Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Ser professor: um compromisso com a liberdade https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/10/15/ser-professor-um-compromisso-com-a-liberdade/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/10/15/ser-professor-um-compromisso-com-a-liberdade/#respond Thu, 15 Oct 2020 19:09:13 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/Redação-do-Enem-estudante-Bruna-Rocha-Parrado-8.2.2019-Rubens-Cavallari-Folhapress-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1549 Certa vez, publiquei neste espaço um texto que se propunha explicar por que o Enem adotava como um de seus critérios de correção de redação o respeito aos direitos humanos. Na ocasião, tentei demonstrar que o preconceito atrapalhava a elaboração de um raciocínio construído em bases lógicas, uma vez que constitui uma premissa falsa, mas reconheço que a acolhida não foi das melhores.

Bem, estávamos no fim de 2017 e o movimento Escola sem Partido ganhava uma briga na Justiça. Conseguiu para os seus adeptos uma vitória contra essa bobagem chamada direitos humanos, vitória essa que, segundo muito se difundiu na época, era uma vitória da liberdade de expressão. Afinal, poderiam finalmente os alunos, até então oprimidos pela ideologia dos direitos humanos, manifestar livremente o seu desapreço por negros, homossexuais, pessoas com deficiência, pessoas pobres e tudo o mais que a imaginação e as redes sociais lhes oferecessem como subsídio à construção do pensamento.

Um ano depois, era eleito Jair Bolsonaro, o candidato sincero, aquele que usava a liberdade de expressão para fazer apologia de preconceitos e até da tortura, o candidato que legitimava os piores sentimentos das pessoas, então libertas pelo ódio ao vizinho.

Rapidamente, as redes sociais se encheram de relatos de alunos que, estimulados por pais fanáticos ou mesmo por esse movimento ideológico dito Escola sem Partido, filmavam seus professores para denunciá-los por estarem criticando o governo ou defendendo justiça social e outras pautas associadas ao pensamento crítico – ou de esquerda, ou comunista.

Com a pandemia de Covid-19, o ensino remoto transformou-se em opção para uma parcela do alunado. A circunstância criou uma curiosa situação: pais começaram a ouvir as aulas que os filhos recebem e, segundo relatos de amigos professores, alguns intervêm nas aulas, fazendo a censura ideológica tão desejada por aqueles que, no longínquo 2017, se insurgiam contra a correção da prova de redação do Enem.

Ser professor nunca foi fácil, mas, neste momento, parece cada vez mais difícil. Muitos pais – e naturalmente aqui me refiro a uma parcela daqueles que pagam por ensino privado – veem na escola um lugar seguro onde possam deixar os filhos por algum tempo ou um lugar controlado, uma espécie de clube, onde os filhos convivam com seus iguais. Os professores, nesse caso, devem estar a serviço desses pais e, portanto, dizer aos filhos deles aquilo que eles próprios, os pais, querem que lhes seja dito.

Penso, no entanto, que ao professor cabe uma tarefa muito mais complexa e muito mais digna que essa: a de conduzir o desenvolvimento dos alunos. Vale lembrar que “desenvolver” é tirar aquilo que envolve ou cobre. A escola não é (ou não deveria ser) mera continuação do lar nem o professor um mero transmissor de conteúdos, a serem pinçados em um cardápio. Devem levar os jovens a pensar criticamente e com autonomia, sem que a estes seja negado o direito ao conhecimento ou imposto qualquer tipo de censura, seja qual for o pretexto.

É preciso educar para a liberdade. Neste Dia do Professor, minha solidariedade a todos os que estão nessa luta!

Observação: o texto contém trechos irônicos (leia com atenção).

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Cafonice linguística não é critério de avaliação do Enem https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/28/cafonice-linguistica-nao-e-criterio-de-avaliacao-do-enem/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/28/cafonice-linguistica-nao-e-criterio-de-avaliacao-do-enem/#respond Wed, 28 Aug 2019 14:13:36 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/Redação-do-Enem-estudante-Bruna-Rocha-Parrado-8.2.2019-Rubens-Cavallari-Folhapress-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1407 Outrossim, destarte, é mister, faz-se necessário, ademais, hodiernamente, de acordo com os fatos supracitados… Quem já tenha corrigido provas de redação de concursos públicos, de vestibulares e mesmo do Enem certamente, em algum momento,  ficou tomado de enfado diante de termos como esses, que remetem a uma formalidade típica de órgãos burocráticos.

Seria interessante procurar saber o motivo de tal vocabulário fazer parte do repertório de jovens aspirantes a uma vaga na universidade ou no serviço público. Uma hipótese é que apostilas ou cursos preparatórios para concursos públicos venham disseminando esse tipo de linguagem, própria da redação oficial, como se essa fosse a única forma de escrever no registro formal culto da língua. Trata-se apenas de uma hipótese, pois nem mesmo o Manual de Redação da Presidência da República faz esse tipo de recomendação.

O que não é justo é atribuir ao Enem o estímulo à cafonice linguística, embora seja fato que muitas das redações que atingem a pontuação máxima no exame realmente contenham termos e expressões como os “supracitados”. Daí a dizer que foram valorizadas por causa disso vai uma longa distância. Não será, por certo, esse o critério de avaliação de desempenho dos estudantes. Na cartilha do participante, aliás, estão descritos os critérios de avaliação da redação pela banca examinadora. Uma leitura cuidadosa desse material pode afastar a impressão de que o resgate de termos antiquados seja um item valorizado na redação do Enem.

Ensinar alguém a escrever não é tarefa das mais fáceis e pode haver professores que, na tentativa de ajudar seus alunos, façam certas recomendações, as quais, quando seguidas à risca, acabam por tornar os textos um tanto postiços. Há quem diga que “hoje em dia” ou “nos dias de hoje” são expressões coloquiais e que “o certo” seria usar o advérbio “hodiernamente”, que, diga-se de passagem, “hoje em dia”, pouca gente usa.

Empregar mesóclises (torná-lo-ia, percebê-lo-ão etc.) e termos já um tanto empoeirados não faz um texto ser melhor que outro. O mesmo vale para o uso de palavras raras. Esse tipo de linguagem, marcado pela afetação e pela falta de naturalidade, é chamado de “preciosismo”. O curioso nessa história é que, desde o modernismo, que já está quase completando uma centena de anos, esse tipo de uso da linguagem tem sido objeto de sátira.

É fato que, ainda hoje, paira na percepção do senso comum a ideia de que o modo como falamos é “errado”, donde a escrita, por ser formal, ter de ser muito diferente da fala. O receio de “errar” ou a dificuldade de saber ao certo o que é coloquial e o que é formal podem estar na origem dessas escolhas lexicais, que, ao menos aparentemente, seriam uma garantia de estar navegando no registro culto da língua.

Há quem ensine aos alunos que o último parágrafo do texto dissertativo deve começar com a construção “de acordo com os fatos supracitados, resta evidente que” por entender que, depois dela, só será possível escrever algo que conclua o raciocínio desenvolvido anteriormente, amarrando, por assim dizer, as ideias.

Não é preciso dizer que essa muleta, além de não garantir o resultado esperado, subestima o estudante, já que parte do pressuposto de que, sem isso, ele não conseguiria conduzir seu raciocínio a uma conclusão. O Enem e os principais vestibulares do país esperam encontrar estudantes que saibam expressar-se com autonomia, não autômatos que repitam fórmulas de texto ou “modelos de redação”.  O efeito dessas expressões na redação costuma ser artificial, denotando certa ingenuidade, pois, em geral, aparecem salpicadas no texto, não estando este por inteiro vazado nesse registro.

É importante que fique claro que essa linguagem rebarbativa que tem invadido as provas de redação não é exigida nem mesmo estimulada pelo Enem ou pelos exames vestibulares.  Por outro lado,  também não se pode punir o estudante que empregue esses termos, caso o faça corretamente, pois a avaliação não é estilística.

O texto que se espera deve estar, sim, redigido na modalidade formal culta, com respeito às normas gramaticais (concordância, regência, pontuação etc.), apresentar vocabulário o mais preciso possível e, sobretudo, estar bem articulado, com ideias desenvolvidas e hierarquizadas, demonstrar a capacidade do estudante de estabelecer um raciocínio claro e bem fundamentado acerca do tema proposto.

 

 

 

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O último Enem https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/12/26/o-ultimo-enem/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/12/26/o-ultimo-enem/#respond Wed, 26 Dec 2018 21:27:55 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2018/12/ENEM-alunos-15419479895be84255e5b1a_1541947989_3x2_lg-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1325 Muito se comentaram algumas questões da prova de linguagens do último Enem – menos por sua qualidade pedagógica que por um suposto viés ideológico, hoje alvo das diatribes da equipe que vai integrar o futuro governo do país, à frente da qual se posiciona o próprio presidente eleito, que chamou para si a tarefa de inspecionar as próximas provas antes de sua aplicação.

Ainda que se possa incluir a declaração no seu já extenso rol de bravatas, sempre mais propícias a animar a torcida do que a motivar algum tipo de discussão, vamos aqui tomar a segunda via e tentar compreender o espírito da prova.

A crítica dos que consideram ter havido “ideologização” da prova recai sobre a escolha de alguns textos que serviram de base para questões de interpretação e de emprego amplo da língua, em suas mais variadas situações e funções. Em consonância com os parâmetros curriculares e mesmo com a base comum curricular, o exame nem de longe lembra as antigas provas de português, cuja maior exigência era que se decorassem conjugações verbais e listas de coletivos ou de superlativos absolutos eruditos, entre outros desafios mnemônicos. Não à toa, trata-se de uma prova de linguagens.

Muito bem. Havia na prova de linguagens cartazes de campanhas publicitárias, textos poéticos, fotogramas, fotos de esculturas, uma adaptação de Guimarães Rosa para a linguagem de quadrinhos, excertos de crônicas e de textos jornalísticos, uma tirinha, um resumo de tese acadêmica, um texto sobre teatro, um sobre cinema, outro sobre rede social (Twitter), bem como um trecho do Hino Nacional Brasileiro. Também havia Graciliano Ramos, Machado de Assis, Guimarães Rosa (não adaptado), Manoel de Barros, Ivan Ângelo, Marques Rebelo, Torquato Neto e outros autores.

Como se vê, a prova buscou apresentar uma variada gama de gêneros textuais, corroborando a ideia de que a realidade é mediada por linguagens, cuja compreensão é fator de cidadania.

O que causou celeuma, no entanto, foi a escolha de alguns textos em razão dos temas abordados. É inegável que se buscou tratar de questões atuais, presentes em matérias jornalísticas e em discussões nas redes sociais, o que leva o estudante a ter um envolvimento real, não meramente escolar, com elas.

Havia esporte, ética e valores, violência contra a mulher, ciência, empoderamento feminino, alimentação, saúde, preconceito racial dissimulado (na estética) ou ostensivo (nas redes sociais), educação, universo LGBT, mas também havia a internet e o uso da tecnologia (aplicativo de descrição de filmes para deficientes visuais, “caçador de plágio”), entre outros.

É bom que se diga que os textos tinham mesmo algo de provocadores, no mais salutar sentido do termo. Estavam ali para provocar reflexão, pois é exatamente assim que se constrói o conhecimento. Afinal, por que a realidade deveria ser escamoteada da prova? Espera-se que um jovem, ao término do ensino médio, tenha consciência do mundo em que está inserido e que seja capaz de fazer reflexões, de participar do debate público como cidadão. Ou não?

Jovens de 16 anos já podem ser eleitores, portanto convém que leiam jornais, que se mantenham bem informados e que sejam capazes de refletir sobre o que leem. Na prova, naturalmente, não se cobrava dos estudantes nenhum tipo de posicionamento sobre as questões; as perguntas eram estritamente ligadas ao funcionamento das linguagens. O problema, então, seria apresentar a eles textos que estão ao alcance de todos na internet, como se fosse possível (ou desejável) ocultar dos jovens a realidade, da qual eles mesmos são parte.

Em suma, o espírito da prova, que já chamaram de “complicada”, é, na verdade, muito simples: valoriza-se a reflexão.

Havia muitas questões interessantes no exame, mas as críticas recaíram com inusitada ênfase sobre um texto jornalístico que tratava do “pajubá”, uma gíria usada pelos gays, chamada pelo autor da reportagem de “dialeto” (seria antes um “socioleto” ou “dialeto social”, mas não era esse o foco da questão).

No texto reproduzido na prova, um advogado usuário do referido socioleto explicava ao repórter o significado de alguns termos e dizia que, obviamente, não empregava aquele vocabulário em uma audiência, mas que usava algumas daquelas palavras no ambiente de trabalho, com os colegas, porque as pessoas já conhecem muitas delas, uma vez que existe até um “dicionário de pajubá” (o livro “Aurélia: a Dicionária da Língua Afiada”, de Angelo Vip e Fred Libi, uma compilação desse vocabulário).

O texto-base mostrava que o fato de haver um “dicionário de pajubá” dava ao usuário a percepção de oficialidade, de modo que a gíria estaria, dessa forma, ganhando respeitabilidade, alcançando o status de dialeto, “caracterizando-se como elemento do patrimônio linguístico”.  Era uma questão de linguagem, de interpretação de texto, nada além disso. Quem censura a simples menção aos gays, no mínimo, quer tapar o sol com a peneira. Vai ter de censurar a internet e até mesmo a realidade, se isso for possível.

Um exame do alcance e do porte do Enem tende a influenciar o processo educacional como um todo. Esperamos que seja mantido seu espírito indutor de reflexão sobre a realidade, amparado no respeito aos direitos humanos. Perpetuar preconceitos, de quaisquer tipos, é segregar o outro, excluí-lo do convívio e das oportunidades, coisa que nenhuma escola pode admitir, sob pena de deixar de ser escola para ser clube ou igreja.

 

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