Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Ortografia e educação https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/01/02/ortografia-e-educacao/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/01/02/ortografia-e-educacao/#respond Wed, 02 Jan 2019 12:50:23 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1334 Há dez anos, entrava em vigor o Acordo Ortográfico de 1990. Isso mesmo: começou a valer quase 20 anos depois de sua criação. O mais os interessados no tema já sabem: muita controvérsia, alguma resistência e, finalmente, a compreensão de seu valor de instrumento de unificação ortográfica do português como meio de fortalecimento da língua no âmbito internacional.

Infelizmente, no Brasil, ainda convivemos com um deficit educacional muito expressivo, que faz parecer surrealista toda a controvérsia em torno de trema, hífen e alguns poucos acentos. Não é preciso ir muito longe para aferir a precariedade do conhecimento ortográfico da população. A comprovação está, para além das provas de português de exames vestibulares, nos comentários espalhados em sites pela internet.

Em alguns casos, é nítida a falta de familiaridade com a língua escrita. Grafias como “interter” (por “entreter”), “entretendimento” (por “entretenimento”), “impresa” (por “empresa”), “ábito” ou “abto” (por “hábito”), “concerteza” (por “com certeza”), “sencurados” (por “censurados”), “concinhencia” (por “consciência”), “em dividual” (por “individual”), “sentenas” (por “centenas”), “haveriguar” (por “averiguar”), “houvindo” (por “ouvindo”), “uma nova hera” (por “uma nova era”), “fachetária” (por “faixa etária”), “absterce” (por “abster-se”), “impessão” (por “impeçam”), “auto-se desdruindo” (por “autodestruindo-se” ou “destruindo-se”), “custume” (por “costume”), “vulgir” (por “fugir”), “usufluir” (por “usufruir”) ilustram o tamanho do problema.

Várias dessas formas de grafar espelham-se no modo como as palavras são ouvidas pelo falante e no conhecimento incipiente do sistema ortográfico. Para essas pessoas, que infelizmente não são poucas em nosso país, o Acordo Ortográfico nunca foi o problema, tampouco a solução. Não me alinho, como sabe o leitor deste blog, entre os detratores do Acordo de 1990, pois, por um lado, ele cumpre a sua função e, por outro, a dificuldade nos bancos escolares não está em pequenas alterações da convenção ortográfica.

Um exame mais detido desses exemplos e de tantos outros que se avolumam dia após dia pode revelar algumas curiosidades. Chama a atenção a falsa analogia, de formas como “houvindo” e “haveriguar”, que se explica antes pelo conhecimento (ainda que precário) do sistema que pela simples tentativa de reproduzir as palavras ouvidas. Trocas de “o” por “u” e de “e” por “i” devem-se claramente à reprodução da língua ouvida. Existe, é claro, algum conhecimento do sistema, mas flagrante deficit de leitura.

Esse nível de erro de grafia deixa patente que a pessoa não lê, que tem poucas referências culturais, o que não quer dizer que não saiba pensar ou não tenha boas ideias, mas certamente indica fragilidade. A internet e os aplicativos de mensagens estimularam o uso da língua escrita, que passou a ser empregada constantemente por todos, deixando de ser o registro refletido da língua para ser uma tradução literal da oralidade.

Se antes a escrita pressupunha um cuidado maior, oriundo da reflexão, hoje, com a possibilidade de comunicação instantânea em redes sociais, ela apenas reproduz, sem cerimônia, o registro oral, acrescido das gírias do meio, das abreviações conhecidas como “internetês” e, cada vez mais, de figurinhas de todo tipo.

Não se trata, é claro, de condenar o internetês e as figurinhas, que, aliás, são muito democráticos, já que, eficazes e de fácil apreensão, põem os internautas no mesmo nível. É preciso, no entanto, ir além disso.

Entre as tarefas dos educadores deve estar o uso da internet em favor do processo educacional, fomentando a reflexão baseada em leituras e na comparação entre as diversas manifestações da língua. De resto, aprender — seja lá o que for, inclusive a ortografia — requer engajamento.

É preciso fazer mais que apresentar as regras de ortografia. É preciso mobilizar os alunos em projetos nos quais eles se sintam instados a fazer reflexões maduras, embasadas em leituras, e dar-lhes voz para que sejam levados a produzir um discurso autônomo. A competência em ortografia é consequência do empenho constante de professores e alunos.

 

 

 

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“É lamentável pensar que a etimologia seja inútil”, diz prof. Mário E. Viaro https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2014/11/24/e-lamentavel-pensar-que-a-etimologia-seja-inutil-diz-prof-mario-e-viaro/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2014/11/24/e-lamentavel-pensar-que-a-etimologia-seja-inutil-diz-prof-mario-e-viaro/#comments Mon, 24 Nov 2014 16:39:24 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=732 A ida do debate sobre o Acordo Ortográfico ao Senado, depois de implantado, reacendeu as discussões sobre  a ortografia no país. As críticas propriamente ditas, porém, têm sido poucas. O hífen de “co-herdeiro” e cognatos, eliminado pela ABL no Vocabulário brasileiro, parece coisa superada. Das célebres exceções (arco-da-velha, pé-de-meia, água-de-colônia, cor-de-rosa, mais-que-perfeito)  pouco já se fala. portugues em pauta

Restaram, é verdade, críticas ao fato de o Acordo não ter resolvido o dilema, de resto talvez insolúvel, do prefixo “pré”, tônico ou átono, separado por hífen ou justaposto sem hífen.

À parte isso, existe a já conhecida proposta ortográfica do professor Ernani Pimentel, que tem, pelo menos, o mérito de ser uma proposta. Mais que levantar poeira, o professor propõe aquilo que lhe parece ser a panaceia para os males do ensino de língua em sua fase inicial ou para as dificuldades dos professores diante das questões de concurso público, já que, pelo jeito, as bancas examinadoras insistem em aferir a competência linguística dos candidatos por meio do conhecimento deles acerca da convenção ortográfica.

Na opinião do professor Pimentel, a ortografia deve procurar espelhar ao máximo a pronúncia das palavras. O leigo não demora a empolgar-se com a ideia, que chega a ser sedutora à primeira vista. A quantidade de problemas que o raciocínio um tanto simplista oculta, porém, desencoraja qualquer verdadeiro especialista em língua a abraçar a causa.

Temos aqui no blog procurado conversar com pesquisadores que conhecem os problemas profundamente e todos eles têm trazido grandes contribuições a esse debate.

Desta vez, o entrevistado foi o professor Mário Eduardo Viaro,  livre-docente de Língua Portuguesa pelo Departamento de Línguas Clássicas e Vernáculas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP, ligado à Pró-Reitoria de Pesquisa, Viaro tem-se dedicado especialmente ao estudo da etimologia das palavras. É autor do Manual de etimologia, da editora Globo, e do volume Etimologia, da editora Contexto, no qual  propõe pensar a etimologia cientificamente. Além de colunista da revista Língua, Viaro é o responsável pelo suporte etimológico do Beco das Palavras, espaço lúdico do Museu da Língua Portuguesa, no qual os visitantes podem constituir palavras com base em seus elementos de composição.

O professor Viaro, sempre ponderado em suas reflexões, lamenta o fato de ainda haver professores que não veem a importância do estudo dessa disciplina ou que acham que ninguém mais se dedica a ela. Segundo ele, “se ninguém estuda, deveria estudar”. E vai além: “O abandono da erudição linguística pelo ensino moderno, alicerçado pelos valores imediatistas da atualidade, nos prende num presente sem vínculos com nosso passado e com nosso futuro”.

Sempre atento ao risco do fascínio exercido pela pseudoetimologia, alerta sobre a necessidade de estudar cientificamente o tema: “A etimologia científica está distante da pseudoetimologia tanto quanto a astronomia está da astrologia”.

Para Mário Eduardo Viaro, não é a ortografia o grande vilão do ensino da língua materna. Na sua opinião, “o problema é mais profundo: deve-se a algum tipo de crise moderna do saber, às condições de ensino e ao modo como é conduzido”.

Conversar com Viaro, como ler seus livros, é um convite ao mundo do saber. Como faz questão de dizer, “ao contrário do que se prega, ser erudito nos torna mais humanos e mais tolerantes, menos vinculados às óbvias necessidades da nossa existência, que podem parecer prementes, mas são apenas o que são: necessidades”.

Leia a seguir a entrevista com Mário Eduardo Viaro:

Thaís NicoletiComo sabemos, o Acordo Ortográfico de 1990 tornou-se tema de debate no Senado. Seus críticos têm afirmado que as mudanças ortográficas advindas dele são muito difíceis de aprender, pois, além de desnecessárias, são incoerentes. Um deles, o prof. Ernani Pimentel, apresentou uma proposta revolucionária, segundo a qual todo o sistema ortográfico do português seria alterado, a fim de que a grafia das palavras espelhasse ao máximo a sua pronúncia para facilitar o aprendizado. O senhor também vê esse grau de dificuldade de apreensão das mudanças propostas pelo Acordo, bem como incoerências? 

Mário Eduardo Viaro – Toda ortografia de qualquer língua com algum tipo de tradição histórica é complexa. Mesmo o italiano, que abandonou a letra H no Renascimento, utiliza-a em dígrafos CH e GH e na conjugação do verbo “ter”, que tem a mesma origem do nosso verbo “haver”. A ideia revolucionária de começarmos do zero causa muitos problemas. Foi assim quando a língua turca mudou de alfabeto da noite para o dia no começo do século XX. Mudanças desse tipo são traumáticas não só para adultos que têm hábitos consolidados, mas para crianças que estão no processo de alfabetização ou de aquisição de vocabulário. Nenhuma língua natural é coerente stricto sensu, porque as regras que a compõem são heranças de séculos e, portanto, sujeitas a preferências distintas em diferentes épocas. As exceções são normais. Apenas poderíamos esperar coerência de uma língua artificial criada, como o esperanto. Mesmo assim, abundam os casos de incoerência nessa língua, pois, quando chegamos a um detalhamento maior, vemos que está longe de ser uma língua lógica, no sentido filosófico. Quanto à falta de necessidade, discordo. Os países que compõem a lusofonia necessitavam de padronização para a língua escrita, isto é, para a sua ortografia (e não, obviamente, para o seu léxico, para as suas preferências morfológicas e sintáticas). Em meio à consolidação desse processo surge essa proposta, mas o perigo é que cada um pode propor como bem quiser “soluções melhores” e isso, se não for bem administrado, pode gerar o caos.

TN – Houve quem criticasse o fato de a Comissão de Lexicografia e Lexicologia da ABL ter feito uma Nota Explicativa sobre o Acordo composta de 15 itens. Considerou-se que esses 15 itens, em que se explicam critérios, é a prova cabal de que o trabalho foi malfeito, apressado. O senhor concorda com isso?

MEV – Não acho de modo algum que se trata de um trabalho malfeito e desorganizado. Uma coisa é idealizar uma reforma, outra é a sua implementação. As próprias soluções revolucionárias teriam que passar necessariamente por esse processo. Essa Nota Explicativa, salvo engano, tentou preservar o Acordo e adicionar coerência a algumas regras, que poderiam entrar em conflito. A coerência também é o que norteia o discurso das propostas mais arrojadas. Por exemplo, a Nota assinala que a regra que abolia o acento circunflexo de ôo (atualmente voo, perdoo sem o circunflexo) entrava em conflito com a regra das paroxítonas terminadas em –(que deviam ser acentuadas graficamente) em palavras como herôon. O estudo de casos particulares é inevitável quando trabalhamos com um número muito grande de palavras, como o VOLP. Daí até concluirmos que é preciso fazermos uma reforma radical na ortografia há um salto imenso. Eliminamos todos os acentos e retiramos o H, que faremos então com a terceira pessoa do verbo “haver”, que se tornará a, como a preposição e o artigo? Caberia aí uma exceção. Isso é fácil de perceber agora, mas, quando nos deparamos com centenas de milhares de palavras, surgem muitos problemas que não se esperavam no nível teórico de quem lançou a ideia.

TN – A proposta do sr. Ernani Pimentel, de natureza fonética ou fonológica (o senhor pode explicar a diferença aos nossos leitores), segundo ele, simplificaria a ortografia do idioma, tornando-a “lógica” e acessível a todos. O senhor considera viável adotar uma escrita fonética ou fonológica?

MEV – A única escrita fonética que existe é a do Alfabeto Fonético Internacional. Usar uma escrita puramente fonética seria um absurdo, pois significaria representarmos toda a variação diatópica, diamésica, diastrática de uma língua. Nenhuma língua de cultura conseguiria sobreviver. A proposta do sr. Pimentel é fonológica, de modo que não pretende representar sons, mas fonemas, que são unidades abstratas e mentais. Numa escrita fonética, os vários sons que chamamos de r numa palavra como “português” (segundo a pronúncia caipira, carioca, nordestina) teriam de ter representações distintas para o mesmo fonema. Escritas com pretensão fonológica já foram implementadas, como ocorreu com o italiano, mas, mesmo assim, privilegiaram-se alguns dialetos. Nossa escrita atual é parcialmente fonológica. Não fazemos distinções importantes como a diferença entre os dois sons – aberto e fechado – da vogal E e da vogal O. Isso parecia imprescindível no séc. XVI para o gramático João de Barros, mas ninguém, salvo ele mesmo, usou essa distinção gráfica. Mesmo com apoio do governo, às vezes uma mudança radical não emplaca. O imperador Cláudio inventou três letras novas para o alfabeto latino, que só foram usadas durante seu governo. Na verdade, quando se fala de tradição em escrita, usamos a palavra no seu sentido etimológico de “transmissão consuetudinária”. Não vemos QE em vez de QUE nas línguas europeias, exceto no albanês (ou em transliterações de línguas como o hebraico ou o árabe). A tradição do Q seguido de U é longa demais para ser substituída: a meu ver seria menos radical usar o K, que também era usado pelos romanos em pouquíssimas palavras e é erroneamente associado a alfabetos germânicos.  

TN – Confrontado com o argumento da importância de preservar a informação etimológica das palavras, o sr. Pimentel afirma que hoje não se estuda mais etimologia, que ninguém sabe a origem das palavras. Além disso, ele diz o seguinte: “A nossa etimologia é arcaica, precisamos atualizá-la”. Como o senhor, que é conhecido por seus trabalhos na área de etimologia, vê essas afirmações?

MEV – A etimologia é um estudo científico tanto quanto a lexicologia, a morfologia e a sintaxe. De fato, a etimologia herdada pelo intenso desenvolvimento de pesquisas linguísticas do século XIX acabou sendo abandonada após as duas guerras mundiais a favor de um estudo de viés sincrônico e estruturalista, embora a pesquisa etimológica seja ininterrupta quando pensamos nos estudos do indo-europeu. Uma retomada da necessidade dos estudos etimológicos se viu apenas por volta da década de 90 do século passado. E, no caso do português, a etimologia é importantíssima, pois o português é a única língua europeia sem um dicionário etimológico à altura. No Brasil, salvo Antônio Geraldo Cunha e o dicionário Houaiss, ninguém trabalhou seriamente com etimologia e, apesar de terem feito muito, há muitíssimo ainda por ser feito. Nós mesmos tentamos recuperá-la agora, com a fundação do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa (NEHiLP). Há dez anos trabalho com a divulgação da etimologia, tanto no Beco das Palavras (Museu da Língua Portuguesa) quanto na minha coluna na revista Língua Portuguesa. Portanto, obviamente não concordo com essa frase que, a bem dizer, nem faz sentido. A escrita de base etimológica é algo muito diferente da etimologia. Iniciada em português de uma forma sistemática por Duarte Nunes de Leão, a chamada escrita etimológica propõe rememorar as grafias das línguas de origem (basicamente o grego e o latim) pelos famosos Y, PH, TH e CH (com som de “qu” ). Pela escrita etimológica, em vez de “asma”, escreveríamos “asthma”, em vez de “cristão” escreveríamos “christão” e, em vez de “fotografia”, escreveríamos “photographia”. Ninguém, que eu saiba, retoma a proposta de uma escrita etimológica. No português, o que temos é uma escrita metade fonológica, metade etimológica, pois sobrevivem o H mudo e as várias leituras do X. Mas a diferença entre SS e Ç não é puramente etimológica. Há ainda hoje provavelmente pessoas no norte de Portugal que distinguem esses dois sons, ou seja, tratam-nos como dois fonemas. O primeiro é ápico-alveolar, semelhante ao S do espanhol europeu, e o segundo, dorso-alveolar, semelhante ao nosso S. Isso foi atestado por Leite de Vasconcelos nos seus Opúsculos, no início do século XX. Também  naquela mesma região, são (ou eram) dois fonemas distintos o CH e o X: o primeiro grafema nessas comunidades se pronuncia(va) como o CH espanhol e o segundo, como o nosso X. Em suma, essas comunidades fazem pares fonológicos idênticos ao que o inglês faz entre chip e ship. Se hoje há pouquíssima gente que faz essa distinção (se houver), no passado essa era a regra em metade de Portugal.  Além disso, observamos que, grosso modo, ao nosso SS equivale um S no espanhol, e ao nosso Ç, um Z. Esse conhecimento, que permite uma rede de relações entre línguas, transcende a prática de simplesmente alfabetizar. Portanto é lamentável pensar que a etimologia seja inútil e que ninguém estude ou queira estudar etimologia. Se ninguém estuda, deveria estudar. O abandono da erudição linguística pelo ensino moderno, alicerçado pelos valores imediatistas da atualidade, nos prende num presente sem vínculos com nosso passado e com nosso futuro. Faz-nos acreditar que tudo em que acreditamos nasceu hoje, criando uma cegueira para as semelhanças entre as línguas, as culturas e as pessoas. Em suma, ao contrário do que se prega, ser erudito nos torna mais humanos e mais tolerantes, menos vinculados às óbvias necessidades da nossa existência, que podem parecer prementes, mas são apenas o que são: necessidades.

TN – No bojo dessa discussão, diante de uma defesa da etimologia, um ou outro leitor pergunta por que, então, deixamos de usar “ph” e passamos a usar “f”. O senhor gostaria de falar um pouco sobre esse processo? 

MEV – Deixamos de usar pelos mesmos motivos aventados pelo sr. Pimentel. No entanto, como isso foi feito por linguistas capacitadíssimos como Gonçalves Viana, Carolina Michaelis, Adolfo Coelho e Leite de Vasconcelos, houve o sucesso que conhecemos hoje. O discurso, contudo, era praticamente o mesmo. O problema na época foi a eliminação de consoantes mudas, de consoantes dobradas (exceto rr e ss) e a simplificação das grafias que remontavam à ortografia grega (como y, rh, ph, th etc). Mantiveram-se o H mudo e as letras homófonas que conhecemos (ss/ç, g/j etc.). Mas a verdade é que, diferentemente do que se passava com o espanhol ou com o francês, não havia ortografia tal como entendemos agora e isso era tarefa de cada gramático. A reforma de 1911 foi a primeira da história da língua portuguesa. E não foi de todo simplificadora, pois introduziu muitíssimas regras de acentuação. Ao longo dos séculos, algumas pessoas escreviam algumas palavras com f enquanto outras usavam a escrita etimológica com ph. Essa cisão ortográfica é decorrência do debate iniciado em Portugal na segunda metade do século XVI que nunca havia sido solucionado.

TN – Também há na língua palavras de mesma origem com grafias diferentes (erva/ herbanário; úmido/ húmus; extensão/ estender; fêmur/ femoral). Como isso se explica?

MEV – A grafia “úmido” era mais frequente no Brasil. Em Portugal grafava-se “húmido”, respeitando-se a etimologia. Penso que se manterão as duas grafias. O que se esquece é que uma regra ortográfica, seja etimológica, seja fonológica, deve estender-se para todos os casos, mas as palavras têm diferentes frequências de uso e isso dificulta que seja implementada na prática. Se procuro a palavra “erva” no Google, tenho mais de 10 milhões de ocorrências. Se escrevo “herbanário”, tenho pouco mais de 13 mil. As pessoas não têm consciência histórica das palavras a não ser quando estudam linguística histórica ou etimologia, de modo que naturalmente não sabem que o radical da palavra “ombro” é o mesmo da palavra “humeral”. Levando isso às últimas consequências, “ombro” deveria ser escrito com H. A mesma confusão se dava quando se escrevia “ontem” com H, até o século XIX, por pura analogia com a palavra “hoje”. O uso do X no prefixo ex- de origem latina é confuso mesmo: teoricamente, palavras com es- são palavras vindas diretamente do latim vulgar, que gerou a língua portuguesa, enquanto palavras com ex- são palavras eruditas, que foram introduzidas no português imitando o latim (e o francês) desde o século XV. “Fêmur” e “femoral” respeitam a ortografia latina (pois a palavra latina femur tinha o genitivo femoris, donde extraíamos o radical femor- para criar os derivados). Trata-se de um acidente histórico que pronunciemos hoje o U e o O nessas duas palavras da mesma forma. Pergunto-me por que não escrever, usando a mesma lógica, a palavra “menina” com I, pois, de norte a sul no Brasil, com raras exceções, a pronúncia é “minina”. A pronúncia com E surgiu tardiamente em Portugal. Desde as cantigas de Santa Maria, temos comprovações da grafia com I, que é muito mais frequente. Demagogicamente eu poderia defendê-la, mas ao mesmo tempo ignoraria as minorias brasileiras e privilegiaria as minorias portuguesas. O mesmo argumento pode ser estendido a várias outras situações: o ditongo OU é pronunciado como monotongo na língua normal e como ditongo na língua mais cultivada aqui no Brasil, já em Portugal a pronúncia monotongada é a padrão, mesmo nos discursos cultos, e o ditongo tem algo de regional.

TN –  Se viéssemos a abolir o dígrafo “ch” do início das palavras, substituindo-o pela letra “x”, perderíamos uma informação etimológica importante para o aprendizado de correlações semânticas, como as de chuva/ pluviométrico, chumbo/plúmbeo ou chão/ plano, entre muitos outros exemplos. Penso que a manutenção do “ch” concorra para o aprendizado da ortografia não como um simples exercício de silabação mas como um saber inserido numa perspectiva histórica. Como o senhor vê esse caso em particular?

MEV – De fato, muitas palavras que têm CH no início são palavras latinas que começariam com PL, CL, FL. Trata-se de algo característico do galego-português, pois, nessa mesma posição, o castelhano desenvolveu um LL. A palavra clavis em latim remete ao português chave e ao espanhol llave; a palavra pluvia em latim remete ao português chuva e ao espanhol lluvia etc. O espanhol padrão não distingue b, apesar de serem um único som e fazem isso por causa da etimologia das palavras. O português (excetuando os dialetos do norte de Portugal já mencionados) não distinguem ch de x, mas quase sempre grafamos com palavras de origem indígena, africana ou árabe (há exceções, porém). Não há nenhuma razão semântica para a manutenção desses pares a não ser preservação histórica. Sempre me lembro de que, para fazerem a catedral da Sé atual, demoliram a antiga catedral, que era do século XVI. Isso sim eu penso que seja desnecessário. Argumentava-se que a igreja antiga necessitava de reparos, não tinha capacidade de abrigar muitos fiéis etc. e demoli-la foi rápido. Precisaram de décadas para reerguer a nova. É isso que provavelmente acontece com mudanças malpensadas, feitas de repente. Normalmente há perda quando se institui a tabula rasa. Perdemos um patrimônio histórico por causa de um discurso apaixonado. Se há problemas no aprendizado da ortografia, isso não se deve à dificuldade intrínseca da nossa ortografia, que é bastante moderada quando a comparamos com a do inglês e a do francês. O problema é mais profundo: deve-se a algum tipo de crise moderna do saber, às condições de ensino e ao modo como é conduzido, e não à ortografia. Se fosse assim, teríamos altíssimas taxas de analfabetismo no Japão, cuja escrita é muitíssimo complexa. Não é o que vemos.

TN – A etimologia sempre exerceu uma espécie de fascínio nas pessoas. Não há quem não goste de ouvir a história de uma palavra – principalmente quando há uma curiosidade em torno dela. Na opinião do sr. Pimentel, porém, o estudo da etimologia que se fazia era a “decoreba” de prefixos gregos e latinos, o que era algo infrutífero. O senhor acha que é possível ensinar etimologia no ensino médio e/ou fundamental ou isso realmente não é necessário ou mesmo possível?

MEV – Meu trabalho com a difusão da etimologia é grande, mas é preciso ser realista: não se aprende etimologia da noite para o dia. O conhecimento de tupi, de quimbundo ou de iorubá também é importante, mas há poucas pessoas que se dedicam a isso. Obrigar o ensino dessas línguas no ensino médio e fundamental seria utópico. Quando se fala de obrigatoriedade do ensino da etimologia, imagino milhares de professores ensinando justamente a pseudoetimologia divertida que aparece por aí. Isso me dá calafrios. A etimologia científica está distante da pseudoetimologia tanto quanto a astronomia está da astrologia. Penso que o pontapé inicial deve ser dado dentro das universidades, formar gente capacitada e, num futuro distante, poderíamos pensar nisso. Não há “decoreba”, mas a erudição necessária não se constrói de um dia para o outro e a qualidade dos profissionais que ensinariam etimologia teria de ser boa, caso contrário, é melhor deixar do jeito que está para não darmos mais passos atrás. Sou autor de um livro que pretende ensinar etimologia, Manual de etimologia, da editora Globo, e de outro que pretende pensar a etimologia cientificamente, Etimologia, da editora Contexto. Mas insisto: não é preciso saber etimologia profundamente para entender as pouquíssimas grafias etimológicas que sobreviveram na escrita atual. Nesse sentido, opor etimologia a alfabetização me parece um absurdo. A etimologia auxilia a alfabetização, jamais a atrapalha.

TN – O sr. Pimentel gosta de lembrar uma história vivenciada por ele próprio que envolve a suposta palavra “xaxo” (ou “chacho”). A palavra, pronunciada dessa forma por seu motorista, deixou-o em dúvida sobre o uso do X ou do CH. Nenhum dos dois conhecia a grafia do termo. Segundo o professor, se a ortografia seguisse a pronúncia, não haveria problema, pois bastaria usar a letra X. O filólogo maranhense Antônio Martins de Araújo, porém, explicou durante audiência pública no Senado que a palavra em questão é “sacho” [devidamente dicionarizada]. Como vemos, a variação de pronúncia no vasto território do país parece ser um entrave a uma ortografia de base fonológica.

MEV – Se “sacho” ou “chacho” é uma palavra regional, deve ter poucas ocorrências em sua frequência de uso, quando se pensa no âmbito nacional ou em toda a lusofonia. São justamente essas palavras que geram as exceções, porque muitas vezes não sabemos a etimologia da palavra (e não devemos inventar uma se não sabemos). Isso pode parecer um defeito da ortografia atual, mas haverá esse mesmo problema com qualquer proposta revolucionária, com certeza. A fruta conhecida como “uvaia”, de origem tupi, é muitas vezes reinterpretada no interior de São Paulo como “uvalha”, pois os falantes pensam que cometem a pronúncia [i] do LH, como em “telhado”, que é transformado em “teiado”. O mesmo podemos pensar de “macaxeira”, que rarissimamente é pronunciada com o ditongo EI: invariavelmente as pessoas que usam essa palavra monotongam. E devia ser assim, pois a palavra é tupi e, apesar de ser uma planta, não é, etimologicamente falando, aparentada com “mangueira”, “roseira”, “trepadeira”. Qual seria a solução do sr. Pimentel nesses casos? “Macaxera”? Se sim, estará indo a favor da etimologia da palavra.

TN – Na proposta do sr. Pimentel, registra-se a abolição dos dígrafos QU e GU, o que daria origem a grafias como QEIJO e GERRA. Ele não explica o que seria feito nos casos em que há dupla pronúncia, como líquido ou sanguinário, por exemplo, nos quais há oscilação quanto à pronúncia do “u” átono. Palavras como CASA e MESA, por exemplo, seriam as grafias do que hoje escrevemos CAÇA/ CASSA e MEÇA. A palavra LOUSA não identificaria o quadro-negro ou uma lápide funerária, pois seria a nova grafia de LOUÇA (o “ç” também é abolido, segundo a proposta). Como bem lembrou a linguista Stella Maris Bortoni, a tradição ortográfica ajuda na compreensão da morfologia dos verbos (ela citou o dígrafo “ss” como marca de imperfeito do subjuntivo). Diante de tudo isso, o senhor considera simplificadora essa proposta?

MEV – Também tenho dúvidas com relação às formas oscilantes, que antigamente eram marcadas com e sem trema. Aqui voltamos à antiga ortoépia (ou ortoepia) que gramáticos muito ferrenhos, como Napoleão Mendes de Almeida, relativizavam. Ora, eu pronuncio “adquirir” com [k] mas ouço muitas pessoas pronunciando com [kw]. Quem faz dessa última forma não está totalmente errado, pois se trata de uma palavra culta, um latinismo tardiamente introduzido na língua, mas, novamente, o uso é que determina a pronúncia. A proposta é simplificadora, sim, mas veja, também gera complicações: o E de “mesa” é fechado e o E de “meça” é aberto. Se grafamos doravante “meza” e “mesa” resolvemos o caso das pronúncias representadas por várias letras/ dígrafos, mas não resolvemos o caso das várias letras (como o E) que têm várias pronúncias. Uma simplificação moderna sobre uma simplificação antiga. Só com a avaliação de todo o vocabulário português (que é bastante extenso) saberíamos o impacto dessa reforma, que, como disse, seria precipitada  sem o auxílio de filólogos e linguistas.

TN –  Uma das críticas que o senhor Pimentel faz ao Acordo Ortográfico é a de que ele foi pensado no século passado e, portanto, reflete um mundo antigo. Chega a afirmar que “os psicólogos e biólogos já constatam que boa parte das crianças de hoje estão nascendo com um par a mais de cromossomos ativados, o que significa estar a humanidade passando por verdadeira mutação genética que traz uma visão quântica da realidade, descomunalmente superior à antiga visão linear a que os adultos ainda estamos condicionados”. E prossegue: “Hoje o estudante, e qualquer indivíduo, ri de quem aceita regras com exceções. Não faz sentido perder tempo. Ou o que se lhe ensina é lógico, prático ou não lhe desperta interesse”. O senhor acha que esse tipo de afirmação pode embasar uma discussão sobre ortografia?

MEV – Esses apelos à ciência são totalmente absurdos e descabidos. No fundo há o espírito da tabula rasa atuando. Uma mutação genética só ocorreria se o ser humano estivesse correndo risco de sobrevivência. Ao que tudo indica, a espécie  humana impera no planeta. Esses argumentos não têm pé na realidade, pois envolvem pressupostos sobrenaturais com os quais não comungo e lamentaria muito que fossem aceitos para embasar algo que afastaria com certeza o ideal atual de unificação ortográfica entre os países lusófonos.

TN – Numa das audiências públicas de que participei, houve críticas ao que foi entendido como falta de sistematização da grafia de palavras que têm o prefixo pré- ou pre-. As críticas foram dirigidas ao corpus do Vocabulário Ortográfico da ABL, que registra “pré-qualificado” e “prequestionado”, “preexistente”, “preembrião/pré-embrião”. Segundo os críticos, as pessoas não têm como saber qual é a grafia correta, já que existe variação de pronúncia. O professor Cipro Neto sempre menciona uma aula que deu na Bahia, na qual seus alunos lhe disseram que, por lá, a pronúncia da palavra “preconceito” é “pré-conceito”. Existe alguma forma de resolver esse problema de grafia? 

MEV – Não, não existe. O pre- vem do latim prae- seja ele pronunciado com vogal aberta ou fechada. Esse expediente de separar os componentes da palavra para destacá-los etimologicamente, como nesses exemplos, é algo que ficou em moda na filosofia e começou, salvo engano, com Heidegger. A consciência de que temos um prefixo aí é variadaPouca gente sabe que prestar tem o mesmo prefixo, historicamente falando.

TN – O sr. Pimentel também costuma usar o argumento da inclusão social para defender o seu projeto. Segundo ele, a complexidade do sistema ortográfico do português cria grandes dificuldades de ensino e aprendizagem e, na sua nova ortografia, esse problema deixaria de existir. O senhor acha que ele pode ter razão nisso?  

MEV – É o mesmo argumento usado em 1911. De lá para cá, não saberia opinar se houve avanços ou não nesse sentido por causa da simplificação da ortografia. Aparentemente não foi só por isso. Os governos tiveram a sua responsabilidade.

TN – Finalmente, o senhor considera oportuna essa discussão sobre o Acordo, capitaneada pelo prof. Pimentel, que é coordenador do grupo de trabalho técnico da Comissão de Educação do Senado brasileiro? Segundo o prof. Carlos Faraco, em entrevista a este blog, o processo de implantação está avançado e envolve muitas instituições e professores universitários dos oito países signatários do Acordo. Cada país já está elaborando seu Vocabulário Ortográfico Nacional e todo esse material será reunido no Vocabulário Ortográfico Comum. O senhor vê alguma possibilidade de Pimentel ter sua proposta concretizada?

MEV – Eu espero que não. Concordo com o prof. Faraco. Seria uma pena desandar todo esse processo que tem sido feito por muita gente competente e de maneira séria e equilibrada.

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“Em matéria de língua e ortografia, é preciso qualificar o debate”, diz Faraco https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2014/11/13/em-materia-de-lingua-e-ortografia-e-preciso-qualificar-o-debate-diz-faraco/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2014/11/13/em-materia-de-lingua-e-ortografia-e-preciso-qualificar-o-debate-diz-faraco/#comments Thu, 13 Nov 2014 22:46:30 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=728 O adiamento do prazo oficial de entrada em vigor do Acordo Ortográfico para 2016 e a discussão que se vem travando no Senado Federal acerca do tema, com direito a debate sobre uma proposta de ortografia fonética, podem fazer parecer que existe espaço para alguma mudança radical no sistema ortográfico do português.portugues em pauta

Para elucidar os pontos obscuros de toda essa discussão, desta vez conversei com nada mais, nada menos que o coordenador da Comissão Nacional brasileira do Instituto Internacional da Língua Portuguesa da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), o linguista Carlos Alberto Faraco, professor titular de língua portuguesa da Universidade Federal do Paraná, cujo currículo não deixa dúvida de que os trabalhos de implantação definitiva do Acordo estão em boas mãos.

Mestre pela Unicamp e doutor pela Salford University, com pós-doutorado pela University of California, Faraco tem uma vida dedicada aos estudos linguísticos. Foi presidente da Associação Brasileira de Linguística de 1985 a 1987 e pertenceu ao grupo de pesquisadores que criou o projeto VARSUL-Variação Linguística da Região Sul.

É autor e organizador de vários livros, entre os quais Linguagem escrita e alfabetização (Editora Contexto), Linguística histórica, Norma culta brasileira: desatando alguns nós, Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin e Estrangeirismos: guerras em torno da língua (todos publicados pela Parábola).

Também é autor da coleção Português: língua e cultura (IBEP/Base) para o ensino médio e, em coautoria com o romancista Cristovão Tezza, de dois livros para o ensino de português no nível universitário: Prática de texto e Oficina de texto (ambos publicados pela Editora Vozes).

O professor Faraco vai direto ao ponto e definitivamente põe os pingos nos is. Deixa claro que “a ortografia de qualquer língua não é assunto plebiscitário ou para abaixo-assinados, ou para coletas aleatórias de ‘sugestões’” e alfineta a Comissão de Educação do Senado: “Ao constituir um grupo de trabalho apenas com dois críticos do Acordo, a CE vira as costas para a sociedade, desqualifica a opinião majoritária, marginaliza os especialistas e passa a falsa impressão de que o Brasil está se posicionando contra o  Acordo”. E resume a situação citando Shakespeare: “Muito barulho por nada”.

Questionado sobre as propaladas dificuldades que o Acordo teria trazido, Faraco é rápido no gatilho: “As poucas mudanças podem ser aprendidas em não mais que 15 minutos”. E tem mais, muito mais. Leia a seguir a entrevista concedida ao blog:

Thaís Nicoleti – Segundo o senador Cyro Miranda (PSDB – DF), presidente da Comissão de Educação do Senado, após a entrada em vigor do Acordo Ortográfico,  o Senado recebeu milhares de e-mails de cidadãos indignados com as dificuldades impostas pelas mudanças ortográficas, fato que provocou a abertura de discussões sobre o tema na Casa legislativa. Reportagem publicada no site Observatório da Língua Portuguesa informa que o senhor Ernani Pimentel, um dos representantes da Comissão de Educação do Senado brasileiro em missões internacionais, criou um movimento chamado “Acordar Melhor”, por meio do qual colheu grande quantidade de assinaturas favoráveis à simplificação da ortografia, fato que teria levado o Senado a  propor a discussão e o adiamento da entrada em vigor do Acordo. Diante disso, pergunto se o senhor considera ter faltado discussão antes da assinatura do Acordo. Na sua opinião, o Acordo foi imposto de forma autoritária?

Carlos Faraco – Seguramente não houve falta de discussão. As discussões para se alcançar um Acordo Ortográfico que unificasse as bases da ortografia do português começaram na década de 1920. Foram, portanto, quase 70 anos de discussões. Acrescente-se a isso o fato de que os pontos que exigiam uma harmonização para se alcançar a unificação das bases da ortografia eram poucos. Basicamente questões de acentuação e o tratamento das chamadas consoantes não articuladas. A cada tentativa de se estabelecer a unificação das bases (1931, 1943, 1945, 1971/1973, 1975, 1986, 1989) poliram-se arestas e acumularam-se alternativas que acabaram por ser consolidadas no texto de 1990.

No fundo, com o Acordo de 1990, houve apenas pequenos ajustes em cada uma das ortografias vigentes para submetê-las a um único conjunto de normas. Houve cedências de parte a parte, adotando uns soluções já existentes na grafia dos outros. Nada mais do que isso. Não houve nenhuma alteração das grandes coordenadas que fixaram a ortografia do português em 1911 (nem era este o objetivo). Também não houve imposição, e sim cedências. E ninguém esteve obrigado a adotar o Acordo, na medida em que cada país soberanamente teria de ratificá-lo. E o próprio calendário de ratificações é prova de que nada foi imposto.

TN – O senhor poderia relembrar aos nossos leitores como se deu o processo de ratificação do Acordo nos vários países da CPLP?

CF – Cada país seguiu a cronologia que lhe aprouve. Portugal foi o primeiro país a ratificar o Acordo já em 1991. O Brasil o fez em 1995. Posteriormente, foram assinados dois Protocolos Modificativos (em 1998 e 2004 respectivamente) para ajustar o prazo de vigência antes previsto para 1994. Esses Protocolos Modificativos foram ratificados pelo Brasil em 2004, por Cabo Verde em 2005, São Tomé e Príncipe em 2006, por Portugal em 2008 e por Timor-Leste e Guiné-Bissau em 2009. Em 2012, o Conselho de Ministros de Moçambique recomendou ao Parlamento daquele país que completasse o processo de ratificação. O Segundo Protocolo Modificativo, assinado por todos os países, estipula que o Acordo entraria em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação, o que ocorreu em 2006 (Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe). O Acordo, portanto, está em vigor desde 2006.

O Brasil, porém, antes de implantar o Acordo, esperou que a Assembleia da República Portuguesa ratificasse os Protocolos Modificativos, o que veio a ocorrer em maio de 2008, ano em que, em conjunta Declaração Sobre a Língua Portuguesa, os chefes de estado e de governo da CPLP instavam a que tal acontecesse em todos os países de língua oficial portuguesa. Longos foram os anos e as discussões para se chegar ao Acordo de 1990 e longos têm sido os anos para sua ratificação e implantação para atingir o objetivo único de uniformizar as regras de ortografia em todos os países.

TN –  Diante disso, fica difícil afirmar que o Acordo foi imposto de modo autoritário, sem discussão. O fato é que esse tipo de afirmação foi feito em audiência pública no Senado por membros do (GTT) grupo de trabalho técnico da Comissão de Educação. O professor Ernani Pimentel, por exemplo, por meio de seu site, chegou a criar um concurso em que oferecia uma quantia em dinheiro para a pessoa que apresentasse a melhor proposta de simplificação ortográfica. Há nesse GTT da Comissão de Educação do Senado o entendimento de que qualquer pessoa está em condições de propor mudanças na ortografia. Essa seria talvez, no entender da CE, uma forma de democratizar o processo. Como o senhor vê isso? 

Quando se olha com atenção para a história, parece claro que são totalmente improcedentes afirmações de que não houve discussão e de que o Acordo foi uma imposição autoritária. A ortografia de qualquer língua não é assunto plebiscitário ou para abaixo-assinados ou para coletas aleatórias de “sugestões”. E menos ainda para  uma oferta  de “recompensa” em dinheiro para quem apresente a melhor proposta de simplificação. Não dá para acreditar que alguém leve essas propostas descabidas a sério. A ortografia resulta de uma longa construção histórica. É um trabalho de cuidadosa ourivesaria. Qualquer ajuste tem de ser muito bem pensado e avaliado, inclusive tomando em conta as tradições ortográficas bem consolidadas. É, portanto, um assunto eminentemente técnico e altamente complexo.

Não por acaso foram necessários quase 70 anos de discussões para se chegar à unificação das bases da ortografia do português, discussões que sempre foram cuidadosamente conduzidas por sucessivas gerações dos mais qualificados filólogos e linguistas de língua portuguesa. Por outro lado, falar em “dificuldades impostas pelas mudanças ortográficas”é mostrar preocupante desconhecimento do teor do Acordo. As poucas mudanças podem ser aprendidas em não mais que 15 minutos. Dizer também que nenhum professor conhece as mudanças (como tenho ouvido e lido nesse período de audiências públicas) é subestimar demais a inteligência dos professores. Eu mesmo, entre 2008 e 2010, fui muitas vezes chamado para discutir as mudanças com os professores de Curitiba e do Paraná. Nunca encontrei um sequer que dissesse estar encontrando problemas para assimilar o Acordo. O mesmo se deu com editores, revisores e jornalistas com quem trabalhei na época. Por isso, gostaria muito de ter acesso a estes propalados “milhares de e-mails” que teriam chegado ao Senado.

TN – Como já é suficientemente sabido, o professor Ernani Pimentel, proprietário de curso preparatório para concursos públicos, tem uma proposta de mudança do sistema ortográfico do português. Segundo ele, a ortografia deve refletir a fala, ou seja, o sistema deve ser fonético, eliminando-se a informação etimológica das palavras. Segundo ele, esse sistema seria mais lógico do que o atual e, portanto, mais simples.   Qual é a sua opinião sobre essa proposta?

CF – Trata-se de uma proposta inerentemente inviável pelo simples fato de que a língua comporta muitas variações de pronúncia. A ortografia, para ser de fato funcional no espaço e no tempo, não pode jamais refletir com precisão a fala de cada um; deve, ao contrário, pairar a uma certa distância das variações de pronúncia. A ortografia estabelece uma relação abstrata com a língua e nunca com a fala. Além disso, há todo um processo histórico que vai fixando tradições ortográficas. Alterá-las radicalmente em qualquer direção será sempre desastroso econômica, cultural e cognitivamente.  O próprio falante, como demonstram os estudos de psicologia cognitiva, opera com um léxico mental ortográfico que é não apenas fônico, mas também visual. Há nessas propostas uma certa ingenuidade conceitual. Por isso, elas têm sido sistematicamente rejeitadas na história da nossa ortografia e são uma ideia completamente abandonada desde o século 19. Os proponentes parecem fazer parte do time dos “reformadores da Natureza”, tão bem representados ficcionalmente por Monteiro Lobato com o personagem Américo Pisca-Pisca.

TN – Em recente audiência pública no Senado, da qual tive a oportunidade de participar, o professor Pimentel expôs a sua proposta, que, entretanto, não obteve a acolhida dos estudiosos presentes. A única manifestação de apoio foi feita pelo senador Fleury (DEM-GO), que disse ser professor de matemática.  Embora a proposta tenha sido criticada por quase todos os membros da mesa (à exceção do prof. Pasquale Cipro Neto e do professor Carlos André, de Goiás), o senhor Pimentel é o coordenador do grupo de trabalho técnico da Comissão de Educação, sendo inclusive, ao lado do prof. Pasquale, representante do Senado brasileiro em missões internacionais. Na sua opinião, ao ser representado no exterior apenas por  críticos do Acordo, ignorando as vozes que hoje acreditam na importância de implantá-lo definitivamente, o Senado passa a imagem de que os brasileiros se posicionam contrariamente ao Acordo Ortográfico?  É adequado que o senhor Pimentel  apresente a sua proposta de simplificação ortográfica nos países da CPLP na condição de representante do Senado brasileiro?

CF – Ainda bem que a proposta não obteve acolhida. Aliás, ela tem sido sistematicamente criticada e condenada com ótimos argumentos por vários artigos e editoriais publicados na imprensa nacional nos últimos  meses. Era o que se podia mesmo esperar. Encampar as propostas do sr. Pimentel seria não só um descalabro (pela absoluta falta de fundamentos técnicos), como seria um gesto de lesa-cultura, como procurei mostrar em um artigo publicado no jornal Gazeta do Povo com o título Vandalismo Ortográfico.

De qualquer forma, toda essa movimentação da Comissão de Educação do Senado é muito estranha. Até hoje não consegui captar os objetivos de “debater” o Acordo Ortográfico. Ele foi devidamente ratificado pelo Congresso Nacional em 1995 e novamente em 2004 (os Protocolos Modificativos). Foi incorporado à ordem jurídica interna por decreto presidencial de setembro de 2008. Entrou em vigor em 01/01/2009 e foi em pouquíssimo tempo adotado (e sem grandes percalços) pela imprensa, pelas editoras, pelo sistema escolar e por todas as esferas da administração pública. É hoje de uso universal no espaço público brasileiro. O que há ainda a “debater”?

É espantoso antes de qualquer coisa ouvir e ler as declarações de senadores da CE. Elas revelam grande desinformação sobre a matéria, o que é, sem dúvida, muito preocupante. Além disso, parece que a CE do Senado está um tanto alienada da sociedade (que – repito – já adotou universalmente o Acordo) e, pelo viés muito restrito com que vem abordando o assunto, tem superdimensionado questões que são menores. Mais espantoso ainda é a CE ter dado espaço quase exclusivamente a duas pessoas que fazem críticas (nem todas fundamentadas, diga-se de passagem) ao Acordo.  Há claros indícios de um encaminhamento tendencioso do debate, o que o desqualifica de saída. Nunca, nas audiências que promoveu, a CE chamou membros da Comissão que assessorou o governo no processo de implantação do Acordo em 2008; nunca chamou a Associação Brasileira de Linguística (que precisou tomar a iniciativa de ir lá entregar um documento com razões contrárias às propostas de mexer na ortografia e protocolar um pedido para ter um representante seu nas audiências); nunca chamou ninguém do mundo editorial nem da Universidade.

A CE parece também desconhecer a presença oficial do Brasil no Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), fórum da CPLP responsável pela discussão e encaminhamento de questões da língua que são do interesse do conjunto dos países de língua oficial portuguesa, inclusive a ortografia. Isso apesar de eu, em junho passado, ter entregado pessoalmente ao senador Cristovam Buarque (que é membro da CE) um documento da Comissão Nacional do IILP sobre a situação atual do Acordo e ter deixado com o secretário da CE cópia do mesmo documento. Diante desse panorama de desinformação, alienação e exclusão, só podemos esperar um grande desserviço ao país, à nossa cultura linguística e à causa da língua. Ao constituir um grupo de trabalho apenas com dois críticos do Acordo, a CE vira as costas para a sociedade; desqualifica a opinião majoritária (que se manifesta – insisto – na adoção universal do Acordo pela sociedade); marginaliza os especialistas e passa a falsa impressão de que o Brasil está se posicionando contra o  Acordo, como aconteceu quando da desastrada decisão da presidente Dilma de prorrogar por mais três anos a vigência definitiva do Acordo a pedido da CE do Senado. E ainda mais grave é esse grupo aleatoriamente constituído, sem qualquer representatividade acadêmica ou política, receber mandado da CE para, em seu nome, realizar “missões” internacionais. Acho que o mínimo que se espera é que a sociedade seja informada sobre quais os critérios usados para a designação dos dois, quais os objetivos dessas “missões”, os custos e os resultados.

O Sr. Pimentel pode, é claro, apresentar suas ideias onde bem quiser. Teve, inclusive, espaço para tanto na I Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Global, promovida pela CPLP em Brasília em março de 2010. Apresentou suas ideias, que, obviamente, não tiveram qualquer acolhida das delegações presentes, o que mostra bem a irrealizabilidade do projeto do ponto de vista diplomático. O que me parece totalmente sem propósito é o Senado Federal custear “missões” internacionais e permitir que se fale em seu nome para fazer proselitismo de uma proposta de alteração radical da ortografia, dando a impressão de que ela já está encampada por aquele órgão legislativo. Desmoraliza o Senado e desmoraliza o Brasil.

TN – Na última audiência pública acerca do tema, o professor Carlos André Pereira Nunes, proprietário do Instituto Carlos André, em Goiânia, demonstrou, por meio de questões de concursos públicos, que o sistema de hifenização do prefixo “pré-” é problemático. Ele apresentou questões de exames que exigiam dos candidatos saber a grafia correta de “prequestionar”/ “pré-questionar” e de pré-embrião/ preembrião. Segundo ele, pessoas perdem uma vaga de emprego porque a sistematização do hífen com os prefixos pré/pre é imprecisa. O problema mais grave é o do hífen com esses prefixos ou o das bancas que elaboram questões de concursos públicos?

CF – É óbvio que o problema está nas bancas que elaboram as questões. Há, em geral, uma concepção muito rastaquera do que é testar o domínio de língua dos candidatos. As questões costumam focar picuinhas de ortografia e gramática, deixando de avaliar o efetivo domínio das competências linguísticas que realmente interessam – a leitura compreensiva de textos de mediana complexidade, a escrita de um texto razoavelmente complexo e uma reflexão inteligente sobre as estruturas e os usos sociais da língua. Essas competências indicam efetivamente o nível de maturidade linguística dos candidatos. Eis aí um tema que a Comissão de Educação do Senado poderia debater com mais propriedade e relevância.      

TN –  O prefixo “pré” dominou boa parte da segunda audiência sobre o Acordo, embora esse item não tenha sido objeto de modificação. Houve queixas sobre a suposta incoerência das grafias preembrião/ pré-embrião e pré-embrionário (esta não é registrada com grafia dupla no VOLP); também se questionou o motivo de “prequestionar” ter o prefixo átono e “pré-qualificar” ter o prefixo tônico, segundo o VOLP. O pressuposto nesse caso era a semelhança das duas palavras baseada na letra “q” inicial do termo subsequente ao prefixo em ambas, o que deveria levá-las a um comportamento gráfico/ fonético semelhante. Pergunto se o raciocínio é necessariamente esse (o da letra inicial da palavra) ou se outros fatores, como tonicidade e sufixação podem intervir na pronúncia e, consequentemente, na grafia.

CF – Antes de mais nada, vamos conversar um pouco sobre o hífen nos compostos. Este foi, aliás, o único tópico identificado como problemático nas audiências da CE do Senado. Falou-se dele como se tivesse sido criado pelo AO de 1990 (o que não corresponde aos fatos) e se tentou justificar com ele a proposta de se “mexer” no Acordo (se a premissa é falsa, falsa é a conclusão, certo?). Com perdão da palavra, me pareceu que a montanha pariu um ratinho. Ou, como diz o título da peça de Shakespeare, “Muito barulho por nada”.

O hífen nos compostos é uma área ainda em adensamento na nossa ortografia. Desde o século 18, tenta-se uma razoável regulação de seu uso. Reconheça-se que o AO melhorou muito a questão. Basta compará-lo ao Formulário Ortográfico de 1943. Devíamos acabar com o hífen? Esta foi uma proposta que se fez em 1986, mas provocou uma forte reação negativa. Simplesmente aglutinar todos os prefixos às bases provocou um profundo estranhamento. Feriu os olhos e o léxico mental ortográfico dos falantes (que é eminentemente visual). Na sequência dos debates, trabalhou-se, então, no sentido de diminuir o uso do hífen nos compostos e formular algumas regras gerais. E isso foi alcançado no texto de 1990. Persistem problemas? Claro que sim. Mas esses problemas justificam a crítica que se fez nas audiências ao Acordo? Claro que não. Sem mexer no texto, esses problemas podem ser muito bem encaminhados. Basta interpretar tecnicamente o texto do AO, tendo o “espírito do legislador” como baliza. E o que diz o “espírito do legislador”? Diminuir o uso do hífen em compostos e formular princípios gerais. O resto é discussão bizantina.

A Equipe Central do VOC fez uma brilhante leitura do texto do Acordo e, sem alterá-lo em nada, condensou as regras de uso hífen nos compostos em 4 grandes coordenadas. Muitas vezes, quando nos apegamos excessivamente às árvores, não conseguimos enxergar a floresta e não percebemos que a solução  ovo de Colombo está na nossa frente.

Quanto ao caso específico dos prefixos pre- e pré-, é importante deixar claro que eles não são o mesmo prefixo, nem variantes, sem mais. São dois prefixos diferentes que por vezes têm o mesmo sentido mas que nem estão em distribuição complementar nem são sempre substituíveis um pelo outro. E elementos diferentes devem ser tratados diferentemente.  Dizer isso é importante para afastar a ideia de que os prefixos e as palavras cognatas em que são empregados possam ser tomadas como variantes ortográficas. Para dar um exemplo muito claro: preencher e pré-encher não são a mesma coisa. Acho que a explicação cabal de que isto não é um caso de dupla grafia fecha a questão. Mas vamos à análise de cada um dos prefixos, a ver se há mais argumentos. Em termos puramente ortográficos, pre- é um antepositivo átono, monossilábico, que como tal sempre se aglutinou ao elemento a que se associa; pré- é tônico e, por isso, acentuado graficamente, pelo que sempre se separou por hífen da base. A regra é simplérrima e qualquer aluno a conhece: se um prefixo tem acento gráfico, tem que ser separado da base por hífen. Em português não há palavras sobre-esdrúxulas, isto é, com acento antes da antepenúltima sílaba, logo, tem que ser usado o hífen com prefixos acentuados como pré-. Nada mudou com o Acordo no que diz respeito à sua escrita e não é necessário saber mais nada para saber como usar o hífen nesses dois casos.

Vamos, porém, a uma análise linguística mais profunda para explicar o que confundiu alguns debatedores nas sessões da CE do Senado. Sendo esses dois prefixos muito produtivos, os dicionários e vocabulários não registram todas as formas possíveis, como não o fazem para ex- ou anti-. Os critérios de inclusão (e.g., atestação num cânone ou num corpus específico) e de identidade lexical (e.g., não inclusão de formas com antepositivos hifenizados) de diferentes dicionários do português ditaram que na tradição lexicográfica não houvesse sistematicidade no registro de todas as formas com pre- e com pré-. Os instrumentos ortográficos são por natureza não extensivos, sendo meras projeções exemplificativas dos processos de definição por intensão das normas. Nada no que diz o VOLP impede os escreventes de usarem as formas que entenderem com pre- e com pré-, caso o queiram fazer. O VOLP não registra as palavras antitorturapraticamente, ex-presidente, iluminada ou beijoquice. Nada, porém, nos impede de as usar ou nos obriga a substituir por outras que ali estejam atestadas. Quanto à distribuição, é natural que pre-, sendo átono, tenha um comportamento clítico, formando uma única palavra prosódica com a base, ao passo que pré-, tendo acento próprio, tenha tendência para incorporar complexos prosódicos, sobretudo quando a base tem mais material fonético, sendo assento para um acento secundário. Além disto, a tendência, parece-me, será, com a frequência e habitualidade, de crescente preferência para o pre-, com a gradual perda de noção de composicionalidade semântica (quantos tomaremos ainda preencher por pré+encher?), sendo pré- preferido  para formações ocasionais e pre- tendencialmente usado em palavras em que sincronicamente não há noção da derivação. Tudo isto além, é claro, dos imprevisíveis processos de analogia que acompanham essa perda de noção de composicionalidades e que gerarão naturalmente assistematicidades.

Nada justifica o tipo de crítica que se faz, salvo uma visão erroneamente simplificadora daquilo que é complexo. A língua (e sua “subsidiária”, a ortografia) não pode, por sua própria natureza, ser reduzida a códigos de precisão matemática nem seriam propostas como esta agora feita ao Senado que permitiriam tal coisa. O uso é dinâmico e, como a história mostra claramente, produz tanto sistematicidades como assistematicidades. Uma faixa de indefinição ou instabilidade não constitui, por isso, problema. Ao contrário, mostra apenas que a prática e o senso linguístico dos falantes está em funcionamento. Isso nada tem que ver com regras de ortografia. O tempo vai indicando o rumo da estabilização. Em matéria de língua e ortografia, é preciso qualificar o debate, retirando-o do palpitismo.

 

TN –  O senhor pode explicar a situação de Portugal e dos demais países da CPLP em relação à implantação do Acordo? Portugal continua opondo resistência à unificação gráfica? Algum país ainda não ratificou o Acordo?

CF – Por desinformação, criou-se aqui no Brasil um mito de que Portugal continua se opondo à unificação das bases ortográficas. Confundem-se opiniões individuais publicadas, algumas até bem virulentas, com o real posicionamento daquele país. O que temos de fato é o seguinte: Portugal foi o primeiro país a ratificar o Acordo já em 1991, mostrando claramente seu comprometimento político com o fim da dualidade de ortografias oficiais. Depois, ratificou os Protocolos Modificativos em 2008. Pela Resolução 8/2011, o Conselho de Ministros deu início à implantação do Acordo naquele país a partir de 01/01/2012 em todas as esferas da administração pública e no sistema educativo a partir do ano letivo de 2011-2012. A mesma Resolução reiterava que, pelo Aviso 255/2010, o Acordo já se encontrava em vigor na ordem jurídica interna desde 13/05/2009 com carência de 6 anos para sua entrada definitiva em vigor, o que vai ocorrer, portanto, em 13/05/2015, sete meses e meio antes de sua vigência definitiva no Brasil.

O AO é neste momento aplicado plenamente por todos os serviços do Estado português. Vem sendo gradualmente aplicado em todos os níveis de ensino há mais de três anos, com o apoio explícito da Associação de Professores de Português e das associações de pais e sem que se notem particulares problemas da parte dos professores. No presente ano letivo, passou a ser aplicado obrigatoriamente nas últimas disciplinas (Português e Matemática de 9º ano), sendo também exigido como única grafia válida em todos os exames. O AO é aplicado em Portugal por todas as grandes redes televisivas e pela quase totalidade dos canais por cabo. O AO é há anos aplicado por todos os operadores de telecomunicações (MEO, ZON, Vodafone), por mais de 90% do mercado editorial (grupos Leya e Porto Editora, entre outros), por 9 dos 10 jornais mais vendidos (a exceção entre os mais vendidos é o jornal Público, de Lisboa, o nono mais vendido), pela quase totalidade das maiores empresas (bancos, todas as empresas de eletricidade e energia, etc.), além, é claro, das universidades e dos organismos dependentes do Governo e da própria Assembleia da República (a exceção é a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que não determinou ainda a obrigatoriedade definitiva do AO, permitindo as duas grafias), bem como todos os partidos com representação parlamentar (o último foi o Partido Comunista) e pela própria Assembleia da República, pelo Governo e pela União Europeia (há anos).

O desenvolvimento dos instrumentos de aplicação do AO em Portugal (VOP e Lince) incluiu especialistas de seis instituições muito representativas: Academia das Ciências de Lisboa, Universidade de Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, Universidade do Minho, Direção Geral de Tradução da União Europeia, ILTEC (Instituto de Linguística Teórica e Computacional). É preciso também destacar que tanto o Poder Legislativo como o Judiciário têm sistematicamente recusado iniciativas que solicitam que o país se desvincule do Acordo. A implantação do Acordo em Portugal, portanto, é já quase universal e o ciclo se encerra em maio de 2015.

Os demais países vêm progressivamente implantando o Acordo desde 2009. A situação está ainda indefinida em Angola e Moçambique. Neste, o Conselho de Ministros encaminhou recomendação ao Parlamento em 2012 para que ratificasse o Acordo. De qualquer forma, Moçambique já organizou, com base no Acordo, seu Vocabulário Ortográfico Nacional, concluído em maio último e já incorporado ao Vocabulário Ortográfico Comum. Isso claramente sinaliza que o país está se encaminhando para ratificar e implantar o Acordo.

O Parlamento de Angola ainda não ratificou o Acordo. No entanto, o governo daquele país foi o que deu até agora a maior contribuição financeira para a execução do VOC (Vocabulário Ortográfico Comum), o que também sinaliza o compromisso do país com o Acordo. Além disso, vem trabalhando na elaboração de seu Vocabulário Ortográfico Nacional a ser incorporado ao VOC. Tanto em Moçambique quanto em Angola se defendeu que o VOC era pré-requisito para a implantação do Acordo. Essa atitude é plenamente compreensível, considerando que nenhum deles dispunha de um Vocabulário Ortográfico Nacional. Mais ainda: o português nestes dois países incorpora continuamente muitas palavras das línguas bantu e é preciso estabelecer as bases para a incorporação ortográfica desses empréstimos. Os especialistas em linguística bantu daqueles países vêm pesquisando as melhores soluções para isso, o que, obviamente, toma tempo, mas, de novo, sinaliza o compromisso com o Acordo. Os pesquisadores de Moçambique, por exemplo, já consolidaram essas bases, em discussões entre especialistas nos últimos anos na Universidade Eduardo Mondlane, e as aplicaram na elaboração de seu Vocabulário Ortográfico Nacional.

 

TN –  Na audiência, em Brasília, afirmou-se que o Acordo foi feito pela Academia de Ciências de Lisboa e pela Academia Brasileira de Letras, cada uma dessas instituições possuindo apenas um especialista em lexicografia. Foi assim mesmo?

Sempre me espanta a desinformação em qualquer debate, assim como sempre me assusta a tentativa de esconder a história ou de reescrevê-la. O Acordo, como disse antes, foi precedido de quase 70 anos de debates. Nessas décadas, muitos linguistas e filólogos de ambas as academias, portuguesa e brasileira, se debruçaram sobre o assunto, bem como especialistas que não estavam afetos a cada academia, mas eram, sim, professores universitários de Linguística e Filologia (houve conferências e discussão pública em 1931, 1943-1945, 1967, 1975 e antes e depois de 1986 já agora incorporando especialistas dos outros países de língua oficial portuguesa). Houve, pois, inúmeras ocasiões para discutir o Acordo em âmbito técnico. Nessas ocasiões, a unificação das bases da ortografia foi sempre pensada em termos de grandes caminhos, sendo pesadas as diferentes opções técnicas gerais possíveis para obter o máximo de harmonização e aceitação política e social.

Nunca me lembro de ler a opinião de algum técnico envolvido nestas discussões defendendo uma reforma profunda à nossa grafia, de tão desavisado que tal seria. Por outro lado, não há nenhum motivo para desqualificar as duas Academias. Podemos, obviamente, discutir criticamente soluções que encaminharam aqui ou ali e os instrumentos que elaboram (isso faz parte do jogo), mas não podemos negar que elas construíram uma longa tradição lexicográfica que é, indiscutivelmente, um patrimônio da cultura de língua portuguesa e tem constituído o ponto de partida e referência para garantir a estabilidade da ortografia. E fizeram isso não só com a contribuição de seus membros, mas constituíram grupos permanentes de pesquisas na área – a Comissão de Lexicografia e Lexicologia da ABL e o Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa da ACL. Ambas as Academias sempre souberam também solicitar a contribuição de especialistas das Universidades.

Nada se fez ex-nihilo,como parecem sugerir algumas intervenções nas audiências na Comissão de Educação do Senado, e o objetivo sempre foi o de conseguir a unificação das regras de ortografia entre os países, objetivo que estamos quase a atingir neste momento, ao fim de quase um século  de discussão e negociação.

TN –  O PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) já adotou as mudanças? Novas alterações a esta altura acarretariam prejuízo ao erário? Qual é a posição do mercado editorial sobre isso?

CF – Sim, o PNLD adotou a ortografia do Acordo já a partir de 2010. A Comissão que assessorou o governo federal no processo de implantação do Acordo em 2008 (da qual fiz parte) teve este cuidado: propôs que o prazo para a vigência definitiva do Acordo levasse em conta o cronograma do PNLD. Trata-se, como sabemos, do maior programa editorial do Brasil, que envolve altíssimo investimento de dinheiro público. Qualquer nova alteração traria enormes prejuízos ao erário. Mas também traria enormes prejuízos às editoras brasileiras (todas vêm adotando a ortografia do Acordo nas reedições e novas edições desde 2009) e à imprensa (que adotou o Acordo no seu primeiro dia de vigência em janeiro de 2009).

Quando ouço e leio que há gente defendendo novas (e até radicais) mudanças, me pergunto se a intenção de fundo não é quebrar o parque editorial brasileiro. Os editores são contrários a qualquer nova mudança. Uma primeira manifestação nesse sentido foi feita oficialmente pela ABEU – Associação Brasileira de Editoras Universitárias. Seu documento, muito bem fundamentado, foi enviado à Comissão de Educação do Senado. A informação que tenho é que a Câmara Brasileira do Livro está também acompanhando de perto o assunto para eventuais medidas contra novas mudanças. A CBL, aliás, promoveu, na última Bienal do Livro em São Paulo, uma mesa-redonda na qual se debateram essas questões.

TN – O senhor pode explicar o que será o VOC (Vocabulário Ortográfico Comum)? Já há um prazo para a sua publicação? O VOC estabelecerá nomenclatura científica, topônimos e grafia de estrangeirismos?

O VOC é um instrumento previsto no texto do Acordo de 1990. É um instrumento necessário para servir de referência geral da ortografia resultante da unificação das bases ortográficas. É um vocabulário ortográfico não apenas nacional – como até 1990 – mas um instrumento geral consolidador da ortografia definida pelo AO com a representação das formas gráficas do vocabulário comum corrente em todos os países de língua oficial portuguesa. Como o VOC agrega os Vocabulários Nacionais de cada país, ele registra também palavras correntes em apenas um ou em alguns dos países. É possível, então, uma consulta geral obtendo os espaços de que é característica cada forma e suas eventuais variantes, quando existam, assim como é possível uma consulta específica, na medida em que cada Vocabulário Nacional mantém sua integral autonomia no interior do VOC. Sendo um vocabulário que registra todas as variedades nacionais do português, o VOC será um instrumento imprescindível de normalização ortográfica e poderá servir, no futuro, de base para um grande dicionário geral da língua.

O VOLP-Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da ABL não é um instrumento de referência geral porque apenas adaptou a antiga ortografia brasileira ao AO, abrange apenas o vocabulário corrente no Brasil e não deu representação às formas facultativas. O VOP-Vocabulário Ortográfico Português registra formas facultativas, mas, por ser um vocabulário basicamente português, não serve de referência geral do vocabulário comum. O VOC é, então, o instrumento que consolida a ortografia prevista no AO e abrange todos os países de língua oficial portuguesa. É uma base de dados lexicais eletrônica, de grande escala e aberta, que vem atender a necessidade da implementação da ortografia prevista no AO, bem como instaurar uma nova metodologia de trabalho conjunto dos países da CPLP na área do léxico da língua.

TN – O senhor poderia explicar como essa nova metodologia de trabalho torna possível, numa perspectiva de presente e de futuro, manter a unificação da ortografia nos países de língua oficial portuguesa?

A metodologia foi desenvolvida segundo o padrão tecnológico mais avançado existente na área. Essa base tecnológica de ponta permite: (a) ampliar as informações disponíveis sobre cada item lexical, quais sejam, o paradigma flexional, a divisão em sílabas e a marcação da sílaba tônica; (b) permite o reaproveitamento para ferramentas de processamento da linguagem natural (como os corretores ortográficos) e para pesquisas científicas; (c) facilita as consultas dos especialistas e do público em geral; e  (d) deixa pronta a via para futuras atualizações.

A sua elaboração tem também outro efeito importante, qual seja, a consolidação de critérios mais objetivos para resolver contextos ortográficos tradicionalmente problemáticos, como as regras de hifenização e a adaptação de palavras importadas de outras línguas. Há, portanto, toda uma dimensão generalizadora no VOC que pautará sua atualização futura e a gestão conjunta da ortografia do português. O VOC foi apresentado na  X Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da CPLP, realizada em Díli (Timor-Leste) em 23 de julho de 2014. Na Declaração Final dessa Cimeira, os Chefes de Estado e de Governo incluíram o VOC no patrimônio da CPLP, reconhecendo e recomendando seu desenvolvimento. A elaboração do VOC foi atribuída ao Instituto Internacional da Língua Portuguesa pelo Plano de Ação de Brasília saído da I Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, realizada pela CPLP em Brasília em março de 2010. O IILP procurou o centro mais avançado no espaço da língua portuguesa em pesquisas lexicográficas na área do processamento de língua natural, identificando-o no ILTEC-Instituto de Linguística Teórica e Computacional, que está hoje integrado à Universidade de Coimbra. Assinou, então, um acordo de cooperação técnica com esse Instituto pelo qual o ILTEC assumiu a planificação e execução técnica do VOC, aproveitando sua experiência no desenvolvimento de várias ferramentas ortográficas, em especial o  VOP – Vocabulário Ortográfico Português, que foi adotado como referência oficial na aplicação do AO em Portugal pelo Conselho de Ministros em 2011.

O IILP fez também gestões junto ao governo português e à Academia Brasileira de Letras para obter a cessão das bases do VOP e do VOLP, respectivamente, para serem integradas ao VOC como o VON-Portugal (Vocabulário Ortográfico Nacional de Portugal) e o VON-Brasil (Vocabulário Ortográfico Nacional do Brasil). Ambas as gestões foram exitosas, o que garantiu um excelente ponto de partida para a elaboração do VOC, que agrega, pela primeira vez na história, as bases ortográficas portuguesas e brasileiras num único instrumento de referência, o que é uma grande vitória.

A esses Vocabulários se somaram, posteriormente, o Léxico do NILC -Núcleo Interinstitucional de Linguística Computacional da USP/ São Carlos e da Univ. Federal de São Carlos (que serve de base aos corretores ortográficos que operam acoplados ao processador de textos Microsoft Word no Brasil), o Vocabulário Atualizado da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa e o Corpus Brasileiro da PUC/SP. O IILP realizou uma reunião técnica internacional sobre o VOC em setembro de 2011, na cidade da Praia, Cabo Verde. Nessa reunião foram definidos, entre outros, os procedimentos para a elaboração de Vocabulários Ortográficos Nacionais dos países que ainda não dispunham de um. Ficou também estabelecida a constituição de um Corpo Internacional de Consultores com especialistas de cada país da CPLP para atuar junto à Equipe Central do VOC, analisando tecnicamente os critérios propostos por ela para chegar a um consenso interpretativo e contornar, quando necessário, eventuais omissões e ambiguidades do texto do AO.

Os trabalhos se desenvolveram a contento e uma primeira versão do VOC, incluindo o Vocabulário Nacional de quatro dos oito países de língua oficial portuguesa (Brasil, Moçambique, Portugal e Timor-Leste) foi apresentada em Lisboa na II Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, em outubro de 2013, sendo reconhecido oficialmente, já com a entrega para incorporação posterior do VON de Cabo Verde, na X Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da CPLP. O VON de São Tomé e Príncipe está em fase de validação e está previsto para dezembro próximo o lançamento oficial dessa grande base lexicográfica com pelo menos quatro países representados. Posteriormente, serão incorporados também os Vocabulários de Angola e Guiné-Bissau.

Os resultados alcançados até agora pelo projeto do VOC devem, sem dúvida, ser amplamente comemorados, considerando que representam significativos avanços na lexicografia do português e para uma real aproximação em sua normalização, já não apenas no plano político e legal, materializado no AO de 1990, mas também na efetiva aplicação técnica comum das normas dele resultantes. A questão terminológica fica para um outro momento, mas tem no VOC boas bases. No Plano de Ação de Brasília há uma diretriz sobre um futuro projeto de normalização terminológica. Será um projeto ambicioso, considerando a magnitude do problema terminológico em língua portuguesa que decorre do fato de essa questão nunca ter sido levada técnica e sistematicamente à frente, o que estimulou e continua a estimular indesejável divergência terminológica.  Essa situação só será enfrentada e resolvida adequadamente com a organização e publicação de glossários em que os termos técnicos apareçam definidos com precisão e haja, pelas equipes de especialistas, ou a opção por um dos termos divergentes ou o estabelecimento de equivalências entre termos diferentes já consolidados. E essas tarefas todas não se fazem apenas por meio de um vocabulário ortográfico. Essa diretriz foi incorporada ao Plano Estratégico de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior da CPLP para o período 2014-2020, atribuindo-se ao IILP-Instituto Internacional da Língua Portuguesa a tarefa de coordenar o referido projeto, que já foi aprovado pelo Conselho Científico do Instituto em sua última reunião ordinária, em maio de 2014.

TN – Por tudo o que o senhor explicou, por todas as informações generosamente disponibilizadas a este blog, tenho muito a lhe agradecer – em nome também dos nossos leitores de fato interessados no tema. E, para terminar, gostaria que o senhor dissesse se acha que o AO pode ser chamado de “Desacordo Ortográfico”.

CF – É claro que não. O Acordo foi feito com o único objetivo de dissolver a dualidade de ortografias oficiais que constituía um embaraço à internacionalização e ao futuro da língua. Seu objetivo não era unificar a grafia de todas as palavras, mas as bases da ortografia, ou seja, reunir num único formulário com valor legal internacional as regras que configuram a ortografia. Por isso, admitiu formas facultativas em alguns poucos casos (e não, como alguns disseram exageradamente, uma multiplicação desordenada de formas facultativas). Eu diria que o Acordo de 1990, consolidando 70 anos de discussões, alcançou plenamente seu objetivo. Por isso, foi, é e será um grande sucesso.

 

 

 

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“A saída não é simplificar a grafia, mas sofisticar a educação letrada”; leia entrevista com Sírio Possenti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2014/10/09/a-saida-nao-e-simplificar-a-grafia-mas-sofisticar-a-educacao-letrada-leia-entrevista-com-sirio-possenti/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2014/10/09/a-saida-nao-e-simplificar-a-grafia-mas-sofisticar-a-educacao-letrada-leia-entrevista-com-sirio-possenti/#comments Thu, 09 Oct 2014 19:32:21 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=710 Desta vez, quem conversa com o blog sobre reforma ortográfica é Sírio Possenti, professor titular do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.

Autor de diversas obras (“Discurso, Estilo e Subjetividade”, “Por que (Não) Ensinar Gramática na Escola”, “Os Humores da Língua”, “Os Limites do Discurso”, “Questões para Analistas do Discurso”, “Questões de Linguagem”, “Humor, Língua e Discurso”, entre outras), o linguista, filósofo e estudioso do humor também publica textos regularmente na imprensa (nas revistas “Língua” e “Ciência Hoje” e no jornal “O Estado de S. Paulo”).

Possenti já provou que não se furta a um bom debate. No seu “Blog do Sírio”, recentemente teceu críticas à proposta de ortografia fonética defendida pelo professor Ernani Pimentel, coordenador de um grupo de trabalho técnico criado pela Comissão de Educação do Senado para discutir o Acordo Ortográfico de 1990, em vigor desde 2009. Segundo Possenti, “o discurso da simplificação tem muito apelo, mas é furado” e “a verdadeira questão é o grau de letramento de uma sociedade”. portugues em pautaConheça as ideias do professor, que concedeu ao blog esta entrevista:

Thaís NicoletiRecentemente, a imprensa divulgou a existência de uma proposta radical de mudança do sistema ortográfico do português, baseada na fonética. Das informações publicadas, depreendem-se, por exemplo, as seguintes ideias:

a) eliminação do “h” inicial das palavras (por não representar um fonema). Exemplos: oje, omem, ora;

b) eliminação do “ç” (o fonema /s/ seria representado sempre pela letra “s”). Exemplos: pesa (no lugar de “peça”), masarico (no lugar de “maçarico”);

c) substituição do “ch” por “x”. Exemplos: caxorro, chave, xaruto, flexa;

e) representação do fonema /z/ sempre pela letra “z”. Exemplos: ezame, aza, pezar;

f) a letra “c” deixaria de ser usada antes de “e” e “i”. Exemplos: sebola, sigarro, sílio;

g) eliminação do dígrafo “qu”, passando a letra “q” a representar o fonema /k/ diante das vogais “e” e “i”. Exemplos: aqele, esqilo, leqe;

h) eliminação do dígrafo “gu”, passando a letra “g” a representar apenas o fonema /g/ mesmo antes de “e” e “i”. Exemplos: gitarra, gerra, gindaste;

h) a letra “j” passaria a representar o fonema /j/ em todas as situações. Exemplos: jeleia, ajenda, ajir.

Dessa forma, seriam eliminadas distinções gráficas como a de hora/ora, aja/haja, cozido/cosido, seção/sessão/cessão, entre muitas outras e, além disso, grafias tradicionais passariam a representar outras ideias. “Casa”, por exemplo, seria a nova forma de escrever “caça” e também “cassa”, “pesa” seria a nova grafia de “peça”. Há inúmeros casos semelhantes a esses, além de termos que sofreriam mais de uma alteração (“caxasa”, por “cachaça”, por exemplo) e daqueles de mais de uma pronúncia (“liquidação”, “hexacampeão” etc.), problema difícil de resolver no interior desse sistema, mas a ideia, segundo seu autor, visa à simplificação da ortografia. O senhor acha que esse sistema seria, de fato, mais simples? Por quê?

Sírio Possenti – Não há dúvida de que seria mais simples. Algumas dúvidas atuais deixariam de existir, mas a questão crucial não é essa. Na verdade, há duas questões mais relevantes do que a “simplificação”. Uma é o fato de que a quantidade de erros de ortografia cometidos em decorrência das “dificuldades” que seriam eliminadas é menor do que se imagina. A verdadeira grande dificuldade é decorrente da relação entre letras e pronúncias variáveis. A reforma proposta não atingiria dificuldades como as que ocorrem numa palavra aparentemente simples como “menino”, que tem pronúncias variáveis da primeira (e/i) e da última vogal (o/u), o que leva a grafias como “me / mi” e “no / nu”. Uma palavra como “anos” pode receber a grafia “anus” em decorrência do alçamento da vogal átona final; a palavra “maldade” pode receber a grafia “maudade” (sem contar a variação da vogal final), em decorrência da vocalização do “l” em final de sílaba.  Os casos são, pode-se dizer, inúmeros (essa palavra pode vir a ser escrita “enúmeros/us”). Aliás, esse exemplo mostra outras dificuldades, ligadas exatamente à divisão de palavras… (“serhumano” ou “ser humano” – independentemente do “h”). A proposta não vai na direção de “escrever como se fala” (ainda bem), mas vale assinalar que não é verdade que a maior parte das dificuldades decorre de questões do tipo “hoje / oje / (h)oge”. A outra questão diz respeito aos custos financeiros, políticos e mesmo “escolares”. Tudo teria que ser reimpresso; ou as pessoas deveriam lidar com mais uma diferença de grafia, além daquelas com as quais elas já têm que lidar, quando fossem ler obras mais antigas que não tivessem sido adaptadas.  Os problemas políticos têm a ver com a aceitação da “nova” ortografia por todos os países nos quais o português é língua oficial. A saída não é simplificar a grafia, mas sofisticar a educação letrada.

TNEmbora a proposta tenha surgido por ocasião de discussões sobre o Acordo Ortográfico de 1990, que tratou basicamente de acentuação e hífen, seu objeto é, aparentemente, muito mais amplo. O Senado, acolhendo críticas ao Acordo Ortográfico de 1990, criou um GTT (grupo de trabalho técnico), cuja coordenação ficou a cargo do autor dessa proposta. Ainda que não esteja claro o trabalho que esse grupo empreende e, muito menos, se existe alguma possibilidade de essa proposta vir a ser discutida algum dia, pergunto se o senhor acha oportuno que esse tema seja objeto de discussão no Senado.

SP – Não acho oportuno. Aliás, acho muito inoportuno. Especialmente porque os especialistas nunca são convidados. Quando se discutiu a questão da pesquisa com células-tronco (para dar um exemplo), houve audiências públicas com geneticistas.   Mas, quando se discute ortografia, nunca se chamam linguistas. Dá-se o mesmo quando a mídia trata de educação. Quando provas nacionais ou internacionais revelam problemas escolares, a mídia entrevista donos ou professores de cursinhos, que são as instituições menos adequadas para falar de escola.

TN- No âmbito da universidade, existem críticas ao Acordo Ortográfico de 1990?

SP – Se houver, são “conversas” particulares. São poucos os que se envolvem com a questão. Até porque nunca são envolvidos. Diria que não é um tema considerado muito relevante. Pelo que sei, com exceção das questões políticas, que certamente são importantes, a maioria dos professores universitários (falo das universidades, não dos colegiões) sabe que se trata, do ponto de vista da escrita, de uma questão menor. Por um lado, sabem que o desempenho ortográfico depende de boa escola (basta ver o que ocorre na França e nos países de fala anglófona). Por outro, sabem que ortografia é apenas um aspecto, e é o menos relevante, de uma escrita que mereça este nome. Nossa sociedade sofre de fixação ortográfica. Muita gente metida a especialista não sabe analisar um texto; é por isso que sai à cata de erros de grafia.

TN – Nas redes sociais, é muito comum que as pessoas expressem uma espécie de “indignação” diante dos erros de grafia. A que o senhor atribui esse comportamento? Há uma supervalorização do aspecto visual das palavras?

SP – Nas redes sociais, e, na verdade, em qualquer lugar em que as pessoas podem opinar, os erros de grafia são objeto de crítica ou de gozação. Este fato resulta de três fatores: a) uma valorização excessiva da grafia (iguala-se “saber escrever” a “escrever sem erros de grafia”): b) o fato de que ninguém compreende as razões pelas quais os erros foram cometidos; c) trata-se de uma questão simples; como, frequentemente, não se consegue analisar o texto, seus argumentos etc., ele é desqualificado  com base nos erros. É uma atitude intelectualmente bem pobre.

TN- O site “Placas do Meu Brasil” faz sucesso nas redes sociais ao divulgar formas de  expressão popular, muitas das quais com erros de grafia. O senhor já comentou em artigos seus que muitas dessas grafias têm uma gramática. O senhor poderia citar alguns exemplos?

SP – Analisar as “Placas do Meu Brasil” ensina muita coisa. A principal é que os erros de grafia que uma proposta como a do prof. Pimentel evitaria são relativamente poucos. Os verdadeiros “problemas” não são do tipo escrever geladeira com “g” ou com” j”, mas escrever com ou sem ditongo (geladeira/geladera) e também “pexe/otro /oro”. Uma das consequências dessa variação que elimina semivogais é, curiosamente,  acrescentá-las onde “não existem”. O melhor exemplo é uma palavra estrangeira, “cover”, que pode vir a ser escrita “cover”, é claro, mas também, por hipercorreção, “couver” ou mesmo “colver”, embora tenha sempre a mesma pronúncia.

 TN. Em recente artigo seu, o senhor mostra isso. As diferenças entre grafia e pronúncia (pexe/ peixe; toca/touca), consideradas inclusive as diferenças regionais, são um problema maior para o aprendizado da escrita do que o emprego de pares consonantais como  g/j  ou  x/ch e esse tipo de problema não seria solucionado com uma reforma ortográfica, pois não há como unificar grafia e pronúncia. O senhor acha que alçar a ortografia a centro de discussões sobre a língua e a educação (no âmbito do Senado) é, de alguma forma, sobrevalorizar um tema menor? 

SP – Respondo “sim” a sua pergunta final. Especialmente quando se trata da questão escolar. O discurso da simplificação tem muito apelo, mas é furado. Basta ver como se anunciam livros e programas de TV: ensinam gramática de maneira simples e bem-humorada! É um verdadeiro horror. E é efeito do discurso de cursinho, instituição que gosta muito de aulas com piadas ou musiquinhas mnemônicas. Pouco engraçadas, aliás.

TNDe certa forma, esse tipo de aula (de cursinho, com piadas e parlendas) acaba por fomentar uma visão limitada (e talvez infantil) da língua? O senhor acha que o estudante precisa se divertir enquanto estuda? 

SP – Ora, estudar é um trabalho. Não precisa ser necessariamente desagradável. Mas achar que precisa ser divertido é uma bobagem. No fundo, esta atitude encobre a verdadeira natureza do aprendizado, reduzido, no fundo, a decoreba por associação.

TN – Em recente artigo publicado na Folha, o colunista Hélio Schwartsman afirma o seguinte: “Faria algum sentido abraçar uma mudança radical que tornasse a escrita tão foneticamente transparente quanto possível. Isso significaria aniquilar não só o “h” inicial, o “ch” e o “ç” como também disciplinar o “x”, domar o “r-rr” etc. O que ganharíamos? O processo de alfabetização se tornaria mais fácil, rápido e barato”. Como o senhor vê tal afirmação?

SP – Se selecionamos só esta passagem do texto dele, pode-se dizer que não leva em conta o tipo de argumento que apresento no meu texto “Simplificar a ortografia?” e que, resumidamente, apresentei acima. Mas, mais adiante, ele fala também em deixar as coisas em paz (“Meu apelo sincero aos legisladores é que deixem o idioma em paz. Se há norma que valeria a pena aprovar é uma que limite a três séculos a periodicidade das reformas ortográficas”).  Mas, mesmo modalizado, o argumento citado por ele, que é meio lugar-comum, não leva em conta leitura e escrita de verdade. Serviria mais para ditados artificiais (do tipo “soletrando”, que, em si, são uma bobagem, embora possam servir para despertar indiretamente mais vontade de estudar, algo que poderia ser obtido por meios mais relevantes).

TN – O autor fala em alfabetização mais rápida, porém, se pensarmos não propriamente em “alfabetização”, mas em “letramento”, esse argumento,  que, aliás,  é compartilhado pelo prof. Pimentel, autor da referida proposta, continuaria válido?

SP – Esse tipo de argumento se restringe ao que se poderia chamar de alfabetização, que é o domínio do código escrito, da representação dos sons. Mas o verdadeiro problema é o letramento, isto é, a inserção real dos alunos no mundo da escrita, que implica a capacidade de ler e escrever pelo menos na medida das necessidades sociais de cada cidadão (embora o ideal seja que a cultura letrada seja objeto de desejo de todos).

TN – Segundo o prof. Ernani Pimentel, “os psicólogos e biólogos já constatam que boa parte das crianças de hoje estão nascendo com um par a mais de cromossomos ativados, o que significa estar a humanidade passando por verdadeira mutação genética que traz uma visão quântica da realidade, descomunalmente superior à antiga visão linear a que os adultos ainda estamos condicionados”. E prossegue: “Hoje o estudante, e qualquer indivíduo, ri de quem aceita regras com exceções. Não faz sentido perder tempo. Ou o que se lhe ensina é lógico, prático ou não lhe desperta interesse”. O senhor concorda com isso? Nessa linha de raciocínio, poderíamos pensar que aquilo que se tem chamado de “internetês” será a ortografia do futuro?

SP – Sobre as supostas descobertas de psicólogos e biólogos, nunca ouvi falar delas, nem o prof. Pimentel cita as fontes, o que é bem típico, aliás. Citar fontes é uma prática das universidades, porque lá não se pode chutar. Mas, se tais mutações estiverem ocorrendo, por que seria necessário simplificar? Falando em “evolução”, seria mais adequado apostar na evolução tecnológica, que vai permitir que todo mundo logo escreva com computadores ou instrumentos similares, que contêm um dicionário acoplado e um corretor ortográfico que avisa quando a grafia de uma palavra está errada. As tentativas de corrigir acabam ensinando mais do que muitas aulas e dispensam até mesmo um sistema mais “lógico”. Sobre o internetês, quem já olhou esta escrita de perto percebeu que é um tipo de escrita silábica  (“vc” por “você”, “hj” por “hoje” etc). Observe-se que se trata sempre de privilegiar as consoantes (ninguém escreve “você” com “oe”). É uma escrita bem esperta, na verdade. Também vale a pena dizer que todo mundo que já anotou aulas na vida, antes dos computadores, usava essas mesmas abreviações. E que os jornais publicam desde sempre pequenos anúncios do tipo “vd ap c/ 4 q, gr” e ninguém achou que isso fosse um problema. O que quero dizer é que as escritas diversas aparecem em contextos diversos. O internetês é uma escrita de computador (e smartphone) e apenas para certos casos. Ninguém escreve assim em blogs…

TN- O senhor tem críticas ao Acordo Ortográfico?

SP – Minha crítica à proposta do prof. Pimentel não implica que eu considere excelentes os efeitos do recente acordo. Por mim, vigorariam as regras da reforma de 1943, que foi a “minha” ortografia, com muitos acentos diferenciais, como “êle”, para distinguir o pronome do nome da letra “L”, “aquêle”, para distinguir este pronome da primeira e da terceira pessoas do presente do subjuntivo do verbo “aquelar” etc. Mas é claro que, mesmo que não houvesse nenhum acento, isso não causaria nenhum problema para pessoas letradas. Ou seja: a verdadeira questão é o grau de letramento de uma sociedade.

TN – Na sua opinião, é importante haver uma “ortografia oficial”? Qual é o peso desse tema nos estudos empreendidos na universidade? 

SP – Não faz mal haver uma ortografia oficial. Mas não acho que seja tão necessária, se uma sociedade for de fato letrada. E, se houver uma oficial, preferia que não fosse objeto de legislação, mas de um acordo de editores, mais ou menos como ocorre com a escrita do inglês.

TN – O senhor  tem livros em que analisa piadas do ponto de vista linguístico. Em que esse material se mostra útil no estudo da língua?

SP – Para ficar no tema da entrevista: alguns aspectos da escrita são explorados em piadas. Veja este exemplo, uma piada que envolve um intelectual que, defendendo suas ideias com muita convicção, foi interrompido por alguém que lhe disse: “Mas suas ideias podem ser postas em xeque!”. E ele respondeu:  “De quanto?”. A graça da piada decorre da percepção das palavras homófonas xeque/cheque.  Veja esta outra piada, a da professora que pede ao aluno, o popular Joãozinho, que faça uma frase com “hospedar” e o menino responde: “Os pedar da minha bicicreta tá quebrado!”. A piada envolve divisão de palavra (hospedar/os pedar) e variação linguística (pedar/pedal e bicicreta/bicicleta). Em vez de decoreba de listas de palavras, uma aula poderia basear-se em histórias assim.

TN – Os professores de português poderiam, então,  em vez de contar piadas para distrair os alunos, analisar essas piadas a sério.  

 

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Ortografia é assunto no Senado; leia entrevista com prof. Evanildo Bechara https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2014/09/16/ortografia-vira-assunto-de-senadores/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2014/09/16/ortografia-vira-assunto-de-senadores/#comments Tue, 16 Sep 2014 16:29:13 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=691 O Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90) entrou em vigor no Brasil em 1º de janeiro de 2009 e, desde então, os usuários da língua escrita vêm passando por um processo de aprendizado das novas regras e de adaptação a elas. Como já foi dito inúmeras vezes, no que se refere ao português do Brasil, a mudança atingiu 0,5% do léxico, o que, convenhamos, representa uma parcela bem pequena do conjunto de palavras do idioma.portugues em dia

No sexto ano de vigência do Acordo, o acento agudo nos ditongos abertos das paroxítonas e o trema já parecem coisa do passado. O sistema de hifenização dos prefixos também  ficou bem mais simples que o anterior, mas, como não se está lidando com uma ciência exata, sobram aqui e ali exceções ou casos em que foi necessário interpretar o documento oficial — à luz, é claro, de seus princípios.

O trabalho de estabilização das normas propostas pelo Acordo foi feito pela Academia Brasileira de Letras, cuja Comissão de Lexicografia tem entre seus membros o lexicógrafo Evanildo Bechara, professor titular da UERJ e da UFF e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra. Bechara dispensa apresentações para aqueles que têm na língua portuguesa o seu ofício, pois suas gramáticas são referência para qualquer estudioso do assunto, dentro e fora das universidades.

Apesar de as alterações propostas pelo Acordo terem sido mínimas, como convém a uma boa reforma ortográfica, críticas tanto ao texto do Acordo como à sua interpretação feita pela Comissão de Lexicografia da ABL, responsável pela confecção do VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), vêm aparecendo na imprensa. Recentemente, diversos sites e jornais divulgaram a existência de um grupo de trabalho técnico, designado pela Comissão de Educação do Senado, cujo objetivo é rever, reformar, revisar ou, quem sabe, revogar o Acordo (AO 90), com base no que esse próprio grupo considera serem “incoerências” ora do Acordo, ora do VOLP.

Um dos coordenadores desse grupo (GTT) vem divulgando uma proposta de “simplificação da ortografia” — exatamente aquela que chegou à imprensa e que foi objeto de celeuma até que o Senado desmentisse tê-la posto em discussão. A proposta, de autoria de Ernani Pimentel, professor de português que atua em Brasília, é polêmica, pois sugere uma transformação radical da ortografia do português, ou seja, a adoção de um critério estritamente fonético (grosso modo, escrever como se fala). Embora ainda não esteja em discussão, a proposta existe e é defendida por um professor a quem coube coordenar os trabalhos de revisão do Acordo Ortográfico na Comissão de Educação do Senado.  Um dos sites de Pimentel, em que apresenta suas ideias, intitula-se Acordar Melhor, pois sua intenção é “melhorar o Acordo”.

Será muito difícil, porém, que uma proposta como essa seja aceita em todos os países da chamada lusofonia, o que seria condição para a sua implantação, já que o Brasil assinou um Acordo de Unificação Ortográfica. Aliás, vale lembrar que o motivo dessa reforma ortográfica, vigente desde 2009, foi o projeto de unificação da ortografia nos países em que o português tem status de língua oficial. A menos que se revogue o Acordo e que se desista da ideia de unificação ortográfica, o professor Pimentel terá de convencer os demais países da CPLP a escrever omem, caxorro, ezérsito etc. A tarefa parece difícil. No Brasil, embora tenha chegado ao Senado, a ideia parece não ter tido ressonância nas universidades, entre os estudiosos da língua.

De resto, há os que, sem apresentarem qualquer proposta concreta de mudança, apontam supostas incoerências no Acordo e conclamam ao debate quaisquer cidadãos que tenham quaisquer propostas.Talvez seja mais sensato admitir que algumas exceções não são incoerências ou, havendo o entendimento de que o sejam, indicar a solução para eliminá-las sem incorrer em outras “incoerências”.

O assunto pode parecer simples, ao alcance de todos, mas o processo de sistematização da ortografia é repleto de sutilezas e requer o conhecimento especializado de filólogos e demais estudiosos da língua. Se assim não for, estaremos a ponto de respaldar escolhas idiossincráticas apresentadas como “democráticas”.  O que mais espanta, a esta altura, é que o Senado se tenha mobilizado em prol de uma causa que se resume na suposta incoerência da grafia de uma dezena de palavras do idioma, se tanto.

ENTREVISTA

A seguir, o professor Evanildo Bechara comenta a questão em entrevista ao blog:

Thaís Nicoleti -Recentemente, foi assunto de grande número de reportagens na imprensa um projeto de simplificação da ortografia defendido por um professor de português de Brasília, ora designado coordenador de um grupo de trabalho 

portugues em pautatécnico da Comissão de Educação do Senado constituído com o intuito de rever as modificações da ortografia do português decorrentes da entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990.  O senhor deve ter tomado conhecimento dessas ideias (o “ch” seria substituído por “x”, o “h” inicial seria suprimido etc.). Que pensa o senhor acerca desse projeto? Há vantagens em privilegiar a fonética como critério de ortografia?

Evanildo Bechara – A substituição de “ch” por “x” em qualquer posição na palavra é proposta de um sistema ortográfico chamado fonético, proposta que vem sendo trazida à baila pelo menos desde o século XIX, à qual sempre os especialistas e os usuários responderam com providencial negativa. Muitos são os problemas que tal proposta traz como consequência. A primeira é a extinção dos homófonos não homógrafos, do tipo de seção, sessão e cessão, que ficam reduzidos a uma só grafia: sesão, o que, com certeza, prejudicará a compreensão da mensagem. A segunda é a necessidade de criar novos símbolos ortográficos ou maneira de representá-los: é o caso da diferença entre o “r” de ira e “rr” de terra. Um sistema antigo representava o “r” simples com “r” e o “r” múltiplo com “R”, grafando então ira e teRa. E assim por diante. Elimina-se o “h” de omem e oje, mas como fazer com o “h” dos dígrafos palatais lh (palha), nh (manhã)?

TN – Sim. Uma expressão como “hora H” teria de ser grafada “ora agá” e, a meu ver, perderia o sentido, pois o “h” é o “h” de hora. Enfim,  o argumento em que se baseia a proposta é o de que o processo de alfabetização se tornaria mais simples e, consequentemente, mais barato.

EB – Quanto à tese de que tal sistema simplifica o processo de alfabetização, a ciência e a experiência do real mostram-nos que tal relação é falsa. Se fora verdadeira, franceses e ingleses seriam analfabetos por terem grafias mais abstrusas que as nossas. E eles estão na vanguarda da nossa civilização. Nada substitui uma boa escola e competentes professores.

TN – Ouvem-se críticas ao fato de a última edição do  Vocabulário Ortográfico, pós-Acordo Ortográfico, registrar grafias duplas, como é o caso de “bi-hebdomadário” e “biebdomadário” ou mesmo de “ad-renal” e “adrenal”, “ab-rupto” e “abrupto”, “sub-humano” e “subumano”, “carboidrato” e “carbo-hidrato” etc.

EB – Quanto à duplicidade de grafias em biebdomadário, o caso é frequente em palavras eruditas das ciências e das tecnologias. Grafias duplas como abrupto e ab-ruptoadrenal e ad-renal são realidades da língua, em pleno uso. A forma adrenal, com o encontro consonantal que se profere em Adriano, nos foi legada pelo inglês, por isso corretamente o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa a agasalha, ao lado de outras tantas.

TN – Há quem critique o fato de a ABL ter optado pela grafia “coerdeiro” no Vocabulário Ortográfico, em dissonância com o texto do Acordo, no qual a grafia “co-herdeiro” aparece como um dos exemplos de emprego do hífen (Base XVI). Qual é a sua explicação para isso?

EB – Em mais de um artigo já expliquei o engano em conservar no Acordo Ortográfico de 1990 a grafia co-herdeiro, novidade trazida pelo ortógrafo português Rebelo Gonçalves, em 1940, e agasalhada pelas reformas de 1943 e 1945. Baseava-se Gonçalves numa pseudodiferença semântica desse prefixo. Desde a reforma de 1911, bem melhor que as sucedâneas, usava-se coerdeiro. Como o Acordo Ortográfico de 1990 está muito ligado à reforma portuguesa de 1945, escapou esse exemplo “co-herdeiro” , que contraria a lição deste último na Base XVI, 1º , b, obs. “Nas formações com prefixo co –  este aglutina-se em geral com o segundo elemento mesmo quando iniciado por o“. Por isso, se escrevo coabitar sem hífen e sem h inicial, terei de escrever coerdeiro, como propõe corretamente o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.

TN – Há críticas ao fato de “paraquedas” ter passado a se escrever sem hífen, enquanto outras formações aparentemente similares continuaram a ser escritas com hífen (para-choque, para-raios, para-brisa, por exemplo). Tenho a impressão de que a grafia “paraquedas” se justifica não só pelo uso que já se fazia antes do Acordo como pelo fato de a palavra ter derivados, uma família de cognatos (paraquedismo, paraquedista), nos quais já se deu a sufixação, coisa que contribui para que se perca a percepção da composição. Como isso não ocorre com os demais termos considerados semelhantes quanto à formação, as soluções gráficas foram diferentes. Gostaria de ouvir a sua explicação.

EB – Tecnicamente, o bom ortógrafo tem de levar em conta a história de cada palavra dentro do léxico, razão por que recomenda a aglutinação das mais antigas, como girassol, mandachuva, pontapé, paraquedasPara-choque não é similar a paraquedas na história do léxico. Chegará o dia em que para-choque se usará aglutinadamente. Razões desta natureza justificam dizermos que uma reforma ortográfica, como tudo que ocorre nos domínios de uma língua histórica, é objeto de técnicos, e não de um simples usuário, por mais boa intenção que o mova.

TN – No início da entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990, houve o entendimento de que a grafia “benfeito” substituiria a forma hifenizada “bem-feito”, uma vez que o Vocabulário não trazia a forma verbal “bem-fazer” nem o seu particípio, “bem-feito”. Aparentemente, essa mudança não foi bem-vinda. Ouviam-se muitas críticas a ela etc. Posteriormente, foi lançada uma Errata do Vocabulário Ortográfico em que voltou a aparecer a forma “bem-fazer”, da qual se deduz a grafia “bem-feito”. A ABL voltou atrás?

EB – No caso de benfeito, a Academia não voltou atrás; é que existe o verbo benfazer do qual saem derivados como benfeitor, benfeitoria.

TN – Sim. Vale então a distinção registrada no dicionário “Houaiss”: “benfazer” é praticar o bem, realizar benfeitorias, enquanto “bem-fazer” é fazer algo com capricho, com esmero. Outro caso interessante: a palavra “extraordinário”, no sistema antigo, era vista como exceção à regra de hifenização e hoje ela deixa de ser exceção para ser regra; palavras como “ultrassom” e “ultrassonografia” já se escreviam dessa forma quando o sistema (o antigo) previa uso de hífen (“ultra-som”, “ultra-sonografia”). “Paraquedas” e “paraquedismo” também se escreviam sem hífen mesmo na vigência do sistema antigo, quando oficialmente deveriam ser escritas com hífen e acento (“pára-quedas”, “pára-quedismo”). O uso generalizado foi levado em consideração na hora de propor a mudança?

EB – Essas são decisões que o uso consagra, para depois mudar a fim de atender a um novo princípio.

TN – Professor Evanildo Bechara, o assunto é fascinante e poderíamos falar muito sobre as palavras, sua história, suas mudanças de significado e seu indissociável vínculo com a vida social. Gostaria, finalmente, de que o senhor externasse sua opinião sobre a ideia do GTT do Senado de “democraticamente” abrir a discussão sobre a ortografia, facultando a qualquer cidadão o direito de propor um projeto que “melhore” o trabalho empreendido pela ABL na interpretação do texto do Acordo e na confecção do Vocabulário (VOLP).

EB – A língua é uma organização criada pelo espírito humano e deve ser estudada como uma ciência. Não é domínio de palpiteiros despreparados ou inocentes bem-intencionados. Já mais de uma vez disse aos reformistas do movimento que “Acordar melhor” deve ser interpretado não como “fazer melhor acordo”, mas como “despertar melhor, “abrir mais os olhos” ao tentar dar sugestões sobre a língua.

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