Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Machão das novelas sai do personagem e cai na real https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/04/08/machao-das-novelas-sai-do-personagem-e-cai-na-real/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/04/08/machao-das-novelas-sai-do-personagem-e-cai-na-real/#comments Sat, 08 Apr 2017 14:27:21 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1185 O episódio de assédio sexual protagonizado pelo ator José Mayer nos bastidores da maior emissora de TV do país levou o machão das novelas a sair do personagem que vem encenando durante a vida toda e cair na real.

O depoimento contundente de uma figurinista da empresa ao blog AgoraÉQueSãoElas, da Folha, deflagrou o escândalo, que o ator espera ter abafado com um pedido público de desculpas, ao que tudo leva a crer, elaborado por sua assessoria de imprensa.

Vale lembrar que a primeira resposta de José Mayer menosprezava a inteligência da moça e, consequentemente, a do público de modo geral: ela estaria confundindo o ator com o personagem (ela, não ele). Não funcionou.

Muito bem. Nova resposta é divulgada à imprensa pela assessoria do ator, desta vez um texto um pouco mais elaborado.

O redator da carta usou a primeira pessoa do discurso para criar empatia com o leitor, que imagina estar diante das palavras de um  José Mayer arrependido, que, diga-se de passagem, se quisesse mesmo ser convincente, talvez gravasse um vídeo (sem TP!).

Mas vamos ao texto, a carta aberta. Diante da repercussão dos fatos, com direito a testemunhas e movimento de mulheres dentro da Rede Globo, a intenção do missivista é reconhecer o próprio erro, pedir desculpas e, de preferência, levar o público a esquecer o assunto. Afinal, o que está em jogo é a preservação da sua imagem, o seu maior ativo.

Ele é correto (pede desculpas porque essa é a “atitude correta”); ele é responsável (“Sou responsável pelo que faço”); ele é inocente (não tinha intenção de ofender, estava apenas fazendo brincadeiras de cunho machista); ele é uma boa pessoa (ter esposa, filha e amigas vale por um atestado de bons antecedentes); ele é humilde (“não me sinto superior a ninguém”); ele é vítima da educação machista de sua geração; ele é aberto às críticas (aprendeu em alguns dias o que levou 60 anos sem aprender). Finalmente, pede um voto de confiança, posiciona-se como um exemplo a ser seguido por outros homens, expressa sua dor e termina com uma mensagem moralmente positiva (“o José Mayer que surge hoje é, sem dúvida, muito melhor”).

Em suma, um homem correto, responsável, inocente, familiar, humilde, vítima, aberto à crítica, sensível, uma espécie de herói que sai do episódio transformado em um ser ainda melhor do que já era. Caso encerrado.

A trajetória do herói, no entanto, não parece tão convincente quanto o desejado. Não foram poucos os homens que, nas redes sociais, se manifestaram contra o compartilhamento dos atos condenáveis do ator com toda a sua geração – afinal, felizmente, não são todos os homens dessas gerações mais antigas que agem dessa maneira.

Cabe aqui, porém, alguma reflexão. Não se pode negar que homens e mulheres têm sido criados no machismo, numa cultura que tenta naturalizar supostas diferenças de comportamento entre os sexos, de papéis sociais etc., valores enfeixados num sistema de conveniências sempre desfavorável à mulher.

Em parte, ele, como os outros homens, é também vítima dessa situação. Ocorre, porém, que o nível das atitudes, que mais combinariam com os modos de um homem de Neandertal, chega a surpreender em pleno século 21.

Chama a atenção o fato de o ator ter-se sentido à vontade para desrespeitar a moça com gestos e xingamentos diante de 30 pessoas, num set de filmagem. Isso diz muito sobre o ambiente de trabalho na emissora, que, ao que tudo indica, sempre favoreceu esse tipo de comportamento, possivelmente visto como “normal” ou, no mínimo, permitido aos que alcançam prestígio e poder na estrutura hierárquica. Não foi à toa que ele disse que “o mundo mudou”.

Ele foi pego de surpresa pela vida real, na qual o estereótipo do machão cafajeste, em que canalhice é sinal de virilidade, já ficou para trás. O empoderamento da mulher não passa unicamente pelo seu sucesso no mundo do trabalho; a mulher quer ser sujeito de seus sentimentos e desejos, não um mero objeto ou presa a ser caçada.

É fato que ainda há homens que entendem a negativa feminina como artifício provocativo ou coquetismo – aliás, esses acham que a mulher deve ter essa atitude para “se valorizar”. É a “mulher difícil”, que esconde seu desejo para que o homem se sinta o “conquistador”. Terminada a conquista, quando ela cede ao próprio desejo, ele parte para a próxima captura. Esse modelo antigo de relação entre homens e mulheres confronta-se com os anseios da mulher do século 21. Mesmo tendo boa aparência, o ator mostra que envelheceu, porque é isso o que acontece com quem não acompanha as mudanças do mundo. O tempo passou na janela e (não) só o Zé Mayer não viu.

Talvez ter passado muito tempo no mesmo emprego, no mesmo ambiente de trabalho, encarnando o mesmo personagem, tenha privado o ator de experiências mais enriquecedoras. “O mundo é grande”, diria Drummond, muito maior que o Projac. Agora, a emissora afasta das telas o galã, pois não interessa comprometer a própria imagem. “Viver é muito perigoso”, diria Guimarães Rosa.

Para além do beijo gay, o desafio dos novelistas agora é desconstruir essa imagem tosca de virilidade, que, no fundo, é muito frágil. Está na hora de pôr em cena seres humanos com anseios do nosso tempo em vez de reforçar estereótipos que só convêm aos valentões que assediam mulheres na rua e, em casa, posam de bons maridos, sob o ódio complacente das esposas.

Desse jeito, não está bom para ninguém. Não basta investir em belas imagens e recursos técnicos, quando o texto continua fraco. Fica a dica, novelistas.

]]>
119
Um poema de Drummond no Dia das Mães https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/05/08/um-poema-de-drummond-no-dia-das-maes/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/05/08/um-poema-de-drummond-no-dia-das-maes/#comments Sun, 08 May 2016 15:37:54 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=985 Pela pena de Carlos Drummond de Andrade, deixo uma homenagem a todas as mães e a minha solidariedade a todos os filhos que já não têm a quem abraçar nesta data.  O soneto que você lê abaixo é intitulado “Carta”:

Há muito tempo, sim, que não te escrevo.temalivre
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

Note que o “eu lírico” (a voz que fala em um poema) é um homem já envelhecido. Faz menção aos sinais em seu rosto (as rugas do envelhecimento) e emprega a expressão “ao sol-posto”, metáfora da última etapa da vida.

Conversa com a mãe, expressando a falta que sente dela, por meio da segunda pessoa do singular (tu), como se vê na flexão dos verbos e no emprego dos pronomes: “que não te escrevo”,”olha em relevo” (modo imperativo), “que fazias no meu rosto”, ” a falta que me fazes“, “quando dizias“, “Deus te abençoe” (a mãe também o trata por “tu”). Percebe-se que o poeta mantém o tratamento (“tu”), sem a mistura de pessoas gramaticais hoje tão comum mesmo em escritores.

Vale observar a bela estrutura do soneto, com suas rimas e versos decassílabos. Veja a maestria do poeta na passagem da primeira estrofe para a segunda: a “frase” que começa no terceiro verso da primeira estrofe continua no primeiro da segunda:

… olha, em relevo,/ estes sinais em mim, não das carícias /(tão leves) que fazias no meu rosto

Embora a ideia comece em uma estrofe e continue na outra, não há interrupção de sentido ou de ritmo. Esse recurso chama-se “enjambement” ou encadeamento. Na leitura em voz alta, deve-se respeitar o ritmo, sem fazer uma pausa artificial entre os versos.

Rimas como “escrevo/relevo” ou “dizias/dias”, obtidas de palavras de diferentes classes gramaticais, são as chamadas rimas ricas, que sempre oferecem mais dificuldade ao autor. Para fazer um soneto, é preciso pensar em muita coisa (métrica, ritmo, rimas), tudo isso a serviço da emoção, que transparece nas metáforas e outros volteios de linguagem. Veja como a vida é descrita pelo poeta num paradoxo: “noite acumulada de meus dias”.

Há muito mais a dizer, mas fique hoje o leitor com essa pequena degustação do nosso grande Drummond.

 

]]>
18
Fuvest 2016: prova de português priorizou interpretação de textos https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/11/30/fuvest-2016-prova-de-portugues-priorizou-interpretacao-de-textos/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/11/30/fuvest-2016-prova-de-portugues-priorizou-interpretacao-de-textos/#comments Mon, 30 Nov 2015 20:28:57 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=888 Com 18 questões de português, a maioria das quais voltada para a interpretação de textos, o exame da primeira fase da Fuvest continua valorizando a capacidade do candidato de aplicar seu conhecimento linguístico para ler portugues em diaadequadamente. O que pode parecer fácil à primeira vista – afinal, as pessoas sempre acham que entenderam o que leram –  é, na verdade, um grande desafio (e não nos deixam mentir as incontáveis confusões de que andam repletas as redes sociais).

A leitura competente depende, é claro, da atenção, mas isso não basta. Requer também a compreensão das estruturas linguísticas e do significado das palavras, a percepção dos recursos figurativos da linguagem e, mais ainda, o entendimento das referências que atuam latentes em quaisquer processos comunicativos. Não há como treinar um estudante para responder a esse tipo de questão, mas há como desenvolver sua competência no decorrer do processo educacional. Ao que tudo indica, é isso o que a Fuvest tem valorizado.

A prova privilegiou o dinamismo da linguagem, ora cobrando do candidato que relacionasse texto e imagem, ora fazendo-o perceber que o contexto de uma afirmação pode modificar o seu sentido literal. Saber a diferença entre um provérbio e um pensamento comum, repetido à exaustão, relacionar provérbios entre si, mostrando que muitos carregam mensagens semelhantes e outros tantos exprimem exatamente o contrário dos primeiros, tudo isso obriga o estudante a pensar sobre a linguagem, a fazer um exercício de reflexão sobre o seu instrumento de comunicação e expressão.

O ótimo texto de Boris Fausto e o fragmento do saboroso livro de Paulo Rónai convidam à reflexão, um sobre a propaganda, outro sobre aspectos antropológicos da linguagem, tema caro ao húngaro que aprendeu sozinho o português. Em uma das questões, o estudante deveria relacionar o texto de Boris Fausto a trechos d’ “O Príncipe”, de Maquiavel, explicitando a importância do repertório cultural para a competente leitura de um texto. Até a biologia apareceu na prova, numa questão de literatura que tratava da bexiga (trecho da obra “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, um dos nossos “clássicos” da modernidade), acenando com a interdisciplinaridade, característica do Enem.

Foi do romance de Jorge Amado que se extraiu a única questão de correção gramatical, em que, diga-se, há o reconhecimento da importância desse tipo de saber no âmbito dos estudos linguísticos. A expressão “erro gramatical” aparece com todas as letras no enunciado de uma das perguntas.

Para bem responder a essa questão, o estudante deveria ter conhecimento da equivalência entre o pretérito mais-que-perfeito simples (morrera) e o composto (havia/ tinha morrido) e entre as conjunções “mas” e “no entanto”, ambas adversativas. Precisava saber distinguir “tampouco” (também não) de “tão pouco” (muito pouco) e conhecer a regência do verbo “esquecer”, bem como o emprego das preposições antes dos pronomes relativos.

Crítica literária, história da literatura e literatura comparada também foram temas abordados. Machado de Assis, mesmo quando não aparece diretamente, é presença obrigatória na Fuvest (e na nossa vida também).

A literatura portuguesa apareceu com o último romance de Eça de Queiroz, “A Cidade e as Serras”, uma das leituras obrigatórias, e a poesia veio representada por outro dos nossos grandes nomes, Carlos Drummond de Andrade, que fecha com chave de ouro a bela prova de português da Fuvest, dando ensejo não só à interpretação do poema como também ao entendimento do emprego sutil da adversativa que liga os versos “Itabira é apenas uma fotografia na parede/ Mas como dói!”.

 

]]>
3