Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Olimpíada ou Olimpíadas? https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/07/25/olimpiada-ou-olimpiadas/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/07/25/olimpiada-ou-olimpiadas/#respond Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/OLimpíada-Ding-Ting-Xinhua162713940460fc2d4c4f0f4_1627139404_3x2_md-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1630 Sim, a Folha mudou uma padronização adotada há muitos anos: a atual edição dos Jogos Olímpicos passa a ser chamada de Olimpíadas de Tóquio, no plural, em vez de Olimpíada de Tóquio.

Mudanças repentinas costumam dividir opiniões e, com o tempo, as coisas se acomodam. Até a semana passada, o “Manual da Redação” instruía as equipes do jornal a usar o singular, afinal “era o certo”, e agora o novo entendimento passa a prevalecer. Naturalmente, muitos jornalistas, antes convencidos de que “faziam o certo”, estão estranhando a novidade.

Ao que tudo indica, o incômodo aumenta quando se revela o motivo da mudança: uma suposta concessão à audiência. A interpretação técnica, por assim dizer, é que, como o termo no plural é mais frequente nos buscadores do que o termo no singular, ao usar o plural nas reportagens, estas aparecerão mais vezes nos resultados de busca, o que pode aumentar a audiência da Folha.

A questão gramatical em si (singular ou plural) é quase tão bizantina quanto o sexo dos anjos. Como diria Guimarães Rosa, “pão ou pães, é questão de opiniães”.

O fato concreto é que “olimpíada”, pelo menos na origem, é o termo que designa cada um dos intervalos de quatro anos entre duas celebrações consecutivas dos Jogos Olímpicos, pelos quais o tempo era contado na Grécia antiga. Rigorosamente, portanto, nem o singular nem o plural estariam corretos. A propósito, uma visita a alguns jornais e sites gregos mostra que, entre os criadores das competições da cidade de Olímpia, o evento é chamado apenas de Jogos Olímpicos.

Entre nós, gostemos ou não, os dicionários registram (e não é de hoje) a forma “olimpíadas” como sinônimo de Jogos Olímpicos. No “Houaiss”, a segunda acepção do termo “olimpíada”, que traz o significado que o uso consagrou entre nós, vem seguida da observação de que, nesse sentido, a palavra é mais usada no plural. O dicionário “Aulete”, este sim, registrou um verbete novo, cuja entrada já vem no plural, “olimpíadas”, seguida da seguinte definição: “competições esportivas entre países que, a partir de 1896, se realizam em uma cidade predeterminada, de quatro em quatro anos”.

O que traz questionamento, na verdade, é menos a gramática que o motivo da mudança de padronização. Afinal, estaríamos deixando de “fazer o certo” para seguir a maioria? O “certo”, porém, é algo bem mais  frágil do que se possa imaginar à primeira vista e, no momento atual, é particularmente instável.

Nos Jogos Paraolímpicos de 2012, fomos surpreendidos com a supressão do “o” do radical de “olímpíada” pelos organizadores do evento, que, para imitarem o inglês “paralympiad”, cunharam a forma “paralimpíada” e , de quebra,  de “paralympic” fizeram “paralímpico”. As grafias, apesar das ressalvas, já entraram nos dicionários.

“Houaiss” fornece a seguinte nota explicativa no verbete “paralimpíada”: “malformação vocabular que Portugal e o Brasil passaram a usar (no Brasil, oficialmente a partir de 25 de agosto de 2012), a pedido do Comitê Paralímpico Internacional para seguir o inglês ‘paralympiad’ (paraplegic + olympiad); o segundo ‘a’ do prefixo ‘par(a)-’ poderia cair no português, nunca o ‘o’ inicial do segundo elemento do vocábulo”.

Na ocasião, a Folha decidiu adotar a novidade apenas nos nomes oficiais dos comitês (brasileiro e internacional), mantendo a integridade da palavra nas demais aparições. A reação das pessoas às novas grafias, aferida pelos comentários em redes sociais, não foi de reprovação da imitação desajeitada do inglês; muito pelo contrário, o comentário geral era que o termo assumia o caráter de marca comercial e, dessa forma, poderia ser alterado pelos patrocinadores do evento, segundo sua conveniência (!).

Nada comparável às reações ao Acordo Ortográfico (1990), que visava à unificação da grafia da língua nos países da lusofonia. A grita foi enorme e durou um bom tempo. Excetuando a oposição de natureza política, choveram críticas ao difícil trabalho a que se entregaram as equipes de lexicógrafos.  No Brasil, o Estado do Acre não admitiu usar a forma corrigida do gentílico local, preferindo manter a condição de exceção à regra. A forma “acriano”, com “i”, proposta pelo Acordo, foi rechaçada em nome da manutenção da antiga grafia, “acreano”, com “e”, de resto oficializada nos documentos por meio da lei nº 3.148, de 27 de julho de 2016.

Enfim, muita energia se gastou na crítica ao Acordo Ortográfico, que suprimiu o trema de “linguiça” e o acento de “geleia”, mas a reação ao monstrengo “paralimpíada” foi tímida, se não inexistente. Como estamos muito acostumados a estender o tapete vermelho para qualquer termo do inglês que nos bata à porta, por que não adaptar uma palavra do português ao figurino de uma língua mais valorizada?

É por essas e por outras, dito de forma muito simplificada, que quem manda mesmo na língua é o povo.  É o conjunto dos falantes da língua que, na prática comunicativa necessária à vida, testa, experimenta, aprova ou desaprova o que quer que seja. Seus critérios são os mais variados e, por certo, refletem as características da sociedade e do tempo.

Antes da internet, os termos demoravam muito mais para conseguir um registro em dicionário. Tinham de passar da língua oral para a escrita (aparecer em jornais, em obras literárias ou em outros documentos) e a insistência no uso lhes dava o passaporte para ingressar no vocabulário da língua.

Hoje, o uso é aferido pelas ferramentas dos buscadores e, além disso, os próprios dicionários estão em plataformas online, que permitem maior velocidade de atualização. O leitor que não conheceu a era pré-internet pode achar estranho, mas uma nova edição de um dicionário levava anos para ser feita, pois o acréscimo de meia dúzia de palavras não justificava tornar a anterior obsoleta.

Tratar a nova escolha do jornal como uma “concessão à audiência”, comparável a truques sensacionalistas para conseguir “cliques”, talvez não seja a melhor forma de encaminhar a questão, pois a língua, de fato, constrói-se, dia após dia, pela coletividade.

 

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Meu neologismo favorito https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/07/01/meu-neologismo-favorito/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/07/01/meu-neologismo-favorito/#respond Thu, 01 Jul 2021 17:03:39 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/Dicionário-Aurélio-Fábio-Braga-25-set-15-Folhapress15593559805cf1e24cb7977_1559355980_3x2_lg-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1624 Uma palavra nova, inventada, começa a circular na língua aqui e ali e, depois de uma espécie de fase de testes, é incorporada ao léxico ou descartada, condenada ao esquecimento, quando não ao uso particular de um falante ou de um grupo. Em geral, é a inclusão em dicionários que atesta a entrada do neologismo no léxico da língua, uma forma de reconhecimento de sua vitalidade.

Nossos leitores aceitaram uma provocação para interagir com a Folha, que os convidava a dizer qual era o seu neologismo predileto. Como não poderia deixar de ser, não faltou quem se lembrasse do repertório novo surgido com a pandemia de Covid-19, que, por um deles foi chamado de covidioma.

Lá estão arrolados covidário (já usado por médicos para fazer referência à ala de pacientes de Covid-19) e as invenções covidar (pegar a doença/ Fulano covidou), descoronar (desinfetar com sentido específico de livrar do coronavírus/ Fulano descoronou as compras), clorokiller e cloroquiner – estes últimos, mesclas das sílabas iniciais de “cloroquina” com elementos da língua inglesa, têm uso ligado especificamente ao contexto brasileiro de enfrentamento da pandemia pelo governo e, por certo, dispensam explicação.

Covidário a alguns incomoda pela associação com os antigos “leprosários”, que eram estabelecimentos onde permaneciam isolados os pacientes de lepra (hoje hanseníase) quando a doença não tinha cura. O sufixo “-ário”, nesse caso, apenas indica a ideia de coleção, como, de resto, em apiário, serpentário, ranário etc. O exemplo é bom porque mostra um dos processos de criação de palavras: o uso de sufixos preexistentes na língua associados a novos radicais.

Em covidioma, temos um caso de composição, com dois radicais justapostos (Covid + idioma), outro processo bastante fecundo de criação. As formas verbais, é bom que se diga, sempre pertencem à primeira conjugação (terminada em “-ar”), que é a única fértil no momento atual da língua, aparecendo também no sufixo “-izar”. Assim se explicam covidar, descoronar e outros verbos que surgiram na enquete.

Verbos: sempre da primeira conjugação

Uma leitora nos diz que, no lugar da expressão “fazer xixi”, da linguagem infantil, ela emprega xixizar. Outro de nossos amigos gosta mesmo é de pitacar, coisa que ele diz fazer diariamente no site da Folha: ele dá seus “pitacos” e passa o seu recado! “Pitaco”, como todos sabemos, é aquele palpite que se dá numa conversa. No dicionário “Houaiss”, embora com ressalva, aventa-se a hipótese de que esse termo de uso informal tenha origem no nome de Pítaco, um antigo sábio da Grécia!

Entre os verbos, apareceram mariar (agir como Maria?) e baleiar, usado por um grupo de frequentadores da Barra do Sahy, no litoral norte de São Paulo, que costumava caminhar pelo areal até a vizinha praia da Baleia, momento de descontração e de conversas sobre vários assuntos. O termo funciona dentro de um grupo fechado, sendo, portanto, menos um neologismo propriamente dito que uma gíria. Segundo a leitora que o enviou, o verbo guarda sinonímia com a expressão fazer uma Baleia.

Formação erudita

Fazendo uso de elementos gregos de composição (“poli-” + “agn-”), um leitor nos disse usar o termo poliagno para se referir a uma pessoa multi-ignorante. É ele quem explica: “É o contrário de ‘polímata’, que é o indivíduo que sabe de vários assuntos. O ‘poliagno’ desconhece vários assuntos”. “Poli-” indica multiplicidade, e “agn-”, ignorância.

Sabor popular

Mais frequentes que os termos de feição erudita, chegaram a nós aqueles de sabor popular. É o caso de enjolanca, que o leitor diz ouvir do pai “e de mais ninguém” (um modo de dizer que algo é “muito enjoado”) e devolança, que seria a “volta”, a “resposta” (é do leitor o exemplo de uso: “Bolsonaro não comprou as vacinas e agora nas urnas virá a devolança”).

Composições criativas

A política tem dado grande estímulo à criatividade das pessoas. Têm surgido várias palavras expressivas, algumas muito bem-humoradas, caso de embaixapeiro, que já veio no formato de verbete de dicionário, com definição e tudo (“palavra que designa o sujeito que supõe ter aptidão para ocupar um cargo diplomático por ter já desempenhado a função de fritador de hambúrguer”), e de intelijumento (“o mais esperto entre os menos espertos”), ambas de um mesmo autor.

Uso particular

Comprofodência também chega à maneira de verbete: “Substantivo abstrato feminino. Sinônimo de ‘simancol’, bons modos, temperança. Adjetivo: comprofodente. Uso: Fulano tem uma postura bastante comprofodente”. Provavelmente de uso particular, o termo parece nascer da junção de vários outros. Formação similar dá-se em menosquência, que, segundo o autor, sugere capacidade de discernimento (“Isso é falta de menosquência; que absurdo, que lapso de menosquência!”).

Gíria

Uma leitora diz gostar muito da gíria tals, que é uma espécie de plural irregular do pronome demonstrativo “tal”, com valor de “etc.”: “Estou mergulhada naquele projeto, numa revisão difícil, e-mails por responder e tals”. A graça, naturalmente, está nesse plural com mero acréscimo de “s” ao “l” final. É a desobediência à regra de flexão que assinala o uso gírio.

Efeito semelhante vem de taqueopariu, enviado por outra pessoa: a criatividade vem da junção dos termos e da supressão da sílaba inicial de “puta”, cujo traço semântico se apagou, restando ao termo apenas o valor interjetivo.

Panguar também apareceu no rol de preferências dos leitores: o termo da linguagem popular (“ficar/estar de bobeira”, à toa, perdendo tempo, enganado, iludido) já aparece no “Dicionário Informal” na expressão “tá panguando”, de origem desconhecida.

Referências intelectuais

Alguns leitores trouxeram palavras inspiradas em leituras e outras referências. Foi esse o caso de gogolização, termo derivado do nome do escritor russo Nikolai Gogol, autor da célebre obra “O Inspetor-Geral”, na qual um impostor se passa pelo inspetor-geral de uma província russa e procede às mais ridículas situações.  Nosso leitor diz usar o termo “para qualificar o total desmantelamento da ética, da seriedade e da qualidade dos cargos de confiança do governo”.

Acabativa foi lembrado por outro leitor, que atribui sua criação ao consultor de empresas Stephen Kanitz, em clara analogia com “iniciativa”. Segundo o conferencista, não basta ter iniciativa; é preciso terminar os projetos iniciados. Esse termo ilustra outro processo de formação do neologismo, que é a analogia.

O termo quimiscritor, já inventado e associado a Primo Levi, químico e escritor, foi lembrado por outro leitor. Outro ainda se recordou do neologismo criado pelo ensaísta libanês (radicado nos Estados Unidos) Nassin Nicholas Taieb, que cunhou a forma antifragile – em português, antifrágil – que nomeia um conceito filosófico. Novos conceitos, novos objetos, novas realidades precisam de novos nomes. Esse é, por assim dizer, o caso típico de surgimento de neologismo.

Referências literárias: à moda de Guimarães Rosa

O maior criador de palavras da literatura brasileira foi, sem dúvida, João Guimarães Rosa, autor de “Grande Sertão: Veredas”, entre muitos outros livros bem conhecidos do público. Vários leitores se lembraram do escritor, tendo um deles escolhido desexistir, que aparece na sua obra máxima: “Dia da gente desexistir é um certo decreto – por isso que ainda hoje o senhor aqui me vê” ).

Outros trouxeram termos que, como se vê, até poderiam ter saído de uma página de algum de seus escritos: desver  (hoje usado nas redes sociais, quando queremos esquecer uma imagem inconveniente), desendoidar (busca de atividades na tentativa de não enlouquecer neste período de pandemia), desbolsonarizar (“Em 2022, será mais que necessário ‘desbolsonarizar’ o Brasil), disconcordar, desler (o último já usado por Paulo Leminski, no poema “Ler pelo Não” –  “Desler, tresler, contraler,/ enlear-se nos ritmos da matéria,/” – e pelo psicanalista Ricardo Goldenberg, na obra “Desler Lacan”), repiorar e desasnificar. Este último veio de leitora que diz tê-lo criado em associação à imagem do Burro Falante (personagem de Monteiro Lobato), com o sentido de “buscar instrução para afastar o rótulo de burrice, inteirar-se de determinados assuntos para não passar vexame entre amigos”. Vale dizer que os dicionários registram o termo “desasnar”, no sentido de dar instrução (especialmente as primeiras noções), instruir-se, adquirir conhecimentos básicos de um oficio, ou corrigir equívoco.

O verbo “descomer” também apareceu, como referência a Ariano Suassuna, que o emprega no “Auto da Compadecida”, mas, segundo o dicionário “Houaiss”, esse termo, de uso informal, tem registro desde 1882, não sendo, portanto, um neologismo. O mesmo ocorre com “esperançar”, palavra que nos chegou como criação do saudoso educador Paulo Freire, que, de fato, o empregou, mas não foi seu autor (o registro mais antigo do termo é de 1789).

Neologismos dicionarizados

Outros leitores resgataram neologismos que, embora tenham perdido o frescor da estreia, ainda são percebidos como tais. É esse o caso do adjetivo imexível, criado por Antônio Rogério Magri, ministro do Trabalho do governo Collor de Mello (1990). O uso do termo (no sentido de o governo “não pretender ‘mexer’ nas regras da caderneta de poupança”) foi objeto de grande polêmica na imprensa até ganhar a defesa do filólogo Antônio Houaiss, que o registrou em seu dicionário.

Outro termo que já se tornou familiar é o popular panelaço, lembrado por uma leitora, que o escolheu por gostar “tanto do som da palavra como do efeito”. Cabe lembrar que o sufixo “-aço”, normalmente associado a aumentativo (amigaço, mulheraço), aparece nesse caso ligado à ideia de quantidade, análogo a “buzinaço”.

Ressignificado

Houve um leitor que disse ter predileção pela palavra textículo, que acredita ser de sua própria lavra. O termo é comum na linguagem informal como diminutivo de “texto”, em possível analogia jocosa com “testículo”. Nosso leitor, no entanto, adverte de que o significado do termo é, para ele, “texto pequeno e ridículo”. Sua analogia particular dá-se, portanto, com “ridículo”. A ressignificação de um termo preexistente também é um processo neológico.

Tabuísmo e ativismo

Recebemos ainda “estelarmente”, que não é um neologismo, mas um advérbio derivado do adjetivo “estelar” (relativo a “estrela”), rebosteio, da linguagem popular tabuística, e, ainda, todxs, cujo uso foi defendido como forma de respeitar as pessoas que não se identificam com nenhum dos gêneros – e, talvez sem perceber, em sua justificativa, a pessoa que o enviou faz uso de um dos neologismos mais frequentes nas redes sociais: “E pedir que compreendam quem usa não é ‘mi-mi-mi’, é garantir a liberdade de expressão, liberdade sexual e liberdade que um ser tem sobre si”. “Mi-mi-mi”, cuja grafia deve ser com os hifens, ilustra outro processo de criação de palavras, a onomatopeia, ou seja, a imitação de um som. É uma modernização do proverbial “nhe-nhe-nhem”, formado pelo mesmo processo.

Candidato à dicionarização

Finalmente, citado por mais de um leitor, o vocábulo bolsomínion é um candidato à dicionarização, dada a frequência do uso e o significado razoavelmente bem definido. Formado das primeiras sílabas do sobrenome do presidente da República (Bolsonaro), seguidas da palavra “minion”, do inglês, que significa “lacaio”, “seguidor servil”, o termo está na boca do povo. Note que o uso do acento fica aqui como sugestão de aportuguesamento da palavra, que, de resto, é uma paroxítona terminada em “n”.

PS- Agradecemos a todas as pessoas que participaram da interação com a Folha. 

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Notícia ou obituário? https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/05/06/noticia-ou-obituario/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/05/06/noticia-ou-obituario/#respond Thu, 06 May 2021 11:00:54 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/1615826628604f8ec422b16_1615826628_3x4_md-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1619 Quem lê a Folha regularmente já deve ter percebido que as notícias de morte nunca trazem o verbo “falecer”. Existe uma preocupação de natureza jornalística com a objetividade do registro do fato. Assim, os títulos sempre são variações da expressão “Morre fulano”, seguida de um aposto, no qual é destacada uma informação relevante sobre a pessoa.

Alguns casos recentes ilustram essa espécie de regra:

Morre Alber Elbaz, ícone de Hollywood e estilista da Lanvin, aos 59 anos, de Covid

Morre Michael Collins, astronauta da Apollo 11, aos 90 anos

Morre o político Levy Fidelix, 69, conhecido como o pai do aerotrem

Morre Tempest Storm, atriz burlesca que namorou John F. Kennedy e Elvis

Morre o economista John Williamson, pai do Consenso de Washington

Como se pode perceber, é na escolha do aposto que o autor do texto pode deixar transparecer algum juízo de valor (“ícone de Hollywood” é bastante simpático, digamos assim; “astronauta da Apollo 11” é neutro).

Muito bem. A morte do ator Paulo Gustavo, que provocou grande comoção nas redes sociais, foi noticiada sob o título “Morre Paulo Gustavo, o maior chamariz de público da história do cinema do país”. Não foram poucos os leitores que se incomodaram com o aposto, considerado indelicado em face do momento de consternação. As críticas foram ouvidas e optou-se por substituir “chamariz de público” por “fenômeno de público”.

Foi, por certo, o termo “chamariz” que fez soar pejorativa a caracterização do ator – talvez por dar a entender que o público de alguma forma possa ter sido “enganado” (como o peixe que morde uma isca) e levado a ver produções cinematográficas de baixo valor estético. Se tiver sido essa a ideia, a crítica recai mais sobre os filmes como um todo do que sobre o ator, que, afinal, por suas qualidades, era capaz de atrair o público.

No texto, o jornalista fez um apanhado da carreira do ator, enfatizando bastante os altos números de bilheteria, o que costuma soar como elogio – afinal, se é popular, é bom (discussão que pode ficar para outro momento). O que me parece oportuno aqui é traçar uma distinção entre notícia da morte e obituário, se é que é clara essa distinção (o leitor está convidado a opinar).

A Folha tem uma seção de obituário, em que se faz um tipo específico de relato da vida de uma pessoa morta recentemente (qualquer pessoa pode ser retratada nessa seção). As informações são colhidas em conversas com parentes e amigos, que descrevem com carinho a personagem em questão, buscando sempre os melhores traços da sua personalidade, fatos engraçados, hábitos, coisas de que gostava, frases que costumava dizer, enfim, as lembranças mais alegres. O arranjo das informações, quando bem-feito, resulta num interessante perfil do falecido, sempre marcado pela delicadeza, à maneira de uma crônica. Ler um obituário é mais ou menos como folhear o álbum de fotos de família da pessoa.

A notícia da morte, penso cá com meus botões, é outra coisa. É um texto objetivo, que não se confunde com um obituário propriamente dito. Nesse sentido, o jornalista pode transmtir com distanciamento as informações que fazem da pessoa assunto de notícia. O que, no entanto, talvez seja preciso considerar é o momento por que passamos, a morte prematura por Covid-19 de uma pessoa que, de alguma forma, representa as mais de 400 mil que se foram desde o início da pandemia no Brasil. Isso explica a sensibilidade dos leitores, que, nesta hora, veem Paulo Gustavo mais como um amigo querido que se vai do que como um artista que deva ser lembrado pelo valor de sua obra.

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Dividir opiniões e chegar a 5% https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/05/04/dividir-opinioes-e-chegar-a-5/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/05/04/dividir-opinioes-e-chegar-a-5/#respond Tue, 04 May 2021 11:00:50 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Criptomoedas-Dado-Ruvic-Reuters-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1608 Na edição do último dia 2 de maio, em interessante reportagem sobre o uso de criptomoedas,  a expressão “dividir opiniões” apareceu em duas construções, uma das quais inusual. Em outro texto, que oferece explicações sobre o câncer de estômago, veremos um emprego do verbo “chegar” merecedor de observação. Vamos aos casos!

No primeiro texto, que trata dos efeitos da maior presença das entidades monetárias no segmento de criptomoedas, lemos o seguinte subtítulo:

Decisões pró e contra moedas digitais dividem opiniões entre analistas e executivos do setor

Logo a seguir, temos esta construção:

Os analistas e executivos do setor dividem opiniões sobre os efeitos que a maior presença das entidades monetárias pode trazer ao segmento.

Convido o leitor atento a observar o sujeito do verbo “dividir” em cada passagem.

No primeiro caso, as decisões dos bancos centrais, favoráveis ou contrárias ao uso de crptomoedas, dividem opiniões entre analistas e executivos do setor. “Dividir entre” sugere “repartir” (dividir o prêmio entre os ganhadores), portanto não nos parece a melhor escolha. Esse problema, porém, poderia ser sanado com a substituição de “entre” por “de”, preposição que estaria ligada ao substantivo “opiniões” (opiniões de analistas e executivos).

É interesante observar a segunda passagem destacada, na qual o que divide opiniões não é o assunto, como seria de esperar. Agora os analistas e executivos do setor é que dividem opiniões “sobre os efeitos que a maior presença das entidades monetárias pode trazer ao segmento”, ou seja, pessoas dividem opiniões sobre um tema.

Afinal, o tema divide opiniões de pessoas (primeira passagem) ou pessoas dividem opiniões sobre o tema (segunda passagem)?

O sujeito de “dividir opiniões” é o tema, não as pessoas que o discutem. “Dividir opiniões” é mais ou menos o mesmo que “ser polêmico”. Assim, parece-nos, finalmente, que, sobre a segunda passagem, seria correto dizer que os efeitos da maior presença das entidades monetárias no segmento de criptomoedas é que dividem opiniões de analistas e executivos. Assim:

Os efeitos da maior presença das entidades monetárias no segmento de criptomoedas dividem opiniões de analistas e executivos do setor.

O segundo tema que vamos abordar aqui é o emprego do verbo “chegar” quando ligado a quantias ou somas. Em geral, nós usamos o termo para indicar a elevação, não a redução. Por exemplo: os valores desviados chegaram a R$ 200 mil ou os valores desviados não chegaram a R$ 20 mil. Na frase afirmativa, o valor é alto; na frase negativa, o valor é bem mais baixo. Tanto em uma como em outra, no entanto, subentende-se como ponto de partida o zero ou, pelo menos, um valor inferior às quantias expressas.

Causou-nos certa estranheza o uso de “chegar a” feito no infográfico que fornece dados sobre o câncer de estômago, publicado a propósito da doença do prefeito de São Paulo, Bruno Covas. Vejamos:

31%

é a taxa de sobrevivência média de pacientes com câncer de estômago cinco anos após o diagnóstico, segundo estatísticas americanas; esse índice chega a 5% quando há presença de metástase

Como o ponto de partida é 31%, o índice sofre uma redução, aliás bastante expressiva. O mais comum seria dizer que o índice cai para 5% ou se reduz a 5%. “Chega a 5%” sugere que o ponto de partida seja inferior, não superior.

Sintetizando os dois temas tratados hoje, temos o seguinte:

  1. o sujeito de “dividir opiniões” é um tema, um fato, algo abstrato;
  2. “chegar a”, quando exprime quantias ou valores, sugere aumento, elevação de um ponto inferior a um ponto superior.
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Corroborar e comentar https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/corroborar-e-comentar/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/04/30/corroborar-e-comentar/#respond Fri, 30 Apr 2021 11:00:58 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/Pazuello-entrega-de-enfermaria-Manaus-Caio-de-Biasi-Ministério-da-Saúde-16119616616014953dcf082_1611961661_3x2_lg-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1603 Merece atenção a regência de “corroborar”, verbo que parece ter entrado na moda na esteira do adjetivo “robusto”, e a de “comentar”. Os dois são transitivos diretos, mas vêm sendo empregados como se fossem transitivos indiretos. De tempos em tempos, um leitor (ou será uma leitora?) se queixa dessas construções encontradas aqui e ali no grande conjunto de textos que são publicados diariamente na Folha.

O verbo “corroborar”, pouco tempo atrás, era típico de textos formais – em geral, de caráter científico ou jurídico –, usado em seu sentido próprio, qual seja o de reforçar, consolidar, ratificar, confirmar. De uns tempos para cá, ganhou espaço em conversas informais (não é difícil encontrá-lo nas redes sociais, por exemplo), mas, nessas situações, frequentemente com sentido alterado. O que primeiro nos chama a atenção nesse uso é a pesença da preposição “com” a introduzir o seu complemento.

Em vez de frases como “Os argumentos corroboram a hipótese” ou “Os fatos corroboram a teoria”, vamos encontrar “Fulano não corrobora com isso”, caso em que seria mais apropriado o verbo “concordar”.

Vejamos alguns exemplos, extraídos da Folha:

Ao entrar na casa, Thaís havia anunciado que era “a rainha das tretas” e que adorava “ser o centro das atenções”. Porém, sua passagem pela casa não corroborou com as afirmações. (F5. 13.4.21)

Nesse trecho, bem poderíamos ter dito que “sua passagem pela casa não corroborou as afirmações” (ou “não comprovou as afirmações”), deixando a preposição “com” para as situações em que ela é necessária. O mesmo vale para o exemplo seguinte:

Em outubro falei para meu pessoal pisar no acelerador, comprar terreno, acelerar obras, porque sentíamos que as coisas ficariam boas. Janeiro e fevereiro corroboraram com isso, mas março e abril mostraram que não é bem assim. (Mercado. Painel S/A. 21.4.19)

Bastaria, nesse caso, suprimir a preposição “com” (corroboraram isso). Na passagem abaixo, porém, “corroborar” parece ter sido uma escolha lexical imprópria. A correção da regência não seria suficiente para tornar a frase compreensível. Vejamos:

Na última viagem a Manaus, dias antes de o sistema de saúde da capital amazonense entrar em colapso por falta de oxigênio, Pazuello corroborou com os técnicos do ministério, que recomendaram à prefeitura de Manaus a distribuição de medicamentos sem eficácia comprovada para Covid-19 a pacientes com sintomas leves, nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs). (Cotidiano. Equilíbrio e Saúde. 29.1.21)

Aparentemente, corroborar foi usado no lugar de concordar, assentir, aquiescer (concordou com os técnicos do ministério). Para usar “corroborar”, seria necessário alterar um pouco o restante do texto. Vejamos:

Na última viagem a Manaus, dias antes de o sistema de saúde da capital amazonense entrar em colapso por falta de oxigênio, Pazuello corroborou as recomendações dos técnicos do ministério, que orientaram a Prefeitura de Manaus a distribuir  medicamentos sem eficácia comprovada para Covid-19 a pacientes com sintomas leves, nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs).

No último fragmento selecionado (abaixo), temos a transcrição de um comunicado. Nessa situação, a Redação não faz correções gramaticais, mas nada nos impede de usar o [sic] – tanto pelo uso inadequado de “corroborar” como pela grafia de “linchamento” (do inglês “lynch”), cujo erro salta aos olhos. Vejamos:

“Viemos esclarecer que a nossa equipe não corrobora com o linxamento moral que a política do cancelamento gera, tanto nas redes quanto dentro da própria casa, onde estamos vendo de forma inaceitável com que o participante Lucas vem sendo tratado”, escreveram os administradores das redes de Fiuk em comunicado, na mesma rede. (F5 2.2.21)

Tivesse a assessoria de Fiuk feito uma revisão de texto, teríamos o seguinte:

Vimos esclarecer que nossa equipe não concorda com o linchamento moral, gerado pela política do cancelamento, tanto nas redes sociais quanto dentro da própria casa, onde o participante Lucas vem sendo tratado de forma inaceitável.

O verbo “comentar”, por sua vez, tem aparecido seguido da preposição “sobre”. É possível que o traço semântico de assunto que essa preposição carrega seja responsável, pelo menos em parte, por essa “inovação”. Outra hipótese é a contaminação da regência do substantivo correlato “comentário”, este sim ligado ao seu complemento pela preposição “sobre” (fazer um comentário sobre algo). Vejamos alguns exemplos, todos extraídos do mesmo texto:

O advogado da auditora, Joseph Araújo, não confirmou o uso do papel timbrado nas denúncias e preferiu não comentar sobre essa acusação.

[…]

O TJ-RN não comentou a prisão da auditora, nem as denúncias feitas por ela contra o magistrado. “O Tribunal de Justiça não se pronuncia e não emite juízo de valor sobre o assunto, que tramita nas esferas judiciais competentes”, afirmou em nota.

[…]

O CNJ aguarda a conclusão do processo disciplinar para dar andamento ao procedimento de apuração interna contra o juiz. A Folha entrou em contato com o órgão no último dia 23 para comentar sobre o caso, mas não recebeu resposta até a publicação deste texto.

Vale observar a hesitação entre as duas construções. A única considerada correta, à luz da norma-padrão, é a segunda (O TJ-RN não comentou a prisão). Comentamos a prisão, a acusação, o caso, enfim, comentamos alguma coisa (não “sobre” alguma coisa). Esse uso, no entanto, é muito frequente na imprensa como um todo. Vejamos mais um exemplo:

“Só que não tenho vergonha, foi a forma que levei”, afirma a atriz. “Nunca menti pra ninguém, não fui falsa, só fui jogadora. Fugi dos paredões como o Tiago pedia”, assegurou. A youtuber também comentou sobre sua trajetória no jogo durante o programa BBB: A eliminação (Multishow).

Em suma, nossa recomendação aos jornalistas da Folha é que usem “corroborar” e “comentar” como transitivos diretos (sem preposição).

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Títulos ambíguos e títulos enigmáticos https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/04/29/titulos-ambiguos-e-titulos-enigmaticos/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/04/29/titulos-ambiguos-e-titulos-enigmaticos/#respond Thu, 29 Apr 2021 11:00:13 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/Blake-Bailey-NYT-1619104403608192933bd1e_1619104403_3x2_lg-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1589 Um dos problemas típicos de textos jornalísticos, embora não só deles, é o uso de construções sintáticas ambíguas. Por que será que isso acontece?

Por um lado, é sempre um desafio criar um título sintético e chamativo que caiba no espaço destinado a ele. Caber é um dado importante e, às vezes, definidor de uma escolha. Essa é uma imposição da diagramação, que, não raro, põe o redator em palpos de aranha; a dificuldade, embora atenuada na versão online, nunca está de todo afastada. É por essas e também por outras que as ambiguidades nem sempre são percebidas no momento em que são produzidas.

Por outro lado, há estruturas da língua que predispõem ao risco da ambiguidade. É esse o caso dos pronomes possessivos de terceira pessoa (seu, sua, seus suas). Para ilustrar o problema, vale observar um título publicado na edição impressa do último dia 28 de abril (página B12):

 

 

O pronome possessivo “sua”, associado ao substantivo “obra”, pode remeter o leitor tanto ao biógrafo, como se desejava, como ao escritor Philip Roth. Vale notar que, como se está falando do biógrafo, em tese, é a ele que se refere o pronome, mas o contexto permite a segunda leitura.

Os pronomes possessivos de terceira pessoa, de fato, oferecem esse risco, daí a preferência de certos órgãos da imprensa pelas formas “deles” e “delas”. É disso, aliás, que fala Caetano Veloso quando, em sua canção “Língua”, nos sugere que “ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo”.

O título acima, no entanto, nada ganharia com a substituição de “sua obra” por “obra dele”, como se pode perceber, motivo pelo qual nunca fiz coro com recomendações generalizantes e abstratas do tipo “nunca use x”, “substitua x por y”. Convém considerar que o termo “obra”, aqui usado em referência a um livro (a biografia de Roth), é, por excelência, o termo empregado para tratar do conjunto da produção de um artista, sobretudo quando este já morreu. Certamente, essa escolha lexical contribui para a ambiguidade.

Mais um fator favorece a leitura indevida do título acima: o verbo “mudar”. Poderíamos imaginar que a circunstância em questão “muda” a leitura de quem conhece a obra de Roth. Lemos a obra de um modo e agora, à luz das revelações, nós a leremos de outro. Tal interpretação é reforçada pelo fato de ainda não termos tido acesso ao livro do biógrafo – se não o lemos, como a denúncia “mudaria” nossa leitura?

Alguns poderiam argumentar que, obviamente, a vida do biógrafo não influi na interpretação da obra do biografado. A esses recomendo reler com atenção o subtítulo (entre os jornalistas chamado de “linha fina”), em que se informa que as denúncias contra o biógrafo podem respingar no biografado, o que será explicado no decorrer do texto.

Vemos, portanto, que o título continha um problema. O fato de, em alguma medida, serem possíveis as duas interpretações (as denúncias mudam a leitura da biografia ou mudam a leitura da obra de Roth) só piora a situação, pois, se a intenção fosse dizer as duas coisas, isso deveria ser feito com clareza.

Diante da situação, tomou-se a decisão de reformular o título na versão online. Sendo sua parte (mais) problemática o trecho “sua obra”, optou-se pelo seguinte:

Saber se biógrafo de Philip Roth estuprou alguém muda a leitura

De ambíguo o título passou à categoria de enigmático, pois agora simplesmente não se sabe de que leitura se está falando: leitura de quê? O substantivo “leitura”, nesse caso, pede um complemento. O termo prescinde de complemento quando tomado em sentido geral, ou seja, como uma prática (O estímulo à leitura é muito importante nos anos iniciais da escola).

Não nos passa despercebida outra mudança nesse título: substituiu-se, em boa hora, o substantivo “estuprador” por “estuprou alguém”. Esse ponto é mais delicado, pois o referido biógrafo, Blake Bailey, foi acusado, mas ainda não foi julgado, o que nos aconselha a não tachá-lo de “estuprador” – por mais que ele nos pareça merecdor da alcunha. Proponho aqui duas alternativas ao título original e também à sua segunda versão, sabendo, de antemão, que nossos leitores poderão ter ideias melhores:

Biografia de Philip Roth é posta em questão depois de acusação de estupro contra seu autor

Biografia de Philip Roth terá leitura influenciada por acusação de estupro contra seu autor

Quem quiser propor outra redação para o título deixe seu comentário!

 

 

 

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O suarabácti de Lula https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/03/11/o-suarabacti-de-lula/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/03/11/o-suarabacti-de-lula/#respond Thu, 11 Mar 2021 20:46:10 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/Lula-discurso-0ebe84b8-5012-4e89-bf71-69a0e63e420f-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1580 A última fala do ex-presidente Lula gerou uma avalanche de comentários nas redes sociais – e, como sempre acontece, houve quem se preocupasse em avaliar o seu uso do português. Desta vez, foi a pronúncia da palavra “advogado” como “adevogado” o que chamou a atenção.

Vale dizer que o acréscimo de um apoio vocálico a desfazer um grupo consonantal é um fenômeno fonético relativamente comum, chamado “suarabácti” – a palavra estranha vem do sânscrito.

O nome do inseto em que se teria transformado a personagem Gregor Samsa do conto de Franz Kafka (“A Metamorfose”) é um exemplo desse processo. “Barata” vem do latim “blatta” (houve rotacismo na passagem de “l” a “r” e o acréscimo da vogal, que transformou “bra” em “bara”).

Essa formação, por ser antiga, talvez não nos impressione muito, tampouco gere percepção de erro. Veja-se, então, o que se deu com as palavras “cáften” e seu feminino, “caftina” – por via popular, fixaram-se as variantes “cafetão” (com epêntese, que é o acréscimo de fonema por acomodação articulatória ou mesmo por analogia – possível semelhança com “café”) e “cafetina”. O mesmo vale para o verbo “caftinar”, que, na variante popular, é “cafetinar”. O uso garantiu às variantes populares um lugar no dicionário.

Nem sempre, porém, a vogal de apoio se fixa na escrita, como ocorreu com “barata” e com o par “cafetão/ cafetina”, mas é comum que se fixe na pronúncia. Aos que se incomodaram com o “adevogado” de Lula, sugiro que observem à sua volta (e mesmo nos noticiários de TV) a pronúncia de termos como “psicólogo”, “psiquiatra”, “psicologia”, em que frequentemente aparece um “i” depois do “p” (como se lessem “piscicólogo”, “pissiquiatra”, “piscicologia”).

Atire a primeira pedra quem nunca tenha dito “peneumonia” em vez de “pneumonia” ou “peneu” (do automóvel) em vez “pneu”. Mais: será que você pronuncia “sub-humano” (“su-bu-ma-no”) ou deixa aparecer sorrateiramente uma vogal “i” depois do “b” (“subi-humano”)?

Quem ficou indignado com o suarabácti do Lula que se cuide ao pronunciar as formas do verbo “indignar-se”. Muita gente supostamente bem letrada tropeça ao pronunciar o imperativo “indigne-se” e prefere lançar mão do apoio vocálico, dizendo algo como “indiguine-se”. Já ouviu isso? Que dizer de palavras em que o “x” tem som de “cs”? Há quem diga “séquiço” (sexo) ou “fáquis” (fax), coisa muito comum.

Na pronúncia de certos estrangeirismos, fica ainda mais evidente a nossa tendência a criar apoios vocálicos e outras acomodações articulatórias. “Smartphone” soa “ismartifone”, “e-mail” soa “emeio” e por aí vai.

O próprio Lula, em sua fala, lembrou que, no passado, ele dizia “menas laranja” e que era alvo de correção (embora não houvesse redes sociais, a mídia não deixava passar), mas que, na porta da fábrica, todo o mundo entendia – e é verdade.

A flexão de “menos” (como “menas”) enquadra-se no fenômeno da hipercorreção (ou ultracorreção), em que o falante interpreta como errado o que está certo, em geral por insegurança em relação ao uso culto da língua. É esse o caso também de quem flexiona indevidamente as formas do verbo “haver” em construções do tipo “Haviam muitas pessoas” ou “Houveram muitas denúncias”, nas quais a norma culta orienta a manter o verbo invariável (“Havia muitas pessoas”; “Houve muitas denúncias”).

É por essas e por outras que a linguística evita trabalhar com conceitos de “certo” e “errado”, que são muito relativos e, num esforço de simplificação, deixam de considerar a diversidade de registros, que, juntos, compõem a língua.

 

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Folha: 100 anos de língua portuguesa https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/02/19/folha-100-anos-de-lingua-portuguesa/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/02/19/folha-100-anos-de-lingua-portuguesa/#respond Fri, 19 Feb 2021 11:00:08 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/ILUSTRAÇÃO-1611345757600b2f5d8e3f7_1611345757_3x2_md-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1574 A ideia de compilar as palavras e expressões que vieram ao mundo nas páginas da Folha nos últimos 100 anos era espetacular, mas carecia de um tipo de pesquisa muito difícil de fazer, sobretudo em pouco tempo.

Restava apelar para a memória e conversar com alguns dos articulistas que fizeram história no jornal para relembrar palavras e expressões que marcaram o seu tempo. Assim foi feita a reportagem de Marcella Franco, publicada hoje no Caderno Especial.

Era de esperar que os inventores de palavras atuassem, principalmente, nos cadernos culturais – e assim se chegou a Joyce Pascowitch, Erica Palomino e José Simão.

Aos muito jovens pode parecer estranho o termo “dasluzette”, criação de Joyce, mas foi esse o apelido dado pela colunista a quem frequentava assiduamente a loja Daslu, templo do luxo paulistano, que teve suas portas fechadas em 2016. Na pena de Joyce, a terminação “-ette” renderia mais duas palavrinhas: “culturette” e “milionette”. A duplicação do “tt”, à moda francesa, garantia o discreto charme da elite frequentadora de museus no exterior e endinheirada o suficiente para colecionar obras de arte em casa.

De modo geral, o sufixo “-ete” é apropriado para mesclar o “modernoso” com o “picaresco”: “chacrete” e “periguete” que o digam e, mais recentemente, nas páginas da Folha, “bolsonarete” (“Bolsonaro e bolsonaretes de coturno explicaram para o cidadão de bem que o povo armado não será escravizado”).

Joyce Pascowitch chamava homem bonito de “lasanha”, talvez renovando uma velha tradição de associar a beleza masculina a uma iguaria largamente apreciada. Os mais velhos se lembrarão de que já foi muito comum dizer que um galã de novela era um “pão”.

Filho de presidente era primeiro-filho, genro de presidente era primeiro-genro, sempre seguindo à risca o modelo de “primeira-dama” – e não é que hoje já se fala em primeiro-cavalheiro? Sendo a mulher a presidente (ou presidenta, como queiram), parece natural que assim se chame o seu marido. Será?

“Montar”, na gíria gay costuma ser usado pelas drag queens depois de vestidas e maquiadas. Erica Palomino não hesitou em ampliar esse uso para quem quer que carregasse demais na maquiagem. Numa época em que o jornalismo era um pouco mais sisudo do que hoje, a Folha foi pioneira na reverberação do vocabulário do universo LGBT, que aparecia nos textos da colunista. O fato de estar nas páginas do jornal dava à palavra um novo status, rumo à dicionarização. O verbo “montar”, nesse sentido, está registrado no “Houaiss”.

Embora em geral seja muito difícil, às vezes é possível saber quem inventou uma palavra São raríssimos os casos em que o criador é conhecido e, mesmo nesses, é vã a sua glória, já que a palavra vai seguir trajetória própria e a coletividade é que dirá o que dela será feito.

Alguns leitores se lembrarão de que, nos anos 1990, o ministro Rogério Magri, do governo Collor, cunhou o adjetivo “imexível”, que, à primeira vista, soou “errado” – e pudemos ver que não só de médico e de louco, mas também de professor de português, todo o mundo tem um pouco. Em toda a imprensa, viram-se críticas à falta de vocabulário do ministro, que era dado a certas criatividades, como a de dizer que sua cadela era um ser humano. Pouco tempo depois, o dicionário “Houaiss” acolheria o termo como, afinal, um sinônimo de “inalterável” – e poria fim à discussão.

Daí em diante, o termo foi aparecendo de maneira jocosa na pena de alguns colunistas, que, de início, zelavam pelo uso das aspas, não raro atribuindo-lhe a autoria, e, com o tempo, foram despindo a palavra do adereço, bem como da referência ao seu “autor” (“Apesar de acenos a diálogo, Lira disse que a decisão da mesa está tomada e que nenhum lugar era imexível“).

A Folha não foi o primeiro veículo a dar espaço para o “imexível”, mas foi, na década anterior, aquele que no qual estreou a palavra “papamóvel”, cujo primeiro registro impresso, segundo o próprio “Houaiss”, data de 19 de junho de 1980. A palavra veio à luz em uma reportagem sobre os preparativos para a primeira visita do papa João Paulo 2º ao Brasil, em que aparece entre aspas, mencionada como o termo que estava sendo usado para descrever o veículo que o transportaria. Vale assinalar que a datação de uma palavra está ligada ao seu registro verificável mais antigo e que, por isso mesmo, caso surjam novas pesquisas, o termo pode ser retrodatado.

Se é bem verdade que as palavras não costumam carregar carteira de identidade, há casos em que algumas expressões ganham sentido particular na voz de alguém. É por isso que apresentadores de televisão costumam criar bordões.

Na mídia impressa, nas páginas da Folha, foi o colunista José Simão, o “Macaco Simão”, quem transportou para o papel esse traço tão típico da oralidade. Assumindo um apelido de infância dado pelos coleguinhas de escola (em alusão a um personagem de revista infantil que, como ele, se chamava Simão), criou o célebre “Macaco Simão! Emergência!”, que dá início às colunas quando a notícia é bombástica. De resto, todos os textos começam com o indefectível “Buemba! Buemba!” e terminam com o impagável “Nóis sofre, mas nóis goza”, que, desde a grafia, imita a pronúncia do paulistano, além de suprimir a concordância verbal, como se faz na linguagem informal, e de acionar, com a picardia de sempre, o duplo sentido da palavra “gozar”. Com isso, Simão ganha a cumplicidade do leitor.

Há termos, no entanto, que, longe das colunas de humor, foram inventados por articulistas e passaram a fazer parte de um repertório próprio desse autor. Quem, ao ouvir a palavra “privataria” (registrada no “Houaiss”), não se lembra de Élio Gaspari ou, ao ouvir o tal “petralha” (registrado no dicionário de Sacconi), não se lembra de Reinaldo Azevedo? Esta última, é verdade, foi muito mais amplificada na internet que nas páginas da Folha e hoje parece trazer ao criador menos orgulho que em outros tempos.

O hábito de fazer jogos de palavras, no entanto, é mais comum do que parece e faz parte do dia a dia da Folha. O articulista Conrado Hübner Mendes recentemente cunhou “magistocracia” (“Entre os obstáculos que emperram o Estado de Direito no Brasil, a hegemonia da magistocracia no sistema de justiça é dos mais ignorados”) e Vinicius Torres Freire, useiro e vezeiro em jogar com as palavras, já chamou o general Pazzuello de general Pesadello, rivalizando com Zé Simão, que, outro mestre na arte do chiste (espécie de dito espirituoso por meio do qual um conteúdo crítico se reveste de uma forma cômica), batizou de general Pazuerro o mesmo personagem.

A técnicas de alterar o corpo da palavra, não raro de juntar dois nomes para criar um conceito, como o Datapadaria de Simão, em que faz jocosa alusão ao Datafolha, estão na base nos ditos chistosos, que vão além dos simples trocadilhos. Estes, a bem da verdade, também são muito saborosos e, como nos lembra Paulo Rônai, estão disseminados pela literatura, desafiando o ofício do tradutor, uma vez que é muito difícil transpor de uma língua para outra um conteúdo que está conjugado com uma forma específica.

São os trocadilhos que garantem o riso do leitor ante as histórias dos “predestinados”, que são traquinagens do Macaco Simão baseadas em nomes próprios reais de pessoas, como o do delegado linha-dura chamado Themildo das Trevas, o da funcionária da Italac Laticínios chamada Cláudia Leite ou o do escritório de advocacia Katia Regina Murro e José Carlos Pacífico, o Murro e Pacífico (“Direto de Osasco, o escritório de advocacia Katia Regina Murro e José Carlos Pacífico! (“Duas opções! Eu prefiro no MURRO!”). Sem encerrar nenhum tipo de crítica, apenas divertem.

Também não foi à toa que se intitulou “esculhambador-geral da República”. A matéria-prima de seus textos é o noticiário; é lá, nas outras páginas da Folha, que Simão encontra a inspiração, às vezes na forma de “piada pronta”, expressão que ele celebrizou.

O recurso usado para criar o efeito cômico nesse caso é o simples deslocamento da informação para a sua coluna. A graça depende muito da atualidade, daí o casamento perfeito entre o humor do colunista e as páginas do jornal.

É Freud quem explica que o poder de síntese é um dos fatores responsáveis pelo prazer que temos de ler ou ouvir um chiste. Simão resume assim a derrota de Trump nas últimas eleições dos EUA: “Cabô a Casa da Supremacia Branca!”. É dito em uma frase o que poderia ser desenvolvido em um texto inteiro de caráter argumentativo, com a vantagem adicional de nos conceder o prazer do reconhecimento de algo que sempre esteve diante dos nossos olhos e não foi percebido antes.

Das suas criações, a mais popular é, sem dúvida, o “picolé de chuchu”. A junção do gelado com o insípido, numa imagem quase infantil, sintetizou, à maneira de uma caricatura, o traço característico do ex-governador Geraldo Alckmin. E diga-se: “chuchu” já vem sendo usado nesse sentido em relação a quaisquer personagens que se assemelhem ao que lhe serviu de inspiração, ao mesmo tempo que seu sentido antigo de “moça bonita” vai sendo esquecido e, ao lado do “pão” e da “lasanha”, ficando na memória dos mais antigos.

O pai da psicanálise, que muito se interessou pelo estudo dos chistes, explica que os bons são aqueles que levam à explosão do riso. Para ele, o poder de síntese e a suspensão do juízo crítico instaurada pelo chiste produzem prazer, e esse prazer pode ser mais efetivo na transmissão de uma mensagem do que o poder de argumentação.

Não por outro motivo os trocadilhos e quaisquer jogos de linguagem são tão usados para capturar a nossa atenção, seja na linguagem publicitária, seja nos textos de humor ou nos quadrinhos, seja, cada vez mais, no próprio jornalismo.

 

 

 

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Vacinados https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/01/27/vacinados/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/01/27/vacinados/#respond Thu, 28 Jan 2021 00:06:04 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Vacinado-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1563 Aos trancos e barrancos, claudicante, vem começando a vacinação contra a Covid-19 no Brasil. Depois de uma longa sessão da Anvisa, que acompanhamos pela TV, ouvindo os longos votos de cada integrante da diretoria da agência, como ouvíamos em outros tempos as intermináveis peças de oratória dos ministros do STF, as vacinas são aprovadas, a fotografia oficial é tirada e, por um instante, respiramos aliviados.

No dia seguinte, a realidade: o lote de vacinas disponíveis é muito pequeno e ainda há inúmeros entraves à imunização da população como um todo. Ainda que não faltassem doses, seria necessário estabelecer uma ordem, uma vez que seria impossível vacinar a população inteira em um dia só.

O critério de prioridade já estava, portanto, definido: profissionais de saúde da linha de frente, em razão do contato constante e direto com pacientes infectados, e o grupo de idosos, indígenas, quilombolas e populações ribeirinhas, em razão de maior fragilidade. A regra parecia razoável, mas não resistiu nem por dois dias.

Os fura-filas, em geral beneficiados pelo corporativismo ou por relações de amizade e compadrio, nem se deram conta de que exibir nas redes sociais o seu atestado de vacinação não lhes atrairia simpatia ou admiração. Que significa ser um “vacinado”? Significa que vai poder abandonar a máscara de proteção, voltar a conviver com seus amigos e parentes, frequentar festas, voltar à vida normal sem medo?

Qual é, de fato, a vantagem de ser um dos poucos vacinados? Na lógica das redes sociais, produz o efeito de provocar a inveja alheia, o mesmo que se obtém divulgando viagens exóticas, férias espetaculares, família feliz, presença em festas badaladas ou restaurantes caros e quejandos, mas, na prática, não há vantagem alguma nessa exclusividade.

É fato que, sob a influência constante do maketing, estamos acostumados a identificar o que é bom com o que é exclusivo, ou seja, com aquilo que exclui os outros, que é supostamente só nosso e, portanto, faz de nós únicos, indivíduos melhores que os outros. A volta da “vida normal”, porém, depende da vacinação do conjunto da sociedade, portanto de um programa inclusivo de vacinação – e da real eficácia da vacina.

Diante da óbvia reação negativa da maior parte das pessoas aos fura-filas, vêm as explicações (eu vou fazer 60 no mês que vem; eu tenho sinusite; eu trabalho no setor administrativo do hospital e posso ter contato eventual com parente de paciente de Covid etc.). Todos estamos expostos ao risco e todos temos o direito à vacina. O problema é respeitar a prioridade, que é a primazia, a possibilidade legal de passar à frente dos outros. Podem-se questionar os critérios de prioridade, é claro, mas não é isso o que se vê. Salve-se quem puder!

Um grupo de grandes empresários também tenta furar a fila. Com dinheiro para comprar as doses por um valor muito mais alto que o contratado pelo governo, eles põem a vacina numa espécie de leilão. Sua justificativa não difere muito da dos outros fura-filas, pois argumentam que a elevação do número de vacinados, independentemente dos critérios de prioridade do Ministério da Saúde, seria em si benéfica.

Por óbvio, esse argumento pode servir para qualquer furador de fila. Acrescentam que doariam ao governo (para distribuição à população) a metade das doses adquiridas (de um total de 33 milhões, doariam 16,5 milhões). Os critérios de distribuição passam a ser os de quem está pagando, o que, na lógica de mercado, também está justificado. Quem pode mais chora menos, afinal.

Na prática, porém, o problema persiste, pois, salvo engano, tendo a vacina eficácia de pouco mais de 50%, seu efeito depende da vacinação em larga escala (e da aplicação das duas doses), o que é um processo – e vai ser preciso ter paciência.

Em suma, pertencer à minoria dos vacinados talvez produza um efeito mais simbólico que real. A proteção, de fato, virá quando pertencermos a uma maioria de vacinados.

 

 

 

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Novos códigos https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/01/05/novos-codigos/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/01/05/novos-codigos/#respond Tue, 05 Jan 2021 17:53:43 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Bolsonaro-na-praia.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1557 Aqui costumo tratar de questões relativas à língua portuguesa, mas não me parece fora de propósito dispensar alguns parágrafos a uma linguagem não verbal por meio da qual nos reconhecemos e nos comunicamos nestes tristes tempos de convívio com a ameaça invisível de um vírus.

O principal item desse novo código é a máscara de proteção, que a um só tempo nos protege dos perdigotos alheios e livra os outros do contato com os nossos. Sua função parece clara, visto que o vírus se transmite pelas vias aéreas. Devemos, então, cobrir a boca e o nariz, portas de entrada e de saída do vírus.

A esta altura, depois de um ano de apelo e de explicações acerca da utilidade do acessório, convertido em peça do vestuário, com direito a estampas variadas, parece claro que quem se recusa a usá-lo não age por ignorar a sua função. A recusa de usá-lo ecoa a negação seja da gravidade da doença, seja dos métodos de combater o contágio, acrescida de uma pitada de pensamento mágico.

A imprensa noticiou as festas de fim de ano e aglomerações que ocorreram em todo o país em plena pandemia. Por óbvio, quem caiu na farra dispensou a máscara. Alguém imaginaria essas mesmas festas com pessoas mascaradas? Os adeptos da máscara preferiram adiar as comemorações para momentos mais oportunos.

Usar ou não a máscara passou a ser um código de conduta de viés ideológico, como tudo desde que a fanfarronice se instaurou no governo federal, que, em vez de se empenhar em campanhas educativas, compra de vacinas, testagem da população, organização do combate à pandemia, prefere investir no caos e na negação. Que dizer de um presidente da República que insiste no mau exemplo e faz piada com a preocupação das pessoas com a própria vida e a dos demais?

O presidente aparece publicamente sem máscara e abraça eleitores, que o imitam. Seus ministros e/ou secretários concedem entrevista coletiva à imprensa em que tiram a máscara a cada vez que respondem a uma pergunta dos jornalistas, sendo que ao falar é que se emitem os perdigotos…

Não estranhemos, portanto, pessoas que arregaçam a máscara ao pescoço para falar ao telefone e até mesmo para soltar um espirro em público. Muitos fazem o mesmo gesto enquanto praticam esportes nas praças, caminham pelas ruas ou quando vão aos bares e restaurantes com os amigos.

Nos locais em que o uso da máscara é obrigatório, geralmente se pendura um cartaz com as instruções de colocação do acessório, mas quem lê cartazes? Salões de cabeleireiro são um problema: o ambiente de harmonia, de encontro com os amigos, que é tão típico desses locais, cria um grande embaraço para os funcionários diante dos clientes que não respeitam as regras — os que as respeitam e os que não as respeitam estão ali, juntos e pagantes, numa guerra silenciosa.  Uma boa quantidade de pessoas deixa o nariz de fora; outras penduram o pano na orelha… Para que usam, então?

Parece que se trata mais de um código de conduta que de real convicção na capacidade de proteção do acessório. Uma pessoa sem máscara vê outra com máscara nas áreas comuns do condomínio e pode vestir a sua em respeito à crença do vizinho – ou para evitar algum constrangimento maior.

É muito desagradável usar essas máscaras; de resto, ninguém fica bonito atrás delas. Se as usamos, é porque é necessário. Se o tecido serve de anteparo a um ser invisível, não devemos puxar e recolocar a máscara que pode estar contaminada, pois corremos o risco de facilitar a entrada do vírus em nosso próprio organismo. Não é óbvio?

Estranhos tempos estes em que os símbolos parecem anteceder a materialidade das coisas. O gesto de usar a máscara é mais motivado pelo seu aspecto simbólico de pertencer a um grupo de pessoas conscientes (ou pelo incômodo de discutir com algum membro desse grupo) do que por sua utilidade comezinha, que só  se configura no uso correto e higiênico. Como explicar a máscara no pescoço, na orelha, abaixo do nariz ou sendo puxada, tirada e recolocada como se fosse casaquinho de frio? Resta-lhe apenas o traço simbólico, ainda que vago.

Que em 2021, mesmo atrás das máscaras, possamos viver alegrias. Não custa lembrar: a vida é uma só.

 

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