Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Hércules-Quasímodo, o sertanejo de Euclydes da Cunha https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/15/hercules-quasimodo-o-sertanejo-de-euclydes-da-cunha/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/15/hercules-quasimodo-o-sertanejo-de-euclydes-da-cunha/#comments Sat, 15 Aug 2015 22:23:08 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=803 É muito provável que, mesmo sem ter lido “Os Sertões”, muita gente conheça a frase que celebrizou a obra máxima de Euclydes (ou Euclides) da Cunha: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. final sala de leitura

Hoje, vamos ler um trecho do terceiro capítulo da segunda parte do livro (intitulada “O Homem”), que começa exatamente com essa afirmação. Para ajudar o leitor, foram postas entre colchetes explicações de alguns termos empregados pelo autor.

Como temos observado, chama a atenção no estilo do escritor a obsessão (no bom sentido!) pelo emprego preciso dos termos e pelo uso do par substantivo/adjetivo.

Procure observar outro traço estilístico da obra: a alternância de parágrafos longos (não raro constituídos de uma só frase bastante longa) com parágrafos muito curtos, de um só período. O parágrafo curto, de alto impacto, sintetiza a reflexão de Euclydes.

Hoje, 15 de agosto, aniversário da morte trágica do escritor, encerro esta sequência de textos da sua obra. Sua leitura é a maior homenagem que se pode fazer à memória do autor. Não se trata de tarefa das mais fáceis, como é preciso reconhecer, mas nisso reside o desafio. Reserve um tempo para ler, longe das inúmeras distrações do mundo real e do virtual.

Boa leitura!!

 

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno [porte elegante, ereto, desempenado], a estrutura corretíssima das organizações atléticas.

É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade [característica daquilo que é feio] típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo [posição elegante, ereta], quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal [susta o movimento do animal puxando as rédeas] para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela [parte da sela em que se apoia a coxa do cavaleiro]. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo — cai é o termo — de cócaras [variante de cócoras], atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.

É o homem permanentemente fatigado.

Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene [perda permanente do tônus muscular], em tudo: na palavra remorada [fala lenta, interrompida], no gesto contrafeito [desfigurado], no andar desaprumado, na cadência langorosa [fraca, enfraquecida] das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida [fraca, sem firmeza] operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas [variante de ‘adormecidas’]. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando [ostentando, exibindo com orgulho] novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes [com presteza, rapidamente], numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar [comum, corriqueiro, usual] do tabaréu canhestro [indivíduo simplório e desajeitado], reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado [gigante amorenado] e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.

Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja — caracterizado sempre pela intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas [longos períodos de desânimo].

É impossível idear-se [idealizar-se] cavaleiro mais chucro [não domado, sem traquejo, grosseiro] e deselegante; sem posição, pernas coladas ao bojo da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura [passo de cavalgadura] dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente [indiferente, desleixada, descuidada], acompanhando morosamente [lentamente], a passo, pelas chapadas, o passo tardo [lento] das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o campião [variante antiga de ‘campeão’] que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dois terços da existência.

Mas se uma rês alevantada [que fica em pé] envereda, esquiva [arredia, arisca], adiante, pela caatinga garranchenta [cheia de galhos tortuosos]; ou se uma ponta [chifre] de gado, ao longe, se trasmalha [escapa, se afasta do bando], ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates [esporas] de rosetas largas [parte móvel da espora, em forma de roda dentada] nas ilhargas [parte lateral do corpo] da montaria e partindo como um dardo, atufando-se [embrenhando-se] velozmente nos dédalos [labirintos] inextricáveis [que não se podem desembaraçar] das juremas [árvores de caule tortuoso].

Vimo-lo neste steeple-chase [corrida com obstáculos] bárbaro [desumano, feroz].

Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem [que se lhe apresentem aos olhos] quebradas [declives de montanhas], acervos [grandes quantidades] de pedras, coivaras [gravetos e troncos soltos], moitas de espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede encalçar [perseguir] o garrote [bezerro] desgarrado, porque por onde passa o boi passa o vaqueiro com o seu cavalo

Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças à pressão dos jarretes [parte da perna oposta ao joelho, pela qual este se flexiona] firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco [tosco, não polido]: emergindo inopinadamente [inesperadamente] nas clareiras [local de vegetação rasteira ou sem vegetação em meio a um bosque]; mergulhando nas macegas [tipo de arbusto} altas; saltando valos [muros; fossos] e ipueiras [charcos]; vingando cômoros alçados [ultrapassando, vencendo dunas ou montes elevados]; rompendo [atravessando], célere [com rapidez], pelos espinheirais mordentes; precipitando-se, a toda brida [a toda a velocidade, à rédea solta], no largo dos tabuleiros [tipos de terreno]

A sua compleição robusta ostenta-se, nesse momento, em toda a plenitude. Como que é o cavaleiro robusto que empresta vigor ao cavalo pequenino e frágil, sustenta-o nas rédeas improvisadas de caroá [planta de cuja fibra se fazem cordas], suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na carreira [lançando-o com ímpeto na estrada] – estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente, torso colado no arção [armação da sela],escanchado [montado] no rastro do novilho esquivo: aqui curvando-se agilíssimo, sob um ramalho [ramo cortado de árvore, grande e seco] que lhe roça quase pela sela; além desmontando, de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal, para fugir ao embate de um tronco percebido no último momento e galgando, logo depois, num pulo, o selim; — e galopando sempre, através de todos os obstáculos, sopesando à destra [equilibrando (coisa pesada) com a mão direita] sem a perder nunca, sem a deixar no inextricável dos cipoais, a longa aguilhada [aguilhão, vara de tanger bois] de ponta de ferro encastoada [arrematada] em couro, que por si só constituiria, noutras mãos, sérios obstáculos à travessia…

Mas terminada a refrega, restituída ao rebanho a rês dominada, ei-lo, de novo caído sobre o lombilho retovado [sela forrada de couro], outra vez desgracioso e inerte, oscilando à feição da andadura lenta, com a aparência triste de um inválido esmorecido [desanimado, triste].

(IN: CUNHA, E – “Os Sertões”, Círculo do Livro, s/d)

Hércules-Quasímodo

A expressão com que Euclydes da Cunha sintetizou sua percepção do sertanejo é dos mais conhecidos oximoros da literatura brasileira. Oximoro é o nome de uma figura de retórica que consiste em combinar palavras de sentido oposto, que, à primeira vista, parecem contradizer-se, excluindo-se mutuamente, mas que, no contexto, reforçam um sentido pretendido.

A força do herói mitológico Hércules e a fealdade de Quasímodo (referência à personagem monstruosa da obra “Notre-Dame de Paris”, de Victor Hugo), na visão do autor, são, juntas, a síntese do sertanejo que ele encontrou em Canudos. Ele vê um homem adaptado ao meio em que vive, cuja aparência “permanentemente fatigada” oculta a força de um guerreiro.

Um pouco de gramática

“Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso.”

Nessa frase, o autor constata que a aparência de cansaço desaparece repentinamente. A estrutura sintática escolhida por ele em “vê-la desaparecer”  nem sempre é empregada no registro oral da língua. É comum ouvirmos “ver ela desaparecer”, “ver ela chegar” etc. Você já notou que há uma diferença entre essas estruturas? Este costuma ser o momento em que as pessoas perguntam qual é, afinal, a forma “correta”.

Vamos tentar não fazer essa pergunta, pois, ao considerar uma forma “correta” e a outra “errada”, estamos  apenas simplificando uma questão complexa. Certamente as duas estruturas coexistem na língua portuguesa, queiramos ou não.

A do texto euclidiano está no registro formal, no qual o sujeito do infinitivo (“desaparecer”) é representado por um pronome de objeto direto (oblíquo/ -la), enquanto a da fala sinaliza possível mudança no decorrer do processo evolutivo da língua (substituição do pronome de objeto direto pelo de sujeito/ -la para ela).

Vamos compreender a estrutura própria do registro formal: existe um grupo de verbos auxiliares (chamados causativos e sensitivos) cujo complemento são orações reduzidas de infinitivo (como a da frase de Euclydes: vê-la desaparecer) ou orações desenvolvidas (ver que ela desaparece). Como esses verbos (mandar, deixar, fazer, ver, ouvir, sentir) são transitivos diretos, a oração que vier a completar algum deles será o seu objeto direto.

Essa estrutura foi, por assim dizer, herdada do latim. Os verbos acima (todos transitivos diretos) regem uma oração infinitiva no caso acusativo (grosso modo, o caso acusativo do latim equivale ao objeto direto do português), cujos elementos apareciam no latim declinados no acusativo. O português não herdou as declinações do latim, mas conservou, nos pronomes pessoais, a distinção entre formas de sujeito (eu, tu, ele, nós, vós, eles) e formas de objeto (me, te, se, lhe, o, a, nos, vos, lhes, os, as).

O sujeito do infinitivo é uma espécie de sujeito no caso acusativo (é sujeito, mas é representado pelo pronome de objeto direto). É por isso que, no registro formal, veremos construções como “mandou-o sair” e “deixe-me ver”, que, em contextos (bem) menos formais aparecem como “mandou ele sair” e “deixe eu ver”.  Note que a substituição do pronome oblíquo pelo reto parece mais frequente na terceira pessoa gramatical (ele, eles).

Procure observar, nos ambientes que você frequenta, qual é a construção mais usada. 🙂

 

]]>
2
Os singulares higrômetros de Euclydes da Cunha https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/11/os-singulares-higrometros-de-euclydes-da-cunha/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/11/os-singulares-higrometros-de-euclydes-da-cunha/#comments Tue, 11 Aug 2015 12:57:59 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=799 Você sabe o que é um higrômetro? final sala de leitura

Do grego “higr(o)-”, úmido, molhado, chuvoso, e “-metro”, instrumento para medir, higrômetro é o nome genérico dos instrumentos que servem para medir a umidade de gases ou do ar.

Numa passagem da primeira parte do livro “Os Sertões”, intitulada “A Terra”, Euclydes da Cunha descreve o que chamou de “higrômetros inesperados e bizarros”. Vejamos o que ele quis dizer com essa expressão. Vamos à leitura, aqui auxiliada pela definição de alguns termos, postos entre colchetes:

Não a [refere-se à secura da atmosfera, mencionada no parágrafo anterior] observamos através do rigorismo de processos clássicos, mas graças a higrômetros inesperados e bizarros.

Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneio [descarga de canhões] frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes [verdejantes] viçando [vicejando] em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes [luzentes, cintilantes], davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a [sobrepondo-se à] vegetação franzina [de talhe fino].

O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela — braços largamente abertos, face volvida para os céus, — um soldado descansava.

Descansava… havia três meses.

Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da mannlicher [tipo de rifle] estrondada [avariada, quebrada], o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se [vergando-se] à violenta pancada que lhe sulcara a fronte [testa; face], manchada de uma escara [crosta de ferida] preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes…

E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranquilo [adaptado à nova ortografia] sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.

Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimes empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas [ressecadas, sem umidade] e o arcabouço engelhado [esqueleto enrugado] e duro.

À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a montada de um valente, o alferes Wanderley; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar [deslizar], porém, estrebuchando malferido [gravemente ferido], pela rampa íngreme, quedou, adiante, à meia encosta, entalado entre fraguedos [grupo de fragas, rochas]. Ficou quase em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto [saliência] da pedra… E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste [vento forte, típico da região], se lhe agitavam as longas crinas ondulantes…

Quando aquelas lufadas [rajadas de vento], caindo a súbitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos [mudanças bruscas na direção do vento] turbilhonantes [que rodopiam], à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação [ressecamento excessivo] do ambiente adusto [abrasado, de temperatura muito elevada]: cada partícula de areia suspensa do solo gretado [rachado, estriado] e duro irradiava em todos os sentidos, feito um foco calorífico, a surda combustão da terra.

(IN: Cunha, E – “Os Sertões”, Círculo do Livro, s/d)

 

Euclydes usou os adjetivos “inesperados e bizarros” para caracterizar o que, metaforicamente, chamou de “higrômetros”. O termo “bizarro”, embora também signifique “elegante, garboso, valente”, é empregado, não só no texto acima como pela maioria dos falantes brasileiros, como sinônimo de “insólito, excêntrico, estranho”.

O trecho exemplifica o gosto do autor pela descrição pormenorizada, em que alterna termos específicos (note que ele nomeia cada árvore ou plante que encontra: quixabeira, icozeiro, palmatória) com impressões (vale observar os adjetivos que emprega, em expressões como “canhoneio frouxo”, “tiros espaçados e soturnos”, “anfiteatro irregular”, “vale único”, “icozeiros virentes”, “flores rutilantes”, “quixabeira alta”, “vegetação franzina”, “promiscuidade lúgubre”, “fosso repugnante”, “sóis ardentes”, “luares claros”, “estrelas fulgurantes”, “tranquilo sono”, “árvore benfazeja”, “animal fantástico”, “rajadas ríspidas”, “crinas ondulantes” etc.). É quase como se cada substantivo recebesse um adjetivo, sendo este, não raro, um termo que revela a percepção subjetiva do autor.

Vamos destacar duas questões gramaticais, constantes objeto de dúvida, que a passagem bem ilustra.

A primeira delas diz respeito à colocação pronominal. É comum as pessoas terem dúvida sobre a posição do pronome átono quando, mesmo existindo um claro fator de próclise, ocorre uma intercalação de expressão (entre vírgulas) antes dele. Pergunta-se se prevalece a próclise ou se, por haver uma expressão entre vírgulas, a ênclise seria mais adequada.

A orientação que costumo dar aos consulentes é que mantenham a próclise, exatamente como faz Euclydes em algumas passagens do texto acima. Vejamos:

… sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes…

Quando aquelas lufadas, caindo a súbitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos turbilhonantes, à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação do ambiente adusto:…

A oração iniciada pela conjunção “quando” (subordinada adverbial) constitui fator de próclise (quando se lhe agitavam; quando se compunham). O fato de haver elementos intercalados (ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste; caindo a súbitas) não alterou a posição do pronome átono, que se manteve antes do verbo (próclise).

A segunda questão é o emprego das formas “há” e “havia” para indicar o tempo decorrido. Ambas se prestam a isso, mas não expressam a mesma ideia. Estamos aqui no campo da categoria gramatical do aspecto verbal.

Voltemos ao texto para extrair dois exemplos:

  1. Descansava… havia três meses.
  2. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes…

Na primeira das passagens acima, o autor empregou “havia”, no pretérito imperfeito (mesmo tempo verbal em que está a forma “descansava”). Esse tempo, além de indicar ação interrompida (daí o nome “imperfeito”), apresenta o aspecto durativo, ou seja, indica que uma ação se prolonga no tempo.

Ao dizer que o soldado morto “descansava havia três meses”, Euclydes deixa claro que ele ali permaneceu por três meses (quando foi encontrado pelo escritor, fazia três meses que estava lá). Foi, aliás, a sua permanência lá, no clima árido, que o mumificou.

Na segunda passagem, Euclydes afirma que o destino o deixara (pretérito mais-que-perfeito) ali há três meses. Nesse trecho, Euclydes não se refere à duração, mas ao momento exato (aspecto pontual) em que o soldado morreu (morreu há três meses).

Há, portanto, uma diferença entre dizer que algo ocorreu há três meses (ação terminada três meses atrás) e dizer que algo ocorria havia três meses (vinha ocorrendo durante três meses).

Não faltam temas a extrair dos textos de Euclydes da Cunha, mas hoje ficamos por aqui. Espero que tenham gostado da leitura. 🙂

]]>
8
Euclydes da Cunha recebe homenagens durante a semana https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/09/euclydes-da-cunha-recebe-homenagens-durante-a-semana/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/09/euclydes-da-cunha-recebe-homenagens-durante-a-semana/#comments Sun, 09 Aug 2015 13:00:43 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=797 Anualmente, de 9 a 15 de agosto, São José do Rio Pardo (São Paulo) abriga uma série de palestras e eventos em homenagem a Euclydes da Cunha. A cidade acolheu o escritor, que lá redigiu boa parte de seu principal livro, “Os Sertões”, publicado em 1902.final sala de leitura

A obra, de difícil classificação, um misto de ensaio sociológico com literatura, nasceu da famosa Caderneta do autor. Como repórter de campo do jornal “A Província de São Paulo” (mais tarde “O Estado de São Paulo”), Euclydes esteve em Canudos, sertão da Bahia, acompanhando de perto o desenrolar da sangrenta batalha das forças da recém-implantada república contra a população, que seguia Antônio Conselheiro (1896-97).

O autor não se empenhou apenas na narrativa do combate. Muito mais do que isso, pesquisou a região, seu solo, sua vegetação, seu clima, bem como as pessoas que ali viviam. O resultado de seu trabalho extrapolaria a reportagem, tornando-se uma obra monumental. Ainda que embasado num pensamento determinista (em voga à época), Euclydes deixou-se surpreender pelo que observou e, em contraste com teorias que condenavam a miscigenação, viu no sertanejo “antes de tudo um forte”, o homem adaptado às condições de um meio inóspito.

A leitura de “Os Sertões” é um mergulho no universo do sertão, ali descrito em inimagináveis pormenores. A escrita de Euclydes é, por si só, desafiadora. Sua capacidade de descrever, em termos a um só tempo precisos e poéticos, constitui um estilo único na literatura brasileira.

Durante esta semana, relembrando meus velhos tempos de “maratonista” (é esse o nome dado aos estudantes que participam da Semana Euclidiana, “maratona” de estudos euclidianos), publicarei trechos da obra do autor, cuja leitura, desde já, está recomendada a todos.

Hoje, um trecho da primeira parte de “Os Sertões”, intitulada “A Terra”. Seguem algumas das “primeiras impressões” do autor diante da paisagem árida do sertão:

 

É uma paragem impressionadora.

As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas, e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal cobertos por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em que ressalta, predominantemente, o aspecto atormentado das paisagens.

Porque o que estas denunciam – no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos, no contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada em esgalhos – é de algum modo o martírio da terra, brutalmente golpeada pelos elementos variáveis, distribuídos por todas as modalidades climáticas. De um lado a extrema secura dos ares, no estio, facilitando pela irradiação noturna a perda instantânea do calor absorvido pelas rochas expostas às soalheiras, impõe-lhes a alternativa de alturas e quedas termométricas repentinas; e daí um jogar de dilatações e contrações que as disjunge, abrindo-as segundo os planos de menor resistência. De outro, as chuvas que fecham, de improviso, os ciclos adurentes das secas, precipitam estas reações demoradas.

As forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima e na superfície, sem intervalos na ação demolidora, substituindo-se, com intercadência invariável, nas duas estações únicas da região.

(IN: CUNHA, E. – Os Sertões, Círculo do Livro, s/d)

]]>
1