Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A ortografia também é gente https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/05/05/a-ortografia-tambem-e-gente/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/05/05/a-ortografia-tambem-e-gente/#respond Tue, 05 May 2020 19:46:28 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/Dicionário-Fábio-Braga-Folhapress.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1484 No Dia Internacional da Língua Portuguesa, a Folha lançou na sua página do Instagram uma espécie de enquete entre os seus seguidores, convidados a dizer qual é a sua expressão ou gíria preferida da língua portuguesa.

O resultado, como não poderia deixar de ser, foi muito divertido. Internautas de várias regiões do país contribuíram com saborosos regionalismos, como “bicho tabacudo”, que um deles afirma ser o modo de se referir a uma pessoa engraçada em Pernambuco, onde também se diz “vou chegar” quando se está prestes a ir embora de algum lugar.  É de lá também – e de outros estados do Nordeste – o uso de “arrodear”, variante mais antiga de “rodear”, que significa “andar em volta de” (na pronúncia local, o “o” se aproxima do “u”, sugerindo algo como “arrudeia”, mas a grafia permanece com “o”).

Também apareceu a palavra “pavulagem”, que, segundo o dicionário “Houaiss”, é de uso típico do Amazonas, onde se alterna com “pabulagem”. O termo é usado no sentido de “fanfarrice”, ou de pessoa dada a fazer bravatas. Nesse sentido, aparentemente deriva de “pábulo”/”pávulo”, formas derivadas de um diminutivo erudito de “pavão”, o que explicaria a ideia de “gabola”, “exibido”.  Vale notar que a ave dá origem também ao verbo “pavonear” (ou “pavonear-se”), de sentido semelhante.

Do mesmo leitor que enviou “pavulagem” veio “pitiú”, que, originalmente uma tartaruga do Amazonas, ganhou o sentido de “fedor”, “cheiro forte”, “odor desagradável”. Do Rio Grande do Sul foi lembrada a frase “Preteou o olho da gateada”, que é a forma gaúcha de dizer que “agora a porca torce o rabo” ou “a cobra vai fumar”.

De Minas Gerais, foi lembrado o célebre “trem”, que é marca registrada da região, além da interjeição típica dos mineiros, o igualmente célebre “uai”, que rivaliza em fama pelo país inteiro com o saboroso “oxente” do Nordeste, muitas vezes reduzido para “oxe”. As duas interjeições são formas de registrar espanto ou surpresa. “Oxente” vem de “ó gentes”, num processo fonético semelhante ao da forma “vixe” (de “vige”, Virgem Maria), que do Nordeste ganhou o sul do país com as levas migratórias que atravessaram o país. Em terras gaúchas, no entanto, para exprimir a mesma ideia, usam-se as interjeições “tchê” ou “bá” (esta também grafada “bah”), que os leitores não nos deixaram esquecer.

Houve quem se lembrasse de trazer uma expressão lusitana, que os portugueses usam quando querem se livrar de alguém que não os deixa trabalhar: “desampara-me a loja”.

Muitos dos usuários do Instagram que entraram na brincadeira lembraram ditados populares, como “Pau que nasce torto nunca se endireita”, “Diz-me com quem andas e te direi quem és”, “Cada cachorro que lamba sua caceta” [sic], “Cada um com seu cada um”, “Cada macaco no seu galho”, “Não há bela sem senão”, “O prevenido morreu de velho”, e houve um que se lembrou da frase de são Francisco de Assis, “É dando que se recebe”, cujo sentido original estimulava a troca de bens espirituais, que passou a ser usada, em sentido pejorativo, para fazer referência à troca de favores na política.

Algumas gírias muito conhecidas não poderiam deixar de aparecer. Foi o caso de “bicho”, “bacana”, “supimpa”, “fazer média” ou “falar groselha”. A palavra “meu”, frequente entre os paulistanos como forma de identificar o interlocutor em uma conversa, também foi lembrada. “Neca de pitibiriba” (ou “necas de pitibiriba”), para indicar negação enfática (“neca” é uma forma expressiva de “não”; “neca de pitibiriba” é “absolutamente nada”), e “putz grila” (ou simplesmente “putz”), que provavelmente deriva de um emprego interjetivo de “puta” (“puta que pariu!”), estiveram presentes.

Vale observar que alguns termos são fruto de nossa tendência a substituir uma palavra chula por outra que a deixe subentendida. É possivelmente a alteração eufêmica o que explica expressões como “bom para caramba” ou “bom para cachorro”, como ocorre com “paca” (no sentido de “para cacete” ou “para caralho”).

Apareceram ainda expressões que podem ser consideradas espécies de comandos pragmáticos, empregadas no diálogo: “Vá ver se eu estou na esquina!”, “Fui!”, “Eu, hein?”, “Hoje, só amanhã!”. Outras são lembranças do linguajar dos mais antigos, como “dar com os burros n’água”, “amigo da onça”, “fogo na roupa” ou “no tempo da Maria Caxuxa”.

Típicas do universo das redes sociais são as formas com grafia fonética (caso de “perereka” e “pacabá”), as hashtags, percebidas como verdadeiras palavras (por exemplo, #vaipassar, em clara alusão à pandemia de Covid-19), e termos híbridos em cuja base está o trocadilho, como “familícia”, “desMOROnando” ou “obriGADO” (seguida da figura de um boi), que dispensam explicações, além, é claro, de “bolsominion”, de sentido pejorativo (com base no inglês “minion”, “servo”, “lacaio”, “subordinado”), que é o seguidor acrítico de Jair Bolsonaro. Até mesmo um “e daí?” surgiu, em franco diálogo com o presidente da República, que recentemente usou a expressão de desdém ao comentar o fato de o Brasil já ter mais mortes decorrentes da Covid-19 que a China.

Alguns leitores levantaram questões linguísticas, como aquele que estranha um sujeito valentão, forte, brigão, com “excesso de masculinidade”, ser denominado “cabra-macho”, já que “cabra” é a fêmea do bode, e outro que traz uma explicação etimológica do significado do verbo “escafeder-se”.

Ao primeiro, vale dizer que o termo “cabra”, nessa acepção, certamente não se refere à característica de bravura do animal, mas ao fato de “cabra” denominar o “mestiço indefinido, de índio, negro ou branco, de pele escura” (segundo o dicionário “Houaiss”); o mesmo dicionário também informa ser “cabra” um “epíteto injurioso atribuído aos brasileiros pelos portugueses na época das lutas de emancipação política”).

Ao segundo, que conta a história de um padre jesuíta que, na época da catequização dos índios, fazia suas necessidades numa moita e, surpreendido por canibais, teria fugido em meio à operação, dando origem ao termo “escafeder-se” (fugir apressadamente), cabe apenas salientar que a história, embora crível, carece de comprovação. Os dicionários, por ora, atestam que o termo tem origem controversa. As etimologias populares geralmente são muito saborosas, rendem boas histórias, mas nem sempre são verdadeiras.

A palavra “saudade” surgiu várias vezes e, como se poderia esperar, acompanhada da ideia de que só a língua portuguesa consegue expressar esse sentimento. Difícil dizer isso, mas o fato é que a origem do termo também acolhe alguma dúvida. É mais provável que venha do latim solĭtas,ātis  (solidão, desamparo, retiro, unidade), mas pode ter sofrido influência do árabe ‘saudâ’ (melancolia, tristeza).

Saber se biscoito é bolacha e vice-versa, velho debate do eixo Rio-São Paulo, também foi um tema trazido ao Instagram. Alguém se lembrou de evocar um dos maiores poetas da língua portuguesa, Fernando Pessoa, autor da frase “Minha pátria é a língua portuguesa”, extraída do “Livro do Desassossego”.

Foi nessa tão conhecida frase que se inspirou Caetano Veloso quando compôs “Língua”, sua grande homenagem ao nosso idioma. “Quero sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”, entoa o músico brasileiro, fazendo reverberar toda a tradição da língua, que nos une numa mesma história.

Finalmente, alguém sugeriu ao “nosso brilhante gestor educacional” (@abrahamweintraub) que este lhe seria um dia propício para uma reflexão. Como diria Fernando Pessoa: “Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida”.

Vida longa à língua portuguesa! Cabe a nós, que nela aprendemos a amar e a sonhar, zelar por ela. A melhor maneira de fazer isso é usá-la sempre e muito, em toda a sua potencialidade.

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Por que, porque, porquê, por quê: empregue corretamente cada forma https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/11/25/por-que-porque-porque-por-que-empregue-corretamente-cada-forma/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/11/25/por-que-porque-porque-por-que-empregue-corretamente-cada-forma/#comments Sat, 26 Nov 2016 00:04:34 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1124 Porque, porquê, por que, por quê. Quatro grafias para o mesmo som, ou seja, um convite à confusão. Com um pouquinho de atenção, no entanto, você vai perceber que é muito simples distinguir uma da outra.

http://mais.uol.com.br/view/15982280

Porque, uma só palavra, sem acento, só se emprega como conjunção, ou seja, para ligar duas orações. Grosso modo, pode-se dizer que as conjunções explicitam as relações semânticas entre as ideias. “Porque” encabeça uma oração que exprime a causa ou a explicação de outra. Lembre-se de que causa é aquilo que provoca determinado fato, o que é diferente de explicação.

Dessa forma, temos “porque” como conjunção subordinativa causal (aparece em uma oração subordinada) e “porque” como conjunção coordenativa explicativa (aparece em uma oração coordenada). Quando falamos em subordinação e coordenação, estamos no domínio da sintaxe, ou seja, falamos do conjunto de relações entre as partes do texto. Como se vê, a conjunção exprime, mais do que relações semânticas, relações sintático-semânticas.

Muito bem. Nosso objetivo aqui é a ortografia, portanto, por ora, basta identificar a situação em que “porque” é uma conjunção (causal ou explicativa, tanto faz).

Veja os célebres versos de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa:   Adão portugues em foco

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

Nesse verso, “porque” é uma conjunção, pois liga duas orações, cada qual em um verso do poema. O fato de não ser o rio que corre pela aldeia do “eu lírico” é a causa de o Tejo não ser mais belo que o rio que corre pela sua aldeia. O raciocínio tem algo de capcioso, mas mostra que o belo é subjetivo, filtrado pela emoção.

É também a conjunção “porque” que aparece na canção dos Titãs “Porque Eu Sei que É Amor”. Observe que a causa aparece antes do fato principal. O autor da letra poderia ter dito “Sei que cada palavra importa porque eu sei que é amor”. A inversão, porém, confere ênfase a esse verso, que se repetirá e dará título à canção.

Nessa mesma letra, encontramos a substantivação dessa conjunção, ou seja, o porquê com acento. Essa grafia, acentuada, indica que a palavra é um substantivo. Pode, então, ser substituída por sinônimos como motivo ou causa.

Porque eu sei que é amor,/ Eu não peço nada em troca/ Porque eu sei que é amor,/ Eu não peço nenhuma prova

Mesmo que você não esteja aqui,/ O amor está aqui/ Agora/ Mesmo que você tenha que partir,/ O amor não há de ir/ Embora

Eu sei que é pra sempre/ Enquanto durar/ E eu peço somente/ O que eu puder dar

Porque eu sei que é amor,/ Sei que cada palavra importa/ Porque eu sei que é amor,/ Sei que só há uma resposta

Mesmo sem porquê, eu te trago aqui/ O amor está aqui/ Comigo/ Mesmo sem porquê, eu te levo assim/ O amor está em mim/ Mais vivo

Eu sei que é pra sempre/ Enquanto durar

Note que o “porque” causal pode ser substituído por “como” quando a oração está antes da principal, exatamente como ocorre nesses versos. Seria possível dizer “Como eu sei que é amor, eu não peço nada em troca”, “Como eu sei que é amor, eu não peço nenhuma prova”, “Como eu sei que é amor, sei que cada palavra importa”, “Como eu sei que é amor, sei que só há uma resposta”, mantendo o sentido de “porque”. Na passagem “mesmo sem porquê”, temos o substantivo, daí o acento circunflexo. Poderíamos dizer “mesmo sem motivo“. Na condição de substantivo, “porquê” admite anteposição de artigo e flexão de número, portanto podemos dizer, por exemplo, que cada um tem seus porquês (isto é, suas razões ou seus motivos) ou que o porquê de uma atitude nem sempre é claro (o porquê de = o motivo de).

INTERROGAÇÃO DIRETA E INTERROGAÇÃO INDIRETA

Por que é um advérbio interrogativo de causa, que serve para introduzir uma pergunta de natureza causal. Veja um exemplo, extraído do “Poema de Sete Faces”, de Carlos Drummond de Andrade:

Meu Deus, por que me abandonaste

Se sabias que eu não era Deus

Se sabias que eu era fraco?

Esse é o caso típico do “por que” da pergunta, pois aparece em uma interrogação direta, com ponto de interrogação no final. Nem sempre, porém, esse advérbio vai introduzir perguntas diretas. É ainda ele que se emprega nas chamadas interrogações indiretas (sem o ponto de interrogação). Quando dizemos, por exemplo, que gostaríamos de saber por que alguma coisa ocorreu, estamos, de modo indireto, fazendo uma interrogação. É, portanto, o mesmo advérbio (“por que”) que se emprega na frase. Geralmente pode ser substituído pela expressão “a razão pela qual”. Gostaria de saber a razão pela qual algo ocorreu. É a grafia “por que” (em duas palavras) que se se usa no verso da canção “Lenha”, de Zeca Baleiro.

Eu não sei dizer/ o que quer dizer/ o que vou dizer
Eu amo você,/ mas não sei o que/ isso quer dizer
Eu não sei por que/ eu teimo em dizer/ que amo você
se eu não sei dizer/ o que quer dizer/ o que vou dizer
Se eu digo pare,/ você não repare/ no que possa parecer
Se eu digo siga,/ o que quer que eu diga/ você não vai entender,
mas se eu digo venha,/ você traz a lenha/ pro meu fogo acender

No trecho “Eu não sei por que eu teimo em dizer que amo você”, podemos substituir “por que” por “a razão pela qual” (Eu não sei a razão pela qual eu teimo em dizer que amo você). Esse advérbio “por que”, se colocado no fim da frase, ganharia um acento. Imagine que os versos de Zeca Baleiro fossem estes: Eu teimo em dizer que amo você não sei por quê.  No final do período, a chamada posição tônica,  o advérbio é acentuado.

DISTINÇÃO FUNDAMENTAL: POR QUE/ PORQUE

Aparentemente, essas  são as grafias que mais ocasionam confusão. É muito comum que as pessoas usem no lugar do advérbio “por que” a conjunção “porque”, o que pode ter origem no fato de que o advérbio interrogativo nas chamadas interrogações indiretas também encabeça uma oração. Daí a parecer uma conjunção, é um passo curto. Convém, portanto, explicar esse ponto. Será o advérbio (por que), não a conjunção (porque), a palavra que introduz uma oração cuja função é ser o objeto direto da anterior. Complicado? Nem tanto. Vamos à canção de Zeca Baleiro:

Eu não sei/ por que eu teimo em dizer/ que amo você [aqui as barras separam as orações, não os versos]

A primeira oração, “Eu não sei”, requer um complemento (o que é que eu não sei?). O complemento do verbo “saber” (o seu objeto direto) é a oração “por que eu teimo em dizer” (a razão pela qual eu teimo em dizer). Essa oração exerce a função de objeto direto da anterior, enquanto a causal (introduzida por “porque”) exerce função de adjunto adverbial de causa. O objeto direto é um termo complementar, que poderia ser substituído por um substantivo (Eu não sei alguma coisa). Essa “coisa” pode expressar-se na forma de uma oração justaposta (sem conjunção, iniciada por um advérbio). Vejamos alguns exemplos:

Eu não sei como você chegou aqui. [como = modo de chegar]

Eu não sei quando você chegou aqui. [quando = tempo, momento da chegada]

Eu não sei onde você mora. [onde = lugar em que se mora]

Eu não sei por que eu teimo em dizer [por que = motivo da teimosia]

Observe que a mesma oração (“Eu não sei”) é completada por orações iniciadas por advérbios interrogativos (“como”, de modo; “quando”, de tempo; “onde”, de lugar; “por que”, de causa). Pode-se dizer que, nesse tipo de estrutura, “por que” (advérbio) permuta com outros advérbios (como, quando, onde). Já a conjunção “porque” é empregada em outro tipo de situação. Como ela introduz um adjunto adverbial, que não é um termo complementar, a oração principal do período tende a expressar uma ideia completa. Veja um exemplo: “Ele não foi ao cinema porque se sentiu mal”. [Ele não foi ao cinema – ideia completa/  porque se sentiu mal – circunstância de causa, ideia acessória, não complementar].

PORTUGUÊS BRASILEIRO E PORTUGUÊS EUROPEU

Existe diferença de grafia entre o registro brasileiro e o português no que se refere ao emprego dessas duas formas. O advérbio interrogativo de causa, que aqui se grafa em duas palavras, em Portugal é escrito como uma só palavra. Diga-se que o sistema de lá é mais sensato nesse ponto. Veja um exemplo, no célebre soneto de Camões “Busque Amor novas artes, novo engenho”:

Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n’alma me têm posto
um não sei quê*, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.

Observe como o “porquê” final é um advérbio (como “onde” e “como”). Na grafia portuguesa, é uma palavra só e recebe o acento por estar na posição tônica. Na grafia brasileira, teríamos “dói não sei por quê”.

OUTROS USOS

Por que, em duas palavras, também pode ser equivalente a “pelo qual” (e flexões). Assim: “O ideal por que lutamos é a liberdade” equivale a “O ideal pelo qual lutamos é a liberdade”.  Nesse caso, temos a preposição “por” seguida do pronome relativo “que” (o pronome relativo é responsável pela retomada de um termo já mencionado e deve ser antecedido de preposição se a regência de um verbo ou nome assim o exigir). Veja alguns exemplos:

Essa era a explicação de que eu precisava. [precisava de – de que precisava]

Esse foi o filme a que eu assisti. [assisti a – a que assisti]

Aqui está a mala com que ela viajou. [viajou com – com que viajou]

Aquela era a causa por que lutava. [lutava por – por que lutava]

Por que também pode ser a preposição “por” seguida do pronome indefinido “que”, o que ocorre em situações como estas: Por que caminho você veio? [por qual caminho] ou Não sei por que motivo ela não veio [por qual caminho].  O encontro da preposição “por” (regida por um verbo ou nome) com a conjunção integrante “que” (a que introduz as orações substantivas) é outra estrutura em que teremos a grafia “por que”: Ansiava por que aquela viagem terminasse logo [ansiava por algo/ algo = que aquela viagem terminasse logo].

DÚVIDAS FREQUENTES

Em títulos jornalísticos, é comum observarmos o emprego de “por que” em interrogativas indiretas elípticas. Vejamos um exemplo:

Por que as mulheres devem amamentar os bebês

Esse tipo de construção intitula um artigo em que se discorre sobre as razões pelas quais as mulheres devem amamentar os bebês. Em outras palavras, caberá ao texto responder à interrogação indireta representada pelo título, que aqui chamei de elíptica, pois nela se subentende uma oração principal que configuraria uma estrutura do tipo “Saiba por que as mulheres devem amamentar os bebês”. É comum as pessoas hesitarem quanto à pontuação desse tipo de frase. Costumam perguntar se caberia um ponto de interrogação. A resposta é “não”, exatamente por se tratar de interrogação indireta.

O acento de “por quê” é outra dúvida frequente. A  regra é que seja empregado quando a palavra aparece em posição tônica, ou seja, antes de pausa forte (representada por ponto final, ponto de interrogação, ponto de exclamação, reticências), ou seja, no fim do período. Ocorre, porém, que, antes das orações coordenadas adversativas (aquelas introduzidas pelo “mas”), ocorre uma pausa enfática que autoriza o emprego do acento, dado que a pronúncia se torna tônica. Assim: Não sei por quê, mas isso não me agrada.

Esse acento não se usa apenas em “por quê”. O princípio se estende ao “que” posto em posição tônica. Assim: Você vai comprar isso para quê? Vou usar esse chapéu não sei com quê. Vale lembrar aqui que o “que” pode sofrer o processo de substantivação e, nesse caso, também será acentuado (Seu olhar evocava um quê de mistério). Na expressão “não sei quê”*, usa-se o acento.

A conjunção porque pode aparecer em orações interrogativas. Isso ocorre quando a pergunta incide sobre a relação de causa e efeito, não sobre a causa em si, de modo que a resposta será na forma de “sim” ou “não”. Veja um exemplo: “Você não veio ao escritório ontem porque estava doente?”. Nesse caso, quem pergunta quer confirmar a relação de causa e efeito (foi esse o motivo de sua ausência?). A essa pergunta respondemos “sim” ou “não”. É diferente de perguntarmos “Por que você não veio ao escritório?”. Agora, indagamos a causa, empregando, portanto, o advérbio interrogativo de causa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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“Fora Temer” ou “Fora, Temer”? https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/08/23/fora-temer-ou-fora-temer/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/08/23/fora-temer-ou-fora-temer/#comments Tue, 23 Aug 2016 20:03:31 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1094 Em tempos de impeachment ou de golpe branco, a depender do ponto de vista adotado, temos convivido com a interinidade de um presidente que, ao que tudo indica, está bem longe de responder aos anseios da população. Quem diz isso são as ruas, que, ora menos ruidosas, ainda tentam empunhar cartazes com a mensagem que melhor sintetiza sua decepção com o rumo dos acontecimentos: “Fora, Temer”. Adão portugues em foco

Durante a Olimpíada, mesmo proibidos, os cartazes apareceram. Essa proibição, aliás, foi condenada pela Folha em editorial intitulado “Fora, censura”.

Como muita gente está deixando de usar a necessária vírgula que isola o vocativo, o tema chegou ao Português em Foco:

http://mais.uol.com.br/view/15967823

O vocativo, na gramática, é aquele elemento que indica a quem nos dirigimos no momento da fala. Sua regra de pontuação é das mais fáceis de memorizar, pois ele está sempre separado do restante do período, qualquer que seja a sua posição (no início, no fim ou no meio). Veja exemplos:

Faça o melhor que puder, querido!

Querido, faça o melhor que puder!

Venham, crianças, que é tarde!

O nome “vocativo” vem do latim, língua em que nomeava um caso (caso vocativo). Quando fazemos uma saudação a alguém, também usamos o vocativo: “Bom dia, João”, “Oi, Maria”, “Tchau, querida” etc.

É possível que um ponto de exclamação separe o vocativo do período. Veja um trecho do poema “Navio Negreiro”, de Castro Alves, magistralmente musicado por Caetano Veloso.

 

Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor Deus!/ Se é loucura… se é verdade/ Tanto horror perante os céus…

Ó mar, por que não apagas/ Co’a esponja de tuas vagas/ De teu manto este borrão?…

Astros! noite! tempestades!/ Rolai das imensidades!/ Varrei os mares, tufão!…

(…)

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo… / Andrada! Arranca este pendão dos ares!/ Colombo! Fecha a porta de teus mares!

Também vale observar que o vocativo pode ser antecedido de uma interjeição que lhe é própria – é até chamada de “ó” do vocativo. É exatamente o que aparece no trecho “Ó mar, por que não apagas…”. Nesse caso, não há vírgula. Veja outro caso semelhante, este no poema “Mar Português”, de Fernando Pessoa:

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Esse “ó” é mais comum no português falado em Portugal; no Brasil, acabou sendo substituído por um “ô”, sobretudo no registro informal: “Ô meu chapa, eu estou com pressa!”.

Seria injusto, porém, dizer que, no Brasil, não se usa o “ó” do vocativo. Há uma bela canção de Gilberto Gil, intitulada “Meu amigo, meu herói”, que foi gravada por Zizi Possi, em que esse uso aparece. Aliás, nessa canção há um curioso jogo entre o “ó!” do vocativo e a interjeição “oh”, de sentido amplo (surpresa, desejo, dor, tristeza etc.). Ouça:

Ó meu amigo, meu herói
Oh, como dói saber que a ti também corrói
A dor da solidão
Ó meu amado, minha luz
Descansa tua mão cansada sobre a minha
Sobre a minha mão
A força do universo não te deixará
O lume das estrelas te alumiará
Na casa do meu coração pequeno
No quarto do meu coração menino
No canto do meu coração espero
Agasalhar-te a ilusão
Ó meu amigo, meu herói
Oh, como dói
Oh, como dói

Na canção de Chico Buarque que ilustra o vídeo, “Acorda, amor”, “amor” é forma carinhosa de chamar a esposa – aliás forma muito usada pelos casais de namorados e enamorados, que serve para qualquer gênero. Alguns casais inventam formas próprias de se chamar um ao outro. Não importa o que seja, sempre será um vocativo.

“Acorda, amor”, de Chico Buarque, merece que se recorde a sua letra inteira. Com muita maestria, o compositor cria metáforas para driblar a ação dos censores da ditadura. Veja o uso que ele faz da palavra “dura” (no lugar de “ditadura”) e divirta-se com o irônico estribilho (“Chame o ladrão, chame o ladrão!”). Quando a polícia é o invasor, melhor mesmo chamar o ladrão!  Veja os vocativos grifados no texto.

 

Acorda, amor,/ Eu tive um pesadelo agora/ Sonhei que tinha gente lá fora

Batendo no portão, que aflição/ Era a dura, numa muito escura viatura/

Minha nossa, santa criatura,/ Chame, chame, chame lá

Chame, chame o ladrão, chame o ladrão

Acorda, amor,/ Não é mais pesadelo nada

Tem gente já no vão de escada/ Fazendo confusão, que aflição/

São os homens/ E eu aqui parado de pijama

Eu não gosto de passar vexame/ Chame, chame, chame

Chame o ladrão, chame o ladrão

Se eu demorar uns meses,/ Convém, às vezes, você sofrer, /Mas, depois de um ano, eu não vindo

Ponha a roupa de domingo/ E pode me esquecer

Acorda, amor, Que o bicho é brabo e não sossega/ Se você corre, o bicho pega

Se fica, não sei não/ Atenção!

Não demora/ Dia desses, chega a sua hora/ Não discuta à toa, não reclame

Clame, chame lá, clame, chame/ Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão

(Não esqueça a escova, o sabonete e o violão)

O teste rápido de pontuação entrará no próximo post.

 

 

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