Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O zero e a negação: “Estou zero preocupado com isso” https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/09/18/o-zero-e-a-negacao-estou-zero-preocupado-com-isso/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/09/18/o-zero-e-a-negacao-estou-zero-preocupado-com-isso/#respond Tue, 18 Sep 2018 22:18:31 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1304 Observo com curiosidade como se disseminou uma prática linguística que, até pouco tempo atrás, era bissexta e, por isso mesmo, muito expressiva. Estou falando do uso da palavra “zero”, um numeral, no lugar de uma partícula de negação (pronome indefinido, advérbio ou preposição) ou do adjetivo “nulo”.

Em vez de dizer que não estou preocupado com alguma coisa, digo que estou zero preocupado. Em vez de dizer que uma pessoa não tem nenhum conhecimento sobre um tema, digo que ela tem zero conhecimento sobre aquilo.

Tenho visto esse uso com certa frequência e convido o leitor a observá-lo também.

Vale lembrar que o “zero” posposto a um substantivo não é novidade em situações em que aparece ainda como quantificador, indicando ausência de um elemento (morfema zero) ou ponto inicial de uma escala (grau zero, gravidade zero), daí provavelmente derivando expressões como “marco zero”, “estaca zero” ou “começar do zero” — e, mais recentemente, “prioridade zero”, à qual voltarei em outro momento.

É claro que não podemos subestimar a influência do inglês, que nos deu “tolerância zero” (“zero tolerance”) e similares. Daí para “Fome Zero” (nome de programa governamental) e outras expressões do mesmo tipo, o passo foi curto. O título jornalístico corrobora o uso: Desmatamento zero do Cerrado é reivindicação aos presidenciáveis”.

A fala (em provável tradução literal) de Moritz Poehl, antigo analista do banco Lehman Brothers, “Você tinha zero controle sobre alguém que podia apertar o botão errado, no andar errado”, atesta essa marca do inglês sobre o português.

Vejamos alguns exemplos de como o “zero” vem aparecendo no lugar das formas tradicionais de negação em português.

Do atleta Alexsandro de Souza: “Eu vejo que realmente deu resultado, mas o nosso poder de execução é zero”.

Da historiadora Mary del Priore,  ao comentar o incêndio do Museu Nacional: “Tivemos a Capela Imperial, na UFRJ, que foi queimada, mas as pessoas apenas lamentam depois. Toda vez que o Museu Nacional precisou de verbas, o apoio da população era zero. Agora todo o mundo chora, mas a verdade é que há uma negligência do cidadão carioca”.

De um deputado: “Bolsonaro fez, de forma orientada, vários gestos para a comunidade [judaica], especialmente em relação a Israel, mas o conhecimento dele sobre desafios do povo judeu é zero”.

De Ivan Monteiro, presidente da Petrobras: “Houve zero submissão ao governo. Temos toda uma política de governança. A proposta vinha sendo estudada há 60 dias. Quando ficou madura, submetemos à diretoria executiva”.

Enfim, nesses exemplos, vemos o “zero” com característica de adjetivo e de pronome indefinido, dado que relacionado diretamente a um substantivo, seja em função predicativa (o poder era zero, o apoio era zero, o conhecimento é zero, em vez de “nulo”), seja como adjunto adnominal (zero controle, zero submissão, em vez de “nenhum controle”, “nenhuma submissão”).

Há que se questionar o porquê de usar um numeral (cardinal, portanto quantificador) para adjetivar substantivos abstratos, não contáveis. Ora, se posso dizer “zero controle”, poderia igualmente dizer “um controle”, “dois controles”, “três controles” etc., mas isso não se verifica. Daí se conclui que “zero” nessas construções não deve ser tomado como numeral – ele perdeu a faculdade de quantificar, passando a ocupar o lugar de um pronome indefinido indicador de totalidade exclusiva (nenhum).

É interessante observar que, em uma construção como “Houve zero submissão”, não há partícula de negação, enquanto, em seu equivalente tradicional (“Não houve nenhuma submissão”), aparecem dois elementos negativos (não, nenhum).

O que vemos é que o “zero” parece ter entrado na moda.  Quando alguém diz que está zero preocupado, o “zero” está no lugar de uma negação enfática (Não estou nem um pouco preocupado), exercendo função adverbial, dado que modifica o adjetivo “preocupado” e que de modo algum seria permutável com um numeral cardinal qualquer (um, dois, três etc.).

É possível que esse uso tenha tido seu início em expressões ligadas a medidas (carro zero-quilômetro ou simplesmente carro zero; taxa zero). Note-se que, nesses casos, o “zero” denota um valor positivo (carro novo; sem taxa), o que é bem diferente de “ser um zero à esquerda” ou mesmo de “ser um zero”, expressões de caráter negativo. Ao que tudo indica, esse uso veio para ficar.

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Dupla negativa pode causar confusão https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2013/12/27/dupla-negativa-pode-causar-confusao/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2013/12/27/dupla-negativa-pode-causar-confusao/#comments Fri, 27 Dec 2013 12:30:55 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=485 Nosso amigo José Wilson Faustino trouxe uma questão capciosa, que pode ser interessante para muita gente. Certa passagem de uma tradução de um romance de Balzac foi o que suscitou a dúvida do atento leitor.

A frase era a seguinte: “São raros os homens que não sobem sem vivas emoções as escadarias da Corte Real”. Como podemos observar, o trecho destacado final o leitor quer saber apresenta dupla negação – e é exatamente aí que mora o problema.

A ler o que está escrito, como percebe o leitor, estaria o narrador balzaquiano dizendo “que poucos homens sobem as escadarias tomados de vivas emoções” e que o personagem citado “seria uma exceção, pois ele se deixa tomar de forte emoção ao subir aqueles degraus”. Ocorre que, ao confrontar essa tradução com o texto original, o que percebemos é que o sentido pretendido era o inverso. O personagem em questão era, sim, uma exceção à regra, mas “a regra” era que poucos homens sobem aquelas escadarias sem vivas emoções (ou no controle dessas fortes emoções). O referido personagem era um desses homens capazes de dominar as emoções.

Esse tipo de confusão é frequente quando se empregam verbos como “evitar” ou “impedir”, que têm sentido negativo. Ao usar a negativa com esses verbos, o seu sentido passa a ser positivo (quem não evita filhos, por exemplo, permite que eles sejam gerados; quem não impede uma ação certamente a permite).

A estrutura não… sem, de dupla negativa, é apropriada para afirmar algo de maneira indireta. Vale lembrar uma antiga campanha publicitária de cartão de crédito (Não saia de casa sem ele), que, com humor, foi parafraseada por Jô Soares como bordão de seu programa noturno (Não vá para a cama sem ele).

Não sair de casa sem o cartão de crédito significa sair de casa sempre com ele; não ir para a cama sem o Jô Soares significa ir para cama só depois de ver o programa. Em suma, “não… sem” produz, sim, sentido positivo. A estrutura é bastante usada no dia a dia. Vejam-se frases como “Fulano não passa um dia sem ligar para a mãe”, ou seja, liga para a mãe diariamente.  

Só não vale confundir esse caso com o de frases como “Não fez nada” ou “Não viu ninguém”, que são corretas e mantêm seu sentido negativo. Esse tema fica para a próxima!

 

 

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