Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Mesóclise é usada em canção de Zé Ramalho https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/08/02/mesoclise-e-usada-em-cancao-de-ze-ramalho/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/08/02/mesoclise-e-usada-em-cancao-de-ze-ramalho/#comments Tue, 02 Aug 2016 21:40:18 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1055 Os leitores que aceitaram o desafio da mesóclise recebem hoje o resultado dos testes.  Antes, porém, estão todos convidados a ouvir essa colocação pronominal na voz de Zé Ramalho.

É isso mesmo: uma canção da música popular brasileira traz um exemplo de mesóclise. A letra é uma versão de uma composição de Bob Dylan feita pelo bardo da Paraíba. Neste caso, como podemos ouvir, a mesóclise, além de estar gramaticalmente correta, não soa artificial, talvez em parte graças à dramaticidade da voz do cantor.  Segue o trecho da canção (a mesóclise está no trecho 1:22-1:23 do vídeo). Adão portugues em foco

o homem deu nome a todos (os) animais
desde o início, desde início
o homem deu nome a todos (os) animais
desde o início, há muito tempo atrás

viu um animal com tal poder
garras afiadas e um porte
quando rugia, tremia o chão
disse com razão: chamar-se-á leão

 

E agora o resultado do DESAFIO DA MESÓCLISE:

O primeiro passo é separar a desinência verbal do radical do verbo. Vejamos a primeira frase:

Traremos a encomenda amanhã.

Separamos a terminação “-emos” do radical (trar-), lembrando que o radical é a parte que se repete em todas as formas (trarei, trarás, trará, traremos, trareis, trarão).

O segundo passo é escolher o pronome adequado. Para substituir “a encomenda” na posição de objeto direto, usaremos o pronome átono “a” (feminino singular, como “encomenda”).

O terceiro passo é verificar se o radical deve perder uma letra ou não. Como termina em “-r” diante de uma vogal, teremos

Trar + a + emos > Trá-la-emos [sai o “-r” e aparece o “l-” no pronome “a”]

Resposta (a): Trá-la-emos amanhã [não se esqueça do acento de “trá”, que é um monossílabo tônico terminado em “a”]

Agora, é só fazer o mesmo nos outros casos:

Estudarás as lições durante a semana.

Estudar + as [as lições] + ás

Resposta (b):  Estudá-las-ás durante a semana. [veja os acentos!] CARTAZ MESÓCLISE

Na terceira frase, você deveria substituir a expressão “a você” por um pronome. Como se trata de objeto indireto, você vai usar o pronome “lhe”. Assim:

Direi a verdade a você.

Dir + lhe + ei > Dir-lhe-ei

Resposta (c): Dir-lhe-ei a verdade. [ o “-r” de “dir-” é mantido, pois o pronome “lhe” não tem vogal inicial]

Caso quisesse substituir “a verdade” e manter a expressão “a você”, faria o seguinte:

Di-la-ei a você. [sai o “-r” de “dir-” e acrescenta-se o “l-” ao “a”]

Caso quisesse substituir os dois complementos (direto e indireto) ao mesmo tempo, você faria a fusão de “lhe” com “a” (“lha”). Assim:

Dir-lha-ei.

A frase seguinte era esta:

Contaria isso a você se pudesse.

No lugar do demonstrativo “isso”, cabe “o”. Assim:

Contar + o + ia > Contá-lo-ia [sai o “-r” e aparece o “l-” no pronome “o”]

Resposta (d): Contá-lo-ia a você se pudesse.

Finalmente, a quinta frase:

Seria esse/isso o seu fim.

Ser + o + ia > Sê-lo-ia

Resposta (e): Sê-lo-ia o seu fim.

Acertou todas? Muito bem!!

 

 

 

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Mesóclise rouba a cena em discurso de posse de ministros https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/07/26/mesoclise-rouba-a-cena-em-discurso-de-posse-de-ministros/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/07/26/mesoclise-rouba-a-cena-em-discurso-de-posse-de-ministros/#comments Tue, 26 Jul 2016 05:00:10 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1045 O tema do “Português em Foco” de hoje é a mesóclise, tipo de colocação pronominal já pouco usado no português do Brasil. O assunto vem à baila por ocasião de algumas falas do presidente interino, Michel Temer, em que a construção foi empregada.             Adão portugues em foco

Como não poderia deixar de acontecer, muita gente estranhou. Não tardou que as comparações entre os últimos presidentes da República (no quesito expressão) virassem conversa de mesa de bar (ou do Facebook).

FORMAL E INFORMAL

Aparentemente, a mesóclise do presidente interino fez menos sucesso que o “nhe-nhe-nhém” de Fernando Henrique Cardoso, termo popular que o ex-presidente usou para rebater a crítica de que suas políticas eram neoliberais. A onomatopeia, de sabor popular, proferida por um mandatário sabidamente vindo do meio intelectual, criou efeito oposto ao da mesóclise, que Temer, como disse muita gente, tirou do baú,. Enquanto o “nhe-nhe-nhém” demonstrou descontração, o “sê-lo-ia” demonstrou preocupação com a formalidade.

http://mais.uol.com.br/view/15939343

ÊNCLISE E PRÓCLISE

As regras de colocação pronominal estão ligadas ao modo como as partículas átonas são lidas. No português europeu, pronuncia-se facilmente algo como “ter-se lembrado”, sendo o “se” uma espécie de sílaba átona de “ter-se”. É por esse motivo, aliás, que o pronome é preso por um hífen ao verbo “ter”.

A mesma locução é lida no Brasil com outro ritmo: o pronome “se” parece preso ao particípio (“se lembrado”), como se fosse sílaba átona dele, não de “ter”. É por isso que dificilmente se vê por aqui o emprego do hífen numa locução como essa (“ter se lembrado”).

É fato que, no português do Brasil, a tendência é usar a próclise em quase todas as situações, até mesmo no início de frase, posição em que, segundo a gramática tradicional, não se deve usar o pronome átono de jeito nenhum. É extremamente comum que se digam frases como estas “Me diga a verdade”, “Me chama amanhã cedo”, “Te ligo amanhã”, “Se vira!”, “Me respeite”, “Me erra”, que estão em um registro informal da língua.

Nesse mesmo registro, há oscilação entre próclise e ênclise (“Dane-se”, por exemplo, geralmente aparece de acordo com a tradição, ou seja, ênclise com verbo no imperativo afirmativo). Em frases feitas, também é comum a ênclise: “Durma-se com um barulho desses”, “Dize-me com quem andas e te direi quem és”, “Valha-me Deus”, “Faz-me rir”, “Acabou-se o que era doce” etc. Ênclise e próclise continuam sendo usadas. A mesóclise, mesmo em situações de formalidade, é pouco recorrente (vejam-se textos acadêmicos, por exemplo).

É oportuno lembrar aqui um poema de Oswald de Andrade, um dos representantes do movimento modernista. Foi ele mesmo que, recentemente, pela segunda vez, esteve no centro de uma contenda entre dois poetas contemporâneos (Augusto de Campos e Ferreira Gullar), ambos preocupados em reivindicar para si a descoberta e introdução dele no cenário das letras. Muito bem, Oswald, nos idos de 1920, escreveu um poemeto cujo tema era a colocação dos pronomes átonos. Intitulado “Pronominais”, o texto tratava do uso brasileiro dessas partículas:

Dê-me um cigarroOswald - Erro de Português
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

Para bom entendedor, meia palavra basta. Oswald, há quase um século, queixava-se das aulas de gramática em que se ensinava um modelo diferente daquele realizado pelos falantes da língua. A valorização da dicção brasileira foi uma das bandeiras do modernismo, que, liderado por Oswald e Mário de Andrade, foi seguido por outros autores que igualmente pensaram sobre a língua. O poema atesta que a próclise em início de frase, com imperativo, já era bastante comum na época.

Mário de Andrade, no romance “Amar: Verbo Intransitivo” (1927), também fugiu ao emprego lusitano da colocação pronominal, propondo que se escrevesse de acordo com a fala brasileira. Vejamos dois breves fragmentos (entre muitos exemplos), que se alternam com outros em que usa a ênclise em início de frase:

Se impacientou. Quis pensar prático,  e o almoço?

(…)

Se aboletaram no torpedo. Desta vez Carlos não brigou com Maria Luísa por causa do lugar da frente. Deixou ela sentar-se ao lado do pai que dirigia. 

Vale fazer um parêntese: os escritores estão aqui chamados não para ilustrar uma suposta “licença poética”, a que, na condição de artistas, teriam “direito”. Nada disso: eles mesmos talvez não gostassem nem um pouco dessa interpretação. Eles deram status literário à fala do dia a dia, ao modo como as pessoas se expressam de verdade. Isso era revolucionário à época.

MESÓCLISE: COMO FUNCIONA

A mesóclise no Brasil realmente está apartada do uso. Trata-se de uma construção algo complicada, que só é possível com verbos no futuro do presente ou do pretérito. Vale lembrar que o pronome átono é geralmente um complemento do verbo (objeto direto ou indireto), que será posto entre o radical e a desinência verbal. Os pronomes demonstrativos o, a, os e as também são átonos, portanto sujeitos às mesmas regras de colocação. Vejamos alguns exemplos:

1. Comprarei os bilhetes amanhã. [“os bilhetes” – objeto direto, que é substituído pelo pronome “os”, masculino plural, exatamente como “bilhetes”]

2. Comprarei + os + amanhã.

3. Comprar/ os/ ei amanhã. [Comprar (radical) — ei (desinência)]

Antes do passo final, é preciso fazer uma observação: a oxítona terminada em “r” (“comprar”), por uma questão fonética, perde o “r” antes dos pronomes vocálicos, os quais recebem uma letra “l” (“comprá-los”). Assim:

4. Comprá-los-ei amanhã. Os bilhetes, comprá-los-ei amanhã. [Note que “comprá”, lido como oxítona, tem acento gráfico]

Veja um verbo irregular (“dizer”).

1. Ele dirá algo a ela.

2. Ele dir + o + á + a ela.

3. Di-lo-á a ela. [“Di”, monossílabo terminado em “i”, não recebe acento, mas “á”, monossílabo tônico, sim]

Caso se deseje, é possível transformar “a ela” em um pronome átono (“lhe”). Assim:

4. Dir-lhe-á algo. [Veja que, agora, o “r” do radical se manteve, pois o pronome átono não começa com vogal]

Finalmente, é possível combinar os dois pronomes átonos (“lhe” + “o”), obtendo a forma “lho”. Assim:

5. Dir-lho-á.

E agora mais um exemplo com verbo irregular (verbo “fazer”):

1. Ele fará o trabalho.

2. Ele fará + o [“o” substitui “o trabalho”]

3. Ele far/ o/ á.

4. Fá-lo-á [observe os acentos].

DESAFIO

Agora tente fazer algumas mesóclises, substituindo o elemento grifado pelo pronome átono correspondente (a resposta será dada no próximo post):

a. Traremos a encomenda amanhã.

b. Estudarás as lições durante a semana.

c. Direi a verdade a você.

d. Contaria isso a você se pudesse.

e. Seria esse/isso o seu fim.

 

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Os singulares higrômetros de Euclydes da Cunha https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/11/os-singulares-higrometros-de-euclydes-da-cunha/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/11/os-singulares-higrometros-de-euclydes-da-cunha/#comments Tue, 11 Aug 2015 12:57:59 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=799 Você sabe o que é um higrômetro? final sala de leitura

Do grego “higr(o)-”, úmido, molhado, chuvoso, e “-metro”, instrumento para medir, higrômetro é o nome genérico dos instrumentos que servem para medir a umidade de gases ou do ar.

Numa passagem da primeira parte do livro “Os Sertões”, intitulada “A Terra”, Euclydes da Cunha descreve o que chamou de “higrômetros inesperados e bizarros”. Vejamos o que ele quis dizer com essa expressão. Vamos à leitura, aqui auxiliada pela definição de alguns termos, postos entre colchetes:

Não a [refere-se à secura da atmosfera, mencionada no parágrafo anterior] observamos através do rigorismo de processos clássicos, mas graças a higrômetros inesperados e bizarros.

Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneio [descarga de canhões] frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes [verdejantes] viçando [vicejando] em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes [luzentes, cintilantes], davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a [sobrepondo-se à] vegetação franzina [de talhe fino].

O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela — braços largamente abertos, face volvida para os céus, — um soldado descansava.

Descansava… havia três meses.

Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da mannlicher [tipo de rifle] estrondada [avariada, quebrada], o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se [vergando-se] à violenta pancada que lhe sulcara a fronte [testa; face], manchada de uma escara [crosta de ferida] preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes…

E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranquilo [adaptado à nova ortografia] sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.

Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimes empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas [ressecadas, sem umidade] e o arcabouço engelhado [esqueleto enrugado] e duro.

À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a montada de um valente, o alferes Wanderley; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar [deslizar], porém, estrebuchando malferido [gravemente ferido], pela rampa íngreme, quedou, adiante, à meia encosta, entalado entre fraguedos [grupo de fragas, rochas]. Ficou quase em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto [saliência] da pedra… E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste [vento forte, típico da região], se lhe agitavam as longas crinas ondulantes…

Quando aquelas lufadas [rajadas de vento], caindo a súbitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos [mudanças bruscas na direção do vento] turbilhonantes [que rodopiam], à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação [ressecamento excessivo] do ambiente adusto [abrasado, de temperatura muito elevada]: cada partícula de areia suspensa do solo gretado [rachado, estriado] e duro irradiava em todos os sentidos, feito um foco calorífico, a surda combustão da terra.

(IN: Cunha, E – “Os Sertões”, Círculo do Livro, s/d)

 

Euclydes usou os adjetivos “inesperados e bizarros” para caracterizar o que, metaforicamente, chamou de “higrômetros”. O termo “bizarro”, embora também signifique “elegante, garboso, valente”, é empregado, não só no texto acima como pela maioria dos falantes brasileiros, como sinônimo de “insólito, excêntrico, estranho”.

O trecho exemplifica o gosto do autor pela descrição pormenorizada, em que alterna termos específicos (note que ele nomeia cada árvore ou plante que encontra: quixabeira, icozeiro, palmatória) com impressões (vale observar os adjetivos que emprega, em expressões como “canhoneio frouxo”, “tiros espaçados e soturnos”, “anfiteatro irregular”, “vale único”, “icozeiros virentes”, “flores rutilantes”, “quixabeira alta”, “vegetação franzina”, “promiscuidade lúgubre”, “fosso repugnante”, “sóis ardentes”, “luares claros”, “estrelas fulgurantes”, “tranquilo sono”, “árvore benfazeja”, “animal fantástico”, “rajadas ríspidas”, “crinas ondulantes” etc.). É quase como se cada substantivo recebesse um adjetivo, sendo este, não raro, um termo que revela a percepção subjetiva do autor.

Vamos destacar duas questões gramaticais, constantes objeto de dúvida, que a passagem bem ilustra.

A primeira delas diz respeito à colocação pronominal. É comum as pessoas terem dúvida sobre a posição do pronome átono quando, mesmo existindo um claro fator de próclise, ocorre uma intercalação de expressão (entre vírgulas) antes dele. Pergunta-se se prevalece a próclise ou se, por haver uma expressão entre vírgulas, a ênclise seria mais adequada.

A orientação que costumo dar aos consulentes é que mantenham a próclise, exatamente como faz Euclydes em algumas passagens do texto acima. Vejamos:

… sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes…

Quando aquelas lufadas, caindo a súbitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos turbilhonantes, à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação do ambiente adusto:…

A oração iniciada pela conjunção “quando” (subordinada adverbial) constitui fator de próclise (quando se lhe agitavam; quando se compunham). O fato de haver elementos intercalados (ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste; caindo a súbitas) não alterou a posição do pronome átono, que se manteve antes do verbo (próclise).

A segunda questão é o emprego das formas “há” e “havia” para indicar o tempo decorrido. Ambas se prestam a isso, mas não expressam a mesma ideia. Estamos aqui no campo da categoria gramatical do aspecto verbal.

Voltemos ao texto para extrair dois exemplos:

  1. Descansava… havia três meses.
  2. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes…

Na primeira das passagens acima, o autor empregou “havia”, no pretérito imperfeito (mesmo tempo verbal em que está a forma “descansava”). Esse tempo, além de indicar ação interrompida (daí o nome “imperfeito”), apresenta o aspecto durativo, ou seja, indica que uma ação se prolonga no tempo.

Ao dizer que o soldado morto “descansava havia três meses”, Euclydes deixa claro que ele ali permaneceu por três meses (quando foi encontrado pelo escritor, fazia três meses que estava lá). Foi, aliás, a sua permanência lá, no clima árido, que o mumificou.

Na segunda passagem, Euclydes afirma que o destino o deixara (pretérito mais-que-perfeito) ali há três meses. Nesse trecho, Euclydes não se refere à duração, mas ao momento exato (aspecto pontual) em que o soldado morreu (morreu há três meses).

Há, portanto, uma diferença entre dizer que algo ocorreu há três meses (ação terminada três meses atrás) e dizer que algo ocorria havia três meses (vinha ocorrendo durante três meses).

Não faltam temas a extrair dos textos de Euclydes da Cunha, mas hoje ficamos por aqui. Espero que tenham gostado da leitura. 🙂

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