Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Uma conversa (gramatical) sobre laranjas https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/02/19/uma-conversa-gramatical-sobre-laranjas/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/02/19/uma-conversa-gramatical-sobre-laranjas/#respond Tue, 19 Feb 2019 05:09:31 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/Bolsonaro-laranja-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1339 O termo “laranja” tem estado nas páginas da Folha nas últimas semanas em razão de uma série de reportagens que vêm descortinando um esquema, usado pelo PSL, para fazer uso fraudulento das verbas públicas do fundo partidário por meio de candidaturas de fachada.

Como não poderia deixar de ser, a palavra em si despertou a curiosidade do leitor. Os dicionários há algum tempo registram o termo na acepção de “homem tolo, ingênuo”. Houaiss atualizou esse sentido, acrescentando o traço de “indivíduo nem sempre ingênuo, cujo nome é utilizado por outro na prática de diversas formas de fraudes financeiras e comerciais, com a finalidade de escapar do fisco ou aplicar dinheiro de origem ilícita”.

Essa acepção fundamenta a expressão “candidato laranja” (ou mesmo o substantivo composto “candidato-laranja”), ainda que a criatividade dos políticos quando o assunto é fraude esteja a pedir novas atualizações lexicográficas. Do ponto de vista morfológico, vale notar que o segundo elemento (“laranja”) é um substantivo que atua como determinante específico, exatamente como “fantasma” em “conta fantasma” (ou “conta-fantasma”).

“Laranja”, nesse caso, não diz respeito à cor e talvez nem mesmo à fruta. Exatamente por não se tratar de cor, não se sujeita à concordância dos substantivos que nomeiam cores, os quais permanecem invariáveis.

Quem não se lembra das bicicletas laranja  do projeto Bike Sampa? Muito bem. Quando se refere à cor (cor de laranja), de fato, o substantivo “laranja”, usado como adjetivo, permanece invariável. Bicicletas laranja é o mesmo que bicicletas cor de laranja. Vale ainda lembrar que, mesmo quando identifica uma cor, “laranja” pode ter plural, o que ocorrerá caso seja usado no sentido de “tons de laranja” (Na decoração, usou com parcimônia os laranjas e os vermelhos).

Que não se confunda “laranja” na acepção de cor com “laranja” na acepção de indivíduo que se presta à prática de diversos tipos de fraude. Este último é um substantivo e, como tal, tem flexão de número.

Ainda que, à semelhança de “empresa-fantasma”, sejam admitidas as grafias com hífen e sem hífen, sendo o segundo elemento um determinante específico, é mais seguro o uso do composto com hífen, de modo que não paire dúvida sobre as possibilidades de flexão.

O substantivo composto candidato-laranja, por ser formado de dois elementos variáveis, admite o plural candidatos-laranjas. Podendo o segundo substantivo ser interpretado como um elemento que limita o anterior, é também lícita a flexão apenas do primeiro elemento do composto (candidatos-laranja).

Quanto às candidaturas em si, o ideal é que se diga que são candidaturas de laranjas, ou seja, candidaturas de indivíduos ingênuos – ou não necessariamente ingênuos – que emprestam a própria identidade a outros para fins ilícitos.

A concordância parece ser mais fácil de resolver do que aquilo que mais espicaça a curiosidade do leitor, ou seja, a origem do termo. Por que, afinal, o nome de uma fruta tão saborosa assumiu esse sentido pejorativo?

Hipótese sobre a origem do termo

As várias hipóteses que andam pela internet não parecem mais que fruto da imaginação e, de tão fantasiosas, não se sustentam. Não é difícil que o atual sentido de “laranja” seja uma extensão do sentido anterior de “indivíduo tolo, otário”, dado que este se deixa usar por alguém mais esperto.

O que permanece incógnito é o elo entre o simplório, tolo, aparvalhado e a laranja. A meu ver, enquanto estivermos em busca de uma associação semântica com a fruta, dificilmente sairemos do atoleiro da dúvida.

As pessoas tendem a esquecer-se de que a língua tem outros mecanismos de criação de palavras para além das analogias e metáforas, embora estas sejam talvez os mais frutíferos.

Convido o leitor que tiver paciência a fazer um raciocínio um pouco diferente, baseado, é claro, em comportamentos observáveis na língua. Aviso aos mais sensíveis que terei de usar alguns termos de baixo calão a fim de explicitar o meu raciocínio.

Para lançar mão de exemplos facilmente acessíveis na memória, vamos, de início, ao termo “paca”, usado, na linguagem popular, no sentido de “grande quantidade” ou de intensidade (Fulano fala paca!), que, segundo o próprio Houaiss, nasce de uma alteração de natureza eufêmica (própria de eufemismo) das expressões chulas “para caralho” ou “para cacete”, ambas também empregadas como intensificadores. A forma “paca” ameniza o tabuísmo, o mesmo valendo para as expressões “para caramba”, com uso da interjeição de espanto de origem espanhola, e “para cachorro” (Fala para caramba! Fala para cachorro!). Pergunta-se: o que é que caralho, cacete, caramba e cachorro têm de comum? Todas têm três sílabas, são paroxítonas e iniciadas pela sílaba “ca-”. Pareceu estranho?

O leitor se lembrará por certo de ter ouvido ou dito a interjeição “cacilda!” diante de uma situação de espanto, admiração ou impaciência. Se procurar saber quem foi a tal Cacilda que deu origem à expressão, é provável que não chegue a lugar algum. Por outro lado, se observar a semelhança entre cacilda e cacete, estará no rumo certo. A semelhança formal faz que se use um termo no lugar de outro com transferência de significado, mais uma vez evitando o uso do palavrão.

O recurso não é nada novo na língua: “diacho”, por exemplo, é uma alteração de “diabo”, que, em outros tempos, era palavra a evitar. Muito bem. E o laranja? Onde é que ele entra nessa história?

A hipótese que podemos formular nessa linha de raciocínio é que, de início, se tenha usado o termo “laranjão”, com o sufixo “-ão” de aumentativo com matiz afetivo (o mesmo que ocorre em toleirão, parvalhão, bobalhão, paspalhão, bestalhão etc.) e que esse termo se tenha confundido com o informal “janjão”, que, embora não esteja nos dicionários regulares, aparece definido no Dicionário Informal  como “um cara abestalhado e lento para entender as coisas de uma forma geral, fácil de ser ludibriado”, o que demonstra ter existência na língua.

Ainda mais curioso é lembrar que Janjão é o nome de um personagem do conto “Teoria do Medalhão”, de Machado de Assis, que, ao atingir a maioridade, ouve do pai uma série de conselhos sobre o melhor caminho a seguir para ter sucesso na vida. O conto é uma das joias do bruxo do Cosme Velho, que, sob a forma de um diálogo, põe em cena um jovem e seu pai, a este cabendo encarnar a sua incansável veia irônica.

O termo “medalhão”, hoje meio fora de moda, descreve, de modo pejorativo, o indivíduo que obteve fama e que passou a viver em função disso ou, mais especificamente, um indivíduo de “infundada notoriedade” (Houaiss).

O Janjão de Machado de Assis é o protótipo do sujeito anódino, medíocre, que, por isso mesmo, na visão do próprio pai, tem toda a disposição para se tornar um verdadeiro “medalhão”:

Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança, No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas ideias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.

O sentido dado a “janjão”, somado à semelhança fônica com “laranjão” parece trazer uma pista. Teríamos ainda de entender por que “laranjão”, sendo válida a hipótese, teria recuado para “laranja”. Esse, no entanto, não seria o maior dos problemas.

Veja-se, para tanto, o que ocorreu com o nome da doença chamada “sarampão”. Popularmente percebido como aumentativo (embora não o fosse), o termo, por derivação regressiva, recuou para um suposto grau positivo na forma que se consagrou: sarampo. E hoje pode até parecer estranho dizer que “sarampo” veio de “sarampão”.

Pode-se dizer que algo semelhante, embora não idêntico, ocorreu com o termo “lanterninha”, claramente um diminutivo de “lanterna”. Era desse modo que se chamavam os funcionários das salas de cinema que, com uma pequena lanterna, ajudavam os retardatários a encontrar um lugar para se sentar depois que o filme já tinha começado e as luzes estavam apagadas. Quem precisava do lanterninha era quem chegava atrasado. Está talvez aí a origem do uso do termo para fazer alusão ao que chega em último lugar num campeonato esportivo. Detalhe: nessa acepção, as pessoas passaram a usar o termo no grau positivo (lanterna), rechaçando o sufixo de diminutivo, novamente num processo de derivação regressiva.

E mais: o termo “lanterna”, nesse sentido, já não está restrito à área esportiva, embora predomine nesse campo. Veja este exemplo, que, aliás, nos reconduz ao laranjal da política: “Outra candidata campeã de dinheiro do PSL, mas lanterna de votos, é Mila Fernandes. Teve 334 votos a deputada federal”.

Ora, se a hipótese for válida, “janjão”, por semelhança fônica, terá resultado em “laranjão” (com sufixo “-ão”, de matiz afetivo) e este terá regredido a um grau positivo, tendo passado a “laranja”(como sarampão > sarampo). Assim: janjão > laranjão > laranja.

Ainda que não tenhamos nenhuma comprovação disso – daí estarmos aqui falando meramente em hipótese –, o raciocínio pode servir para lembrar que parte do fascínio da língua está nas surpresas que ela põe no caminho de quem se dedica ao seu estudo.

 

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Com emoção e ironia, Machado de Assis tratou da escravidão https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/11/20/870/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/11/20/870/#comments Fri, 20 Nov 2015 10:54:52 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=870 Machado de AssisNeste Dia da Consciência Negra, os leitores do blog estão convidados a relembrar dois contos de Machado de Assis (1839-1908), “Pai contra Mãe” e “O Caso da Vara”, cujo tema é a escravidão.

 

Pai contra Mãe (trecho inicial)

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas.

Mas não cuidemos de máscaras. O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal.  [continua]

O Caso da Vara (trecho inicial)

Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano, foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava, finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não, lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria coisa útil. Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor:

Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.

– Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom. A verdadeira grandeza é chã. Moço…

Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. [continua]

Nesses dois textos, o pano de fundo é o cotidiano da escravidão, que o autor mostra com a naturalidade de quem apenas compõe o cenário de uma história. Usa a ironia na escolha dos elementos descritivos, jogando para um aparente segundo plano elementos essenciais ao desenvolvimento do enredo e, sobretudo, ao seu desfecho. Adão segunda edicao thais

Em ambas as histórias, Machado critica, sem estardalhaço ou sentimentalismo, a torpeza da escravidão. Põe em cena personagens marcados pela frouxidão de caráter, cada qual prestes a sacrificar a ética em nome de seus interesses — afinal, paira uma atmosfera de amoralidade, para dizer o mínimo, numa sociedade que não se envergonha da escravidão.

Em “Pai contra Mãe”, a trama é centrada num homem que, sem inclinação para o trabalho, vivia de capturar escravos fugidos, ofício tão legítimo quanto a moral vigente à época; em “O Caso da Vara”, o personagem que conduz a linha narrativa é Damião, um seminarista fugitivo que precisa dos favores de uma certa viúva, amiga de seu padrinho, a única pessoa que poderia interceder junto a seu pai para devolver-lhe a liberdade sequestrada pela vida religiosa, para a qual, por certo, lhe faltava a vocação.

A obrigação de ir para o seminário para satisfazer a família também é um tema abordado por Machado também em “Dom Casmurro”, em que a promessa de entregar o filho ao seminário é renegociada e, suprema ironia, Bentinho é trocado por um escravo, a quem não caberia escolha. Esse é mais um componente da época.

Em ambos os contos, Machado habilmente põe em confronto pessoas que vivem situações semelhantes, mas que se encontram em posições antagônicas na escala social.

Em “Pai contra Mãe”, como resume o próprio título, um pai e uma mãe vivem o dilema de desejar salvar o próprio filho da desgraça. O pai é o “caçador” de negros fugidos, que precisa do dinheiro da gratificação para evitar que seu filho recém-nascido vá para a roda dos enjeitados; a mãe é a escrava grávida, a “caça” que será entregue à sanha de seu proprietário e espancada até abortar o filho.

Em “O Caso da Vara”, são dois jovens, o seminarista Damião e a negra Lucrécia, definida como uma “cria” da casa da viúva que, sob a batuta da vara de marmelo, ensinava meninas como ela a fazer renda de bilro. A situação da jovem, advertida por ter achado graça nas pilhérias do rapaz (o rosto já marcado de castigos anteriores), comoveu em silêncio o seminarista, que prometeu a si mesmo proteger a menina de novas punições. Cumprir a promessa, todavia, era arriscar-se a perder o apoio da viúva, imprescindível na matemática dos interesses e da política familiar.

Nos dois contos, a compaixão cede ao egoísmo  e a moral se ajusta às circunstâncias. O final feliz de um é a tragédia do outro, como, aliás, a vida real, diferentemente dos romances românticos da segunda metade do século 19, nos lembra todos os dias.

Boa parte dos críticos vê nas narrativas curtas da segunda fase do trabalho de Machado seu momento de auge, quando atinge a depuração do estilo, o melhor da fina ironia e da escolha precisa dos termos. As narrativas condensadas parecem favorecer a estratégia de elaboração do enredo — a imaginação prodigiosa domada pela perspicácia da razão.

[texto originalmente publicado no caderno “Fovest”, da Folha de S.Paulo, em 12/1/2010]

 

 

 

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Musa libérrima, exata e audaz https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/28/musa-liberrima-exata-e-audaz/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2015/08/28/musa-liberrima-exata-e-audaz/#respond Fri, 28 Aug 2015 18:30:29 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=820 Hoje teremos Manuel Bandeira, Castro Alves e Machado de Assis. O fio que conduzirá a leitura dos textos será não propriamente o seu tema, mas, antes, o emprego do superlativo, um dos graus do adjetivo, que vamos examinar aqui.

O poema de Bandeira, “Improviso”, é dedicado a Cecília Meireles, sua amiga e companheira de ofício. Desde o título escolhido, o poeta já antecipa uma das ideias centrais do texto: a liberdade. Diz ele: final sala de leitura

Cecília, és libérrima e exata / Como a concha. / Mas a concha é excessiva matéria, / E a matéria mata. // Cecília, és tão forte e tão frágil / Como a onda ao termo da luta. /Mas a onda é água que afoga: / Tu, não, és enxuta. // Cecília, és, como o ar, / Diáfana, diáfana. / Mas o ar tem limites: / Tu, quem te pode limitar? // Definição: / Concha, mas de orelha; / Água, mas de lágrimas; / Ar com sentimento. / – Brisa, viração / Da asa de uma abelha.  

Vale lembrar que  o título, “Improviso”, pode remeter a um tipo de composição musical de caráter livre e que o próprio poeta opta por liberdade formal na composição dos versos.

A ideia de liberdade, que persiste no decorrer do texto,  aparece no primeiro verso na forma do superlativo absoluto sintético do adjetivo “livre” (“és libérrima e exata”, numa associação de imagens que pode ser percebida como paradoxal: ser exato e ser livre ao mesmo tempo).

Essas características que o poeta vê em Cecília Meireles podem ser atribuídas ao próprio fazer poético: que é fazer poesia, senão ser livre e exato, forte e frágil, sem limites, exprimir a dor das lágrimas, o sentimento? Fica para o leitor um mote de reflexão.

Voltemos aos superlativos. O romântico Castro Alves também fez uso da forma “libérrima”. Para o vate romântico,  a poesia é uma “musa libérrima”, à qual ninguém pode calar. No seu belíssimo “Navio Negreiro”, o poeta a invoca para denunciar o crime da escravidão. Vejamos uma estrofe do poema:

Quem são estes desgraçados / Que não encontram em vós / Mais que o rir calmo da turba / Que excita a fúria do algoz? / Quem são?  Se a estrela se cala, / Se a vaga à pressa resvala / Como um cúmplice fugaz, / Perante a noite confusa… / Dize-o tu, severa Musa, / Musa libérrima, audaz!…

Os dois poetas, em textos e contextos bastante diversos, empregaram o superlativo “libérrima”, um termo de feição erudita, não muito ouvido na linguagem do dia a dia. O superlativo é a intensificação do grau de um adjetivo. O nome dado pela gramática tradicional a esse tipo de superlativo  não está isento de alguma controvérsia, como mostra o gramático Said Ali, que nos lembra ser praticamente impossível saber qual é o último grau a que se eleva uma qualidade, daí a impropriedade de chamar o superlativo de “absoluto”. Por esse motivo, ele opta pelo termo “intensivo” no lugar de “absoluto”.

Você já deve ter notado que a maior parte desses superlativos tem a terminação “-íssimo” (altíssimo, caríssimo, importantíssimo, educadíssimo, engraçadíssimo etc.), mas alguns terminam em “-érrimo”. Por que será?

Vale lembrar que esses superlativos entraram na língua portuguesa no século 15 por influência erudita e, assim, recuperaram os radicais latinos dos adjetivos. Os terminados em “r”, como liber- (livre), niger- (negro), pauper- (pobre), têm o “r” duplicado, daí formas como libérrimo, nigérrimo e paupérrimo.

MAGÉRRIMO OU MACÉRRIMO?

Eis o superlativo de “magro”, cuja forma latina era “macer-”. Pela via erudita, surgiu “macérrimo”, mas o povo tratou de associar a terminação “-érrimo”, que se mostrou fértil em vocábulos bastante expressivos (chiquérrimo, chatérrimo), ao radical do termo em português, daí “magérrimo”, com “g”, palavra largamente usada no Brasil, embora rechaçada por gramáticos tradicionais.

Note-se que, em chiquérrimo e chatérrimo, não há radical terminado em “r”, o que levaria a formas como chiquíssimo e chatíssimo. Ouve-se ainda uma forma como “chiquésimo”, que tem valor marcadamente expressivo. Apresenta a terminação dos numerais ordinais (milésimo, centésimo) empregada com valor intensivo. É um fenômeno da língua em uso hoje. Existe na internet um site de artigos de luxo cujo nome é “Chiquérrimo”.

LISTAS DE SUPERLATIVOS

Houve tempo em que os estudantes tinham de memorizar imensas listas de termos eruditos, entre as quais figurava a lista de superlativos. Muita gente deve ter achado aborrecido esse tipo de estudo e se afastado de um conhecimento muito interessante. Há como mostrar as palavras na sua “vida real”, seja quando aparecem nos textos, com finalidade estética, seja quando são faladas no dia a dia para comunicar ideias e afetos.

UM DEVER AMARÍSSIMO

Os leitores de Machado de Assis deverão estar lembrados de um curioso personagem da obra “Dom Casmurro” que “amava os superlativos”. No capítulo intitulado “Um dever amaríssimo!”, temos a antológica descrição de José Dias. Vamos rever a passagem (o narrador da obra é Bentinho, o Dom Casmurro):

José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às ideias; não as havendo, servia a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar o gamão, que estava no interior da casa. Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com as suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com um arco de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia. Era magro, chupado, com um princípio de calva; teria os seus cinquenta e cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da consequência, a consequência antes da conclusão. Um dever amaríssimo!

[IN: ASSIS, J.M. M de –  D. Casmurro, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1969 – texto adaptado à ortografia atual]

A conhecida ironia machadiana é o que há de mais divertido nessa passagem do romance. Note como o autor descreve o personagem, associando sua aparência física, seu modo de vestir-se, à sua personalidade. Sobrou ironia até mesmo para os superlativos. É interessante observar como, na época do romance (fim do século 19),  já se considerava artificial o uso dessas formas. É caricato o personagem que tem por hábito o emprego sistemático dessas palavras, “um modo de dar feição monumental às ideias” e, na ausência delas, um modo de “prolongar as frases”.

“Amaríssimo” é o superlativo de “amargo”, calcado na forma “amaro”, do latim “amarus”, que também pertence ao português, embora seja menos usada. No dicionário “Houaiss”, é citada também a forma “amarguíssimo” como superlativo de “amargo”, o que comprova a tendência, observada em “magérrimo”, ao uso do sufixo “-íssimo” com os radicais do português. É por isso que vemos “pobríssimo” ao lado de “paupérrimo” e “negríssimo” ao lado de “nigérrimo”. Houaiss ainda menciona “livríssimo” ao lado de “libérrimo”.

Há muito a falar sobre os superlativos. Voltaremos ao tema num próximo texto. 🙂

 

 

 

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Sala de Leitura estreia com Machado de Assis https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2013/11/25/sala-de-leitura-estreia-com-machado-de-assis/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2013/11/25/sala-de-leitura-estreia-com-machado-de-assis/#comments Tue, 26 Nov 2013 01:39:27 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=469 Ninguém melhor para a estreia da seção Sala de Leitura do que o “bruxo do Cosme Velho”.  Sim, é Machado de Assis que  hoje nos convida a adentrar o mundo da literatura. A obra escolhida foi o conto “A causa secreta”, que integra a coletânea “Várias Histórias”, publicada no ano de 1896. Se lhe parece “antigo”, talvez você se surpreenda com a atualidade da narrativa machadiana, que passa longe de rebuscamentos e é toda enlaçada pela fina ironia que só os inteligentes usam com tanta maestria.  O que vamos ler a seguir é o trecho inicial do conto.

    Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente – de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.

    Tinham falado também de outra cousa, além daquelas três, cousa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que, para fazê-lo entender, é preciso remontar à origem da situação.

 

 Comentário

Note como o autor apresenta os personagens centrais do conto: o primeiro período é formado de três orações assindéticas (sem conjunção), separadas por ponto e vírgula. As três orações têm a mesma estrutura interna (o nome, a posição de cada um  na sala, uma ação no pretérito imperfeito), o que combina perfeitamente com o uso dessa pontuação.

Ponto e vírgula

O ponto e vírgula é quase um ponto final, mas naturalmente não chega a sê-lo. Não é uma pontuação adequada para separar a oração subordinada da principal. O bom uso que dele fez Machado, organizando três orações de mesma estrutura interna, reforça a intenção do escritor de descrever a cena sem hierarquizar seus elementos.

Verbos no pretérito imperfeito

Se o pretérito perfeito indica uma ação terminada (alguém fez alguma coisa), o imperfeito indica uma ação não terminada (alguém fazia alguma coisa), o que pode sugerir tanto uma interrupção da ação quanto o seu  prolongamento por tempo indefinido. No texto de Machado, prevalece a ideia de duração (mirava, estalava, olhava, concluía), ou seja, são ações que as pessoas estão realizando no momento em que são vistas pelo narrador.

Tempo é de contar a história sem rebuço 

O autor opta por “tempo é”, em vez de “é tempo”, uma leve  inversão sintática, que dá ênfase ao que será narrado em seguida. “Sem rebuço” quer dizer “abertamente”, “sem rodeios”. “Rebuço” era o nome que se dava à parte de uma capa que cobria o rosto da pessoa. O narrador deixa claro que, por estarem mortos os personagens da história, ele poderá contar tudo sem disfarces ou qualquer constrangimento. Essa apresentação feita pelo narrador cria o efeito de suspense.

Verbos no presente do indicativo

Certamente você percebeu que, no segundo parágrafo, o narrador trouxe os verbos para o presente e empregou o advérbio “agora”.  Trata-se de um recurso de estilo que produz aproximação. É como se ele  transportasse a ação para diante dos olhos do leitor. Em seguida, suspende novamente a ação e comenta que “o que se passou foi de tal natureza que…”. Mais uma vez, atiça a curiosidade do leitor, dizendo sem dizer. Quem estiver muito curioso poderá ir diretamente ao restante do conto, que aqui continuaremos lendo aos poucos. 🙂

 

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