasce de uma alteração de natureza eufêmica (própria de eufemismo) das expressões chulas “para caralho” ou “para cacete”, ambas também empregadas como intensificadores. A forma “paca” ameniza o tabuísmo, o mesmo valendo para as expressões “para caramba”, com uso da interjeição de espanto de origem espanhola, e “para cachorro” (Fala para caramba! Fala para cachorro!). Pergunta-se: o que é que caralho, cacete, caramba e cachorro têm de comum? Todas têm três sílabas, são paroxítonas e iniciadas pela sílaba “ca-”. Pareceu estranho?

O leitor se lembrará por certo de ter ouvido ou dito a interjeição “cacilda!” diante de uma situação de espanto, admiração ou impaciência. Se procurar saber quem foi a tal Cacilda que deu origem à expressão, é provável que não chegue a lugar algum. Por outro lado, se observar a semelhança entre cacilda e cacete, estará no rumo certo. A semelhança formal faz que se use um termo no lugar de outro com transferência de significado, mais uma vez evitando o uso do palavrão.

O recurso não é nada novo na língua: “diacho”, por exemplo, é uma alteração de “diabo”, que, em outros tempos, era palavra a evitar. Muito bem. E o laranja? Onde é que ele entra nessa história?

A hipótese que podemos formular nessa linha de raciocínio é que, de início, se tenha usado o termo “laranjão”, com o sufixo “-ão” de aumentativo com matiz afetivo (o mesmo que ocorre em toleirão, parvalhão, bobalhão, paspalhão, bestalhão etc.) e que esse termo se tenha confundido com o informal “janjão”, que, embora não esteja nos dicionários regulares, aparece definido no Dicionário Informal  como “um cara abestalhado e lento para entender as coisas de uma forma geral, fácil de ser ludibriado”, o que demonstra ter existência na língua.

Ainda mais curioso é lembrar que Janjão é o nome de um personagem do conto “Teoria do Medalhão”, de Machado de Assis, que, ao atingir a maioridade, ouve do pai uma série de conselhos sobre o melhor caminho a seguir para ter sucesso na vida. O conto é uma das joias do bruxo do Cosme Velho, que, sob a forma de um diálogo, põe em cena um jovem e seu pai, a este cabendo encarnar a sua incansável veia irônica.

O termo “medalhão”, hoje meio fora de moda, descreve, de modo pejorativo, o indivíduo que obteve fama e que passou a viver em função disso ou, mais especificamente, um indivíduo de “infundada notoriedade” (Houaiss).

O Janjão de Machado de Assis é o protótipo do sujeito anódino, medíocre, que, por isso mesmo, na visão do próprio pai, tem toda a disposição para se tornar um verdadeiro “medalhão”:

Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança, No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas ideias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.

O sentido dado a “janjão”, somado à semelhança fônica com “laranjão” parece trazer uma pista. Teríamos ainda de entender por que “laranjão”, sendo válida a hipótese, teria recuado para “laranja”. Esse, no entanto, não seria o maior dos problemas.

Veja-se, para tanto, o que ocorreu com o nome da doença chamada “sarampão”. Popularmente percebido como aumentativo (embora não o fosse), o termo, por derivação regressiva, recuou para um suposto grau positivo na forma que se consagrou: sarampo. E hoje pode até parecer estranho dizer que “sarampo” veio de “sarampão”.

Pode-se dizer que algo semelhante, embora não idêntico, ocorreu com o termo “lanterninha”, claramente um diminutivo de “lanterna”. Era desse modo que se chamavam os funcionários das salas de cinema que, com uma pequena lanterna, ajudavam os retardatários a encontrar um lugar para se sentar depois que o filme já tinha começado e as luzes estavam apagadas. Quem precisava do lanterninha era quem chegava atrasado. Está talvez aí a origem do uso do termo para fazer alusão ao que chega em último lugar num campeonato esportivo. Detalhe: nessa acepção, as pessoas passaram a usar o termo no grau positivo (lanterna), rechaçando o sufixo de diminutivo, novamente num processo de derivação regressiva.

E mais: o termo “lanterna”, nesse sentido, já não está restrito à área esportiva, embora predomine nesse campo. Veja este exemplo, que, aliás, nos reconduz ao laranjal da política: “Outra candidata campeã de dinheiro do PSL, mas lanterna de votos, é Mila Fernandes. Teve 334 votos a deputada federal”.

Ora, se a hipótese for válida, “janjão”, por semelhança fônica, terá resultado em “laranjão” (com sufixo “-ão”, de matiz afetivo) e este terá regredido a um grau positivo, tendo passado a “laranja”(como sarampão > sarampo). Assim: janjão > laranjão > laranja.

Ainda que não tenhamos nenhuma comprovação disso – daí estarmos aqui falando meramente em hipótese –, o raciocínio pode servir para lembrar que parte do fascínio da língua está nas surpresas que ela põe no caminho de quem se dedica ao seu estudo.

 

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O último Enem https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/12/26/o-ultimo-enem/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/12/26/o-ultimo-enem/#respond Wed, 26 Dec 2018 21:27:55 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2018/12/ENEM-alunos-15419479895be84255e5b1a_1541947989_3x2_lg-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1325 Muito se comentaram algumas questões da prova de linguagens do último Enem – menos por sua qualidade pedagógica que por um suposto viés ideológico, hoje alvo das diatribes da equipe que vai integrar o futuro governo do país, à frente da qual se posiciona o próprio presidente eleito, que chamou para si a tarefa de inspecionar as próximas provas antes de sua aplicação.

Ainda que se possa incluir a declaração no seu já extenso rol de bravatas, sempre mais propícias a animar a torcida do que a motivar algum tipo de discussão, vamos aqui tomar a segunda via e tentar compreender o espírito da prova.

A crítica dos que consideram ter havido “ideologização” da prova recai sobre a escolha de alguns textos que serviram de base para questões de interpretação e de emprego amplo da língua, em suas mais variadas situações e funções. Em consonância com os parâmetros curriculares e mesmo com a base comum curricular, o exame nem de longe lembra as antigas provas de português, cuja maior exigência era que se decorassem conjugações verbais e listas de coletivos ou de superlativos absolutos eruditos, entre outros desafios mnemônicos. Não à toa, trata-se de uma prova de linguagens.

Muito bem. Havia na prova de linguagens cartazes de campanhas publicitárias, textos poéticos, fotogramas, fotos de esculturas, uma adaptação de Guimarães Rosa para a linguagem de quadrinhos, excertos de crônicas e de textos jornalísticos, uma tirinha, um resumo de tese acadêmica, um texto sobre teatro, um sobre cinema, outro sobre rede social (Twitter), bem como um trecho do Hino Nacional Brasileiro. Também havia Graciliano Ramos, Machado de Assis, Guimarães Rosa (não adaptado), Manoel de Barros, Ivan Ângelo, Marques Rebelo, Torquato Neto e outros autores.

Como se vê, a prova buscou apresentar uma variada gama de gêneros textuais, corroborando a ideia de que a realidade é mediada por linguagens, cuja compreensão é fator de cidadania.

O que causou celeuma, no entanto, foi a escolha de alguns textos em razão dos temas abordados. É inegável que se buscou tratar de questões atuais, presentes em matérias jornalísticas e em discussões nas redes sociais, o que leva o estudante a ter um envolvimento real, não meramente escolar, com elas.

Havia esporte, ética e valores, violência contra a mulher, ciência, empoderamento feminino, alimentação, saúde, preconceito racial dissimulado (na estética) ou ostensivo (nas redes sociais), educação, universo LGBT, mas também havia a internet e o uso da tecnologia (aplicativo de descrição de filmes para deficientes visuais, “caçador de plágio”), entre outros.

É bom que se diga que os textos tinham mesmo algo de provocadores, no mais salutar sentido do termo. Estavam ali para provocar reflexão, pois é exatamente assim que se constrói o conhecimento. Afinal, por que a realidade deveria ser escamoteada da prova? Espera-se que um jovem, ao término do ensino médio, tenha consciência do mundo em que está inserido e que seja capaz de fazer reflexões, de participar do debate público como cidadão. Ou não?

Jovens de 16 anos já podem ser eleitores, portanto convém que leiam jornais, que se mantenham bem informados e que sejam capazes de refletir sobre o que leem. Na prova, naturalmente, não se cobrava dos estudantes nenhum tipo de posicionamento sobre as questões; as perguntas eram estritamente ligadas ao funcionamento das linguagens. O problema, então, seria apresentar a eles textos que estão ao alcance de todos na internet, como se fosse possível (ou desejável) ocultar dos jovens a realidade, da qual eles mesmos são parte.

Em suma, o espírito da prova, que já chamaram de “complicada”, é, na verdade, muito simples: valoriza-se a reflexão.

Havia muitas questões interessantes no exame, mas as críticas recaíram com inusitada ênfase sobre um texto jornalístico que tratava do “pajubá”, uma gíria usada pelos gays, chamada pelo autor da reportagem de “dialeto” (seria antes um “socioleto” ou “dialeto social”, mas não era esse o foco da questão).

No texto reproduzido na prova, um advogado usuário do referido socioleto explicava ao repórter o significado de alguns termos e dizia que, obviamente, não empregava aquele vocabulário em uma audiência, mas que usava algumas daquelas palavras no ambiente de trabalho, com os colegas, porque as pessoas já conhecem muitas delas, uma vez que existe até um “dicionário de pajubá” (o livro “Aurélia: a Dicionária da Língua Afiada”, de Angelo Vip e Fred Libi, uma compilação desse vocabulário).

O texto-base mostrava que o fato de haver um “dicionário de pajubá” dava ao usuário a percepção de oficialidade, de modo que a gíria estaria, dessa forma, ganhando respeitabilidade, alcançando o status de dialeto, “caracterizando-se como elemento do patrimônio linguístico”.  Era uma questão de linguagem, de interpretação de texto, nada além disso. Quem censura a simples menção aos gays, no mínimo, quer tapar o sol com a peneira. Vai ter de censurar a internet e até mesmo a realidade, se isso for possível.

Um exame do alcance e do porte do Enem tende a influenciar o processo educacional como um todo. Esperamos que seja mantido seu espírito indutor de reflexão sobre a realidade, amparado no respeito aos direitos humanos. Perpetuar preconceitos, de quaisquer tipos, é segregar o outro, excluí-lo do convívio e das oportunidades, coisa que nenhuma escola pode admitir, sob pena de deixar de ser escola para ser clube ou igreja.

 

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