Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O fígado e o cérebro https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/07/21/o-figado-e-o-cerebro/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/07/21/o-figado-e-o-cerebro/#respond Tue, 21 Jul 2020 15:20:52 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/Bolsonaro-cloroquina-.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1524 Na recente polêmica desencadeada por um texto de Hélio Schwartsman, intitulado “Por que torço para que Bolsonaro morra”, entre os muitos pitos que o autor  levou de seus colegas articulistas, chama a atenção o de um deles, que o acusa de ter “argumentado com as vísceras”, nas quais, ninguém duvida, estariam entranhados nossos piores sentimentos.

Aparentemente, as vísceras – coração, útero, estômago, pâncreas, intestinos, fígado – são sede dos nossos mais censuráveis e mórbidos desejos. Geralmente se atribui ao fígado o sentimento de vingança (um sujeito “de maus fígados” é vingativo, genioso), embora o termo também seja um sinônimo de índole, bravura ou intrepidez (aquele sujeito “tem fígado”).

Não parece ser, no entanto, desse sentido figurado do “fígado” que deriva o adjetivo “figadal”, usado na expressão “inimigo figadal”, cuja origem, salvo engano, estaria nos duelos entre espadachins. Para ferir de morte o inimigo, era preciso mirar no seu fígado. Essa história, se verdadeira, parece fazer mais justiça ao fígado, que, enfim, não seria um mero produtor de ódio, maldade ou argumentos ruins, mas um ponto fraco, cujo ferimento pode levar à morte. De qualquer forma, o fígado, talvez por secretar a bile, substância amarga e escura, ganhou a conotação negativa e é frequentemente associado ao mau humor.

O texto de Schwartsman, no entanto, nada tem a ver com essas misteriosas entranhas malignas, embora, como se viu, tenha ferido a suscetibilidade de vários articulistas do jornal, muito preocupados em deixar claro que têm incontestes virtudes morais. O que faz o colunista é um exercício de raciocínio, que, aliás, vem explicado por meio da expressão “nada pessoal”, logo no primeiro parágrafo. O autor escreveu com o cérebro mesmo, gostemos ou não de seus argumentos e da corrente filosófica em que se engajam. Nada existe nas suas palavras que sugira ódio ou mesmo real desejo de ver a morte de outrem. Para quem “não entendeu a piada”, como se diz, ou fingiu que não entendeu, ele escreveu dias depois o texto “Esperando o japonês da Federal”.

Enquadrar o autor na malfadada Lei de Segurança Nacional por causa de um exercício filosófico não parece sequer imaginável à luz da razão (a menos que o texto legal sofra algumas alterações, como as arroladas por Claudia Tajes em sua divertida coluna no caderno Ilustrada), menos ainda se considerarmos o histórico do ofendido, cujas manifestações públicas são assustadoramente amorais (ou será que todo o mundo já se esqueceu do “e daí?” diante do aumento do número de casos de Covid-19, da indiferença ante a morte da população e de toda a escatologia que, aliás, o transformou em “mito” nas redes sociais e fenômeno eleitoral?).

Nem que desejasse, Schwartsman conseguiria a proeza de igualar-se ao dito-cujo na produção de discursos de ódio –ao que tudo indica, pertencentes a outro gênero, que não o filosófico. Se cometeu algum erro, talvez tenha sido a escolha do título do texto, considerado o lamentável fato de que muita gente não vai além dele, como comenta uma leitora, que, cristã, reconhece que seu incômodo ante o título se desfez depois da leitura do texto.

De resto,  ao que parece, faltou interpretação de texto e sobraram manifestações de moralismo e bom-mocismo, algumas das quais bem dramáticas, o que nos faz pensar que o fígado, se é verdade que produz argumentos ruins, também pode produzir leituras equivocadas.

 

 

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Um argumento frágil https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/09/18/um-argumento-fragil/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/09/18/um-argumento-fragil/#comments Mon, 18 Sep 2017 21:44:23 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1214 Recentemente, o médico Drauzio Varella manifestou em uma de suas colunas seu repúdio ao crime de estupro. Conhecedor que é do ambiente carcerário, lembrou aos leitores que, na cadeia, esse crime é rechaçado com violência pelos presos a ponto de os estupradores terem de ser mantidos em isolamento sob pena de serem trucidados pelos outros criminosos.

Bem ou mal, isso não parece ser novidade. Mesmo quem não tem nenhuma familiaridade com penitenciárias já ouviu dizer que existe um código interno entre os presidiários e que a convivência nos presídios está longe de ser fácil.

Até aí, tudo bem. O problema surge quando se faz o raciocínio de que, se até os presidiários, entre os quais estarão homicidas de vários quilates, condenam o crime de estupro – a ponto de trucidarem os estupradores recém-chegados (ou de estuprá-los também, como se lhes aplicassem a pena de talião, fazendo algum tipo de justiça) –, isso quer dizer que a sociedade como um todo repudia fortemente esse tipo de crime.

Esse foi o raciocínio de Hélio Schwartsman, que escreveu isto: “Ora, se até nos presídios, onde vige uma moral permissiva em relação a um amplo rol de delitos, o estupro é visto como algo imperdoável, a situação não pode ser muito diferente nos segmentos sociais que abraçam éticas mais kantianas”, em alusão ao texto de Varella, que seria a comprovação disso.

A princípio, parece coerente, mas esse não é um raciocínio que se aceite assim tão facilmente quando se leem notícias como as que têm estampado as páginas dos jornais nos últimos tempos, quando casos de estupro vêm ganhando mais visibilidade.

Ao desenvolver seu raciocínio, o articulista chega a dizer que a frase “a mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada” pode ser interpretada “em termos probabilísticos”, ou seja, “mulher que usa trajes sumários tem mais chance de sofrer violência sexual”. A referida frase remonta a uma pesquisa feita pelo Datafolha, que mensurava a percepção dos brasileiros acerca da responsabilidade da mulher nesse tipo de crime. O resultado foi assustador: grande parcela de homens e de mulheres atribuiu o delito ao comportamento feminino e às roupas provocativas usadas pelas mulheres. Donde se depreende que, na visão dessas pessoas, cabe à mulher “não se expor”, ser recatada ou algo do gênero. Mais ou menos como se o estupro fosse um fenômeno da natureza e à mulher coubesse evitá-lo tanto quanto possível.

A pesquisa aferiu a percepção do senso comum, que, como podemos constatar, está permeada pelo machismo ou pela chamada “cultura do estupro”, que o articulista diz duvidar que exista. Creio que a expressão esteja ligada a uma suposta naturalização do estupro (em todas as suas modalidades), ao fato de, ao contrário do que ele disse, a sociedade como um todo não rechaçar tanto assim o delito. “Tá com vontade? Vai lá, estupra, mas não mata”, citando de memória o conhecido político brasileiro Paulo Maluf. Uma versão mais moderna e ainda mais grotesca coube ao deputado Jair Bolsonaro ao se dirigir à deputada Maria do Rosário: “Ela não merece [ser estuprada] porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece“. Que significa dizer “eu não sou estuprador, mas, se fosse (…)”? Significa que poderia ser sem nenhum problema. E mais: significa que o estuprador escolhe a mulher pelos atrativos dela, ou seja, ele não é um psicopata ou um criminoso, é apenas um homem como outro qualquer. E o pior de tudo é que há mulheres que, embora se apresentem como indignadas, contabilizam os assédios (não estupros, é claro) de que foram vítimas com certo orgulho, alimentando (talvez sem perceber, por mera vaidade ou ingenuidade) essa percepção de que, no fundo, um assédio tem um componente de elogio. É o “merecimento” de que fala Bolsonaro.

Enfim, se a frase da pesquisa Datafolha fosse interpretada “em termos probabilísticos”, hipótese aventada pelo articulista, seria necessário saber que roupas usou e que atitudes a mulher teve antes do estupro. Ora, a simples possibilidade de indagar isso da mulher pressupõe um julgamento moral. Ou não?

O noticiário, no entanto, não nos deixa ignorar a realidade: esse tipo de crime, na maior parte das vezes, ocorre dentro de casa, é cometido por pessoas em quem a vítima deposita confiança. Veja-se a estatística dos casos de estupro de pessoas com deficiência, por exemplo, em matéria assinada pela jornalista Cláudia Colluci na Folha.

Mas voltemos à “prova cabal” de que o estupro é um crime amplamente repudiado pela sociedade, ou seja, ao código de conduta dos presidiários. É, no mínimo, estranho acreditar que, num ambiente em que homicidas são respeitados, estupradores sejam repudiados porque seu crime é “imperdoável”. Seria preciso acreditar que, no presídio (masculino), a mulher é mais respeitada do que fora dele. Aqueles homens ali trancafiados têm mais respeito pela mulher do que os que estão do lado de fora. Será?

Infelizmente, parece muito mais plausível a ideia de que o estupro nessa comunidade seja visto como um crime “menor”, um crime de segunda categoria, cometido por um “macho menos macho”. Menos macho porque não enfrentou outro macho, menos macho porque agrediu um ser mais fraco, menos macho porque não consegue “pegar mulher” de outro jeito, menos macho, portanto mais fraco, vergonha do grupo, e, portanto, o alvo escolhido para o escoamento da violência represada. O estuprador não merece o respeito dos outros porque não cometeu um “crime de verdade”. Não mete medo nos machos “de verdade”. No mínimo, seria importante pesquisar os critérios desse código de conduta antes de tirar conclusões apressadas que em nada contribuem para um convívio mais civilizado entre todos os seres humanos. Obviamente, negar a cultura do estupro não é o caminho para combatê-la.

Vale lembrar que as mulheres se desdobram para visitar seus maridos, namorados, filhos, netos, irmãos na cadeia. Submetem-se à revista vexatória, a todo tipo de humilhação e, em caravanas, organizam-se para levar semanalmente comida e artigos de higiene ou roupas de que os homens necessitam. Transformam a própria rotina em função do homem que está preso, mas, quando são elas, as mulheres, que vão para a cadeia, não há homem fazendo fila na porta do presídio, levando comida ou agrados, submetendo-se a humilhações, gastando o próprio dinheiro com elas ou mesmo fazendo visita íntima. Como acreditar na benevolência ou no grau evolutivo superior desses machos? As mulheres, sim, educadas para o amor e a fidelidade, fazem todo e qualquer sacrifício por esses e outros homens. Dentro e fora da prisão.

 

 

 

 

 

 

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Fuvest 2016: prova de português priorizou interpretação de textos https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/11/30/fuvest-2016-prova-de-portugues-priorizou-interpretacao-de-textos/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/11/30/fuvest-2016-prova-de-portugues-priorizou-interpretacao-de-textos/#comments Mon, 30 Nov 2015 20:28:57 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=888 Com 18 questões de português, a maioria das quais voltada para a interpretação de textos, o exame da primeira fase da Fuvest continua valorizando a capacidade do candidato de aplicar seu conhecimento linguístico para ler portugues em diaadequadamente. O que pode parecer fácil à primeira vista – afinal, as pessoas sempre acham que entenderam o que leram –  é, na verdade, um grande desafio (e não nos deixam mentir as incontáveis confusões de que andam repletas as redes sociais).

A leitura competente depende, é claro, da atenção, mas isso não basta. Requer também a compreensão das estruturas linguísticas e do significado das palavras, a percepção dos recursos figurativos da linguagem e, mais ainda, o entendimento das referências que atuam latentes em quaisquer processos comunicativos. Não há como treinar um estudante para responder a esse tipo de questão, mas há como desenvolver sua competência no decorrer do processo educacional. Ao que tudo indica, é isso o que a Fuvest tem valorizado.

A prova privilegiou o dinamismo da linguagem, ora cobrando do candidato que relacionasse texto e imagem, ora fazendo-o perceber que o contexto de uma afirmação pode modificar o seu sentido literal. Saber a diferença entre um provérbio e um pensamento comum, repetido à exaustão, relacionar provérbios entre si, mostrando que muitos carregam mensagens semelhantes e outros tantos exprimem exatamente o contrário dos primeiros, tudo isso obriga o estudante a pensar sobre a linguagem, a fazer um exercício de reflexão sobre o seu instrumento de comunicação e expressão.

O ótimo texto de Boris Fausto e o fragmento do saboroso livro de Paulo Rónai convidam à reflexão, um sobre a propaganda, outro sobre aspectos antropológicos da linguagem, tema caro ao húngaro que aprendeu sozinho o português. Em uma das questões, o estudante deveria relacionar o texto de Boris Fausto a trechos d’ “O Príncipe”, de Maquiavel, explicitando a importância do repertório cultural para a competente leitura de um texto. Até a biologia apareceu na prova, numa questão de literatura que tratava da bexiga (trecho da obra “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, um dos nossos “clássicos” da modernidade), acenando com a interdisciplinaridade, característica do Enem.

Foi do romance de Jorge Amado que se extraiu a única questão de correção gramatical, em que, diga-se, há o reconhecimento da importância desse tipo de saber no âmbito dos estudos linguísticos. A expressão “erro gramatical” aparece com todas as letras no enunciado de uma das perguntas.

Para bem responder a essa questão, o estudante deveria ter conhecimento da equivalência entre o pretérito mais-que-perfeito simples (morrera) e o composto (havia/ tinha morrido) e entre as conjunções “mas” e “no entanto”, ambas adversativas. Precisava saber distinguir “tampouco” (também não) de “tão pouco” (muito pouco) e conhecer a regência do verbo “esquecer”, bem como o emprego das preposições antes dos pronomes relativos.

Crítica literária, história da literatura e literatura comparada também foram temas abordados. Machado de Assis, mesmo quando não aparece diretamente, é presença obrigatória na Fuvest (e na nossa vida também).

A literatura portuguesa apareceu com o último romance de Eça de Queiroz, “A Cidade e as Serras”, uma das leituras obrigatórias, e a poesia veio representada por outro dos nossos grandes nomes, Carlos Drummond de Andrade, que fecha com chave de ouro a bela prova de português da Fuvest, dando ensejo não só à interpretação do poema como também ao entendimento do emprego sutil da adversativa que liga os versos “Itabira é apenas uma fotografia na parede/ Mas como dói!”.

 

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