Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Um argumento frágil https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/09/18/um-argumento-fragil/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/09/18/um-argumento-fragil/#comments Mon, 18 Sep 2017 21:44:23 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1214 Recentemente, o médico Drauzio Varella manifestou em uma de suas colunas seu repúdio ao crime de estupro. Conhecedor que é do ambiente carcerário, lembrou aos leitores que, na cadeia, esse crime é rechaçado com violência pelos presos a ponto de os estupradores terem de ser mantidos em isolamento sob pena de serem trucidados pelos outros criminosos.

Bem ou mal, isso não parece ser novidade. Mesmo quem não tem nenhuma familiaridade com penitenciárias já ouviu dizer que existe um código interno entre os presidiários e que a convivência nos presídios está longe de ser fácil.

Até aí, tudo bem. O problema surge quando se faz o raciocínio de que, se até os presidiários, entre os quais estarão homicidas de vários quilates, condenam o crime de estupro – a ponto de trucidarem os estupradores recém-chegados (ou de estuprá-los também, como se lhes aplicassem a pena de talião, fazendo algum tipo de justiça) –, isso quer dizer que a sociedade como um todo repudia fortemente esse tipo de crime.

Esse foi o raciocínio de Hélio Schwartsman, que escreveu isto: “Ora, se até nos presídios, onde vige uma moral permissiva em relação a um amplo rol de delitos, o estupro é visto como algo imperdoável, a situação não pode ser muito diferente nos segmentos sociais que abraçam éticas mais kantianas”, em alusão ao texto de Varella, que seria a comprovação disso.

A princípio, parece coerente, mas esse não é um raciocínio que se aceite assim tão facilmente quando se leem notícias como as que têm estampado as páginas dos jornais nos últimos tempos, quando casos de estupro vêm ganhando mais visibilidade.

Ao desenvolver seu raciocínio, o articulista chega a dizer que a frase “a mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada” pode ser interpretada “em termos probabilísticos”, ou seja, “mulher que usa trajes sumários tem mais chance de sofrer violência sexual”. A referida frase remonta a uma pesquisa feita pelo Datafolha, que mensurava a percepção dos brasileiros acerca da responsabilidade da mulher nesse tipo de crime. O resultado foi assustador: grande parcela de homens e de mulheres atribuiu o delito ao comportamento feminino e às roupas provocativas usadas pelas mulheres. Donde se depreende que, na visão dessas pessoas, cabe à mulher “não se expor”, ser recatada ou algo do gênero. Mais ou menos como se o estupro fosse um fenômeno da natureza e à mulher coubesse evitá-lo tanto quanto possível.

A pesquisa aferiu a percepção do senso comum, que, como podemos constatar, está permeada pelo machismo ou pela chamada “cultura do estupro”, que o articulista diz duvidar que exista. Creio que a expressão esteja ligada a uma suposta naturalização do estupro (em todas as suas modalidades), ao fato de, ao contrário do que ele disse, a sociedade como um todo não rechaçar tanto assim o delito. “Tá com vontade? Vai lá, estupra, mas não mata”, citando de memória o conhecido político brasileiro Paulo Maluf. Uma versão mais moderna e ainda mais grotesca coube ao deputado Jair Bolsonaro ao se dirigir à deputada Maria do Rosário: “Ela não merece [ser estuprada] porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece“. Que significa dizer “eu não sou estuprador, mas, se fosse (…)”? Significa que poderia ser sem nenhum problema. E mais: significa que o estuprador escolhe a mulher pelos atrativos dela, ou seja, ele não é um psicopata ou um criminoso, é apenas um homem como outro qualquer. E o pior de tudo é que há mulheres que, embora se apresentem como indignadas, contabilizam os assédios (não estupros, é claro) de que foram vítimas com certo orgulho, alimentando (talvez sem perceber, por mera vaidade ou ingenuidade) essa percepção de que, no fundo, um assédio tem um componente de elogio. É o “merecimento” de que fala Bolsonaro.

Enfim, se a frase da pesquisa Datafolha fosse interpretada “em termos probabilísticos”, hipótese aventada pelo articulista, seria necessário saber que roupas usou e que atitudes a mulher teve antes do estupro. Ora, a simples possibilidade de indagar isso da mulher pressupõe um julgamento moral. Ou não?

O noticiário, no entanto, não nos deixa ignorar a realidade: esse tipo de crime, na maior parte das vezes, ocorre dentro de casa, é cometido por pessoas em quem a vítima deposita confiança. Veja-se a estatística dos casos de estupro de pessoas com deficiência, por exemplo, em matéria assinada pela jornalista Cláudia Colluci na Folha.

Mas voltemos à “prova cabal” de que o estupro é um crime amplamente repudiado pela sociedade, ou seja, ao código de conduta dos presidiários. É, no mínimo, estranho acreditar que, num ambiente em que homicidas são respeitados, estupradores sejam repudiados porque seu crime é “imperdoável”. Seria preciso acreditar que, no presídio (masculino), a mulher é mais respeitada do que fora dele. Aqueles homens ali trancafiados têm mais respeito pela mulher do que os que estão do lado de fora. Será?

Infelizmente, parece muito mais plausível a ideia de que o estupro nessa comunidade seja visto como um crime “menor”, um crime de segunda categoria, cometido por um “macho menos macho”. Menos macho porque não enfrentou outro macho, menos macho porque agrediu um ser mais fraco, menos macho porque não consegue “pegar mulher” de outro jeito, menos macho, portanto mais fraco, vergonha do grupo, e, portanto, o alvo escolhido para o escoamento da violência represada. O estuprador não merece o respeito dos outros porque não cometeu um “crime de verdade”. Não mete medo nos machos “de verdade”. No mínimo, seria importante pesquisar os critérios desse código de conduta antes de tirar conclusões apressadas que em nada contribuem para um convívio mais civilizado entre todos os seres humanos. Obviamente, negar a cultura do estupro não é o caminho para combatê-la.

Vale lembrar que as mulheres se desdobram para visitar seus maridos, namorados, filhos, netos, irmãos na cadeia. Submetem-se à revista vexatória, a todo tipo de humilhação e, em caravanas, organizam-se para levar semanalmente comida e artigos de higiene ou roupas de que os homens necessitam. Transformam a própria rotina em função do homem que está preso, mas, quando são elas, as mulheres, que vão para a cadeia, não há homem fazendo fila na porta do presídio, levando comida ou agrados, submetendo-se a humilhações, gastando o próprio dinheiro com elas ou mesmo fazendo visita íntima. Como acreditar na benevolência ou no grau evolutivo superior desses machos? As mulheres, sim, educadas para o amor e a fidelidade, fazem todo e qualquer sacrifício por esses e outros homens. Dentro e fora da prisão.

 

 

 

 

 

 

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Machão das novelas sai do personagem e cai na real https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/04/08/machao-das-novelas-sai-do-personagem-e-cai-na-real/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/04/08/machao-das-novelas-sai-do-personagem-e-cai-na-real/#comments Sat, 08 Apr 2017 14:27:21 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1185 O episódio de assédio sexual protagonizado pelo ator José Mayer nos bastidores da maior emissora de TV do país levou o machão das novelas a sair do personagem que vem encenando durante a vida toda e cair na real.

O depoimento contundente de uma figurinista da empresa ao blog AgoraÉQueSãoElas, da Folha, deflagrou o escândalo, que o ator espera ter abafado com um pedido público de desculpas, ao que tudo leva a crer, elaborado por sua assessoria de imprensa.

Vale lembrar que a primeira resposta de José Mayer menosprezava a inteligência da moça e, consequentemente, a do público de modo geral: ela estaria confundindo o ator com o personagem (ela, não ele). Não funcionou.

Muito bem. Nova resposta é divulgada à imprensa pela assessoria do ator, desta vez um texto um pouco mais elaborado.

O redator da carta usou a primeira pessoa do discurso para criar empatia com o leitor, que imagina estar diante das palavras de um  José Mayer arrependido, que, diga-se de passagem, se quisesse mesmo ser convincente, talvez gravasse um vídeo (sem TP!).

Mas vamos ao texto, a carta aberta. Diante da repercussão dos fatos, com direito a testemunhas e movimento de mulheres dentro da Rede Globo, a intenção do missivista é reconhecer o próprio erro, pedir desculpas e, de preferência, levar o público a esquecer o assunto. Afinal, o que está em jogo é a preservação da sua imagem, o seu maior ativo.

Ele é correto (pede desculpas porque essa é a “atitude correta”); ele é responsável (“Sou responsável pelo que faço”); ele é inocente (não tinha intenção de ofender, estava apenas fazendo brincadeiras de cunho machista); ele é uma boa pessoa (ter esposa, filha e amigas vale por um atestado de bons antecedentes); ele é humilde (“não me sinto superior a ninguém”); ele é vítima da educação machista de sua geração; ele é aberto às críticas (aprendeu em alguns dias o que levou 60 anos sem aprender). Finalmente, pede um voto de confiança, posiciona-se como um exemplo a ser seguido por outros homens, expressa sua dor e termina com uma mensagem moralmente positiva (“o José Mayer que surge hoje é, sem dúvida, muito melhor”).

Em suma, um homem correto, responsável, inocente, familiar, humilde, vítima, aberto à crítica, sensível, uma espécie de herói que sai do episódio transformado em um ser ainda melhor do que já era. Caso encerrado.

A trajetória do herói, no entanto, não parece tão convincente quanto o desejado. Não foram poucos os homens que, nas redes sociais, se manifestaram contra o compartilhamento dos atos condenáveis do ator com toda a sua geração – afinal, felizmente, não são todos os homens dessas gerações mais antigas que agem dessa maneira.

Cabe aqui, porém, alguma reflexão. Não se pode negar que homens e mulheres têm sido criados no machismo, numa cultura que tenta naturalizar supostas diferenças de comportamento entre os sexos, de papéis sociais etc., valores enfeixados num sistema de conveniências sempre desfavorável à mulher.

Em parte, ele, como os outros homens, é também vítima dessa situação. Ocorre, porém, que o nível das atitudes, que mais combinariam com os modos de um homem de Neandertal, chega a surpreender em pleno século 21.

Chama a atenção o fato de o ator ter-se sentido à vontade para desrespeitar a moça com gestos e xingamentos diante de 30 pessoas, num set de filmagem. Isso diz muito sobre o ambiente de trabalho na emissora, que, ao que tudo indica, sempre favoreceu esse tipo de comportamento, possivelmente visto como “normal” ou, no mínimo, permitido aos que alcançam prestígio e poder na estrutura hierárquica. Não foi à toa que ele disse que “o mundo mudou”.

Ele foi pego de surpresa pela vida real, na qual o estereótipo do machão cafajeste, em que canalhice é sinal de virilidade, já ficou para trás. O empoderamento da mulher não passa unicamente pelo seu sucesso no mundo do trabalho; a mulher quer ser sujeito de seus sentimentos e desejos, não um mero objeto ou presa a ser caçada.

É fato que ainda há homens que entendem a negativa feminina como artifício provocativo ou coquetismo – aliás, esses acham que a mulher deve ter essa atitude para “se valorizar”. É a “mulher difícil”, que esconde seu desejo para que o homem se sinta o “conquistador”. Terminada a conquista, quando ela cede ao próprio desejo, ele parte para a próxima captura. Esse modelo antigo de relação entre homens e mulheres confronta-se com os anseios da mulher do século 21. Mesmo tendo boa aparência, o ator mostra que envelheceu, porque é isso o que acontece com quem não acompanha as mudanças do mundo. O tempo passou na janela e (não) só o Zé Mayer não viu.

Talvez ter passado muito tempo no mesmo emprego, no mesmo ambiente de trabalho, encarnando o mesmo personagem, tenha privado o ator de experiências mais enriquecedoras. “O mundo é grande”, diria Drummond, muito maior que o Projac. Agora, a emissora afasta das telas o galã, pois não interessa comprometer a própria imagem. “Viver é muito perigoso”, diria Guimarães Rosa.

Para além do beijo gay, o desafio dos novelistas agora é desconstruir essa imagem tosca de virilidade, que, no fundo, é muito frágil. Está na hora de pôr em cena seres humanos com anseios do nosso tempo em vez de reforçar estereótipos que só convêm aos valentões que assediam mulheres na rua e, em casa, posam de bons maridos, sob o ódio complacente das esposas.

Desse jeito, não está bom para ninguém. Não basta investir em belas imagens e recursos técnicos, quando o texto continua fraco. Fica a dica, novelistas.

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Um mundo mais confortável para homens e mulheres https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/03/08/um-mundo-mais-confortavel-para-homens-e-mulheres/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/03/08/um-mundo-mais-confortavel-para-homens-e-mulheres/#comments Wed, 08 Mar 2017 10:00:20 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1163 Chegamos a mais um Dia Internacional da Mulher sem grandes avanços na conquista de igualdade entre homens e mulheres. Muita gente, a começar de mulheres, acha que não existe machismo, ou seja, que os conflitos existentes se resumem a querelas ocasionais entre indivíduos, que podem e devem ser resolvidas no âmbito privado.

A negação da perspectiva coletiva, hoje muito em voga, só reprime o debate. São as próprias mulheres que, talvez com receio de parecerem frágeis, regam a horta do machismo. Muitas das que posam de esclarecidas correm o risco de soarem ingênuas ao se dizerem não atingidas pelos tentáculos da naturalização das diferenças de gênero.

É claro que nem todas as mulheres sofrem violência doméstica, embora esse problema não esteja circunscrito aos estratos mais pobres da sociedade, como pensam algumas, para as quais a classe média parece um refúgio seguro. O fato é que ainda é muito comum que, diante de uma notícia de marido que agride a mulher, logo se queira saber o que ela fez (para merecer).

Como diria o sambista de “Faixa amarela”, “se ela vacilar, vou dar um castigo nela/ Vou lhe dar uma banda de frente/ Quebrar cinco dentes e quatro costelas”. Pessoas se divertem ao ouvir uma canção como essa nos seus momentos de lazer porque esses versos soam cabíveis, razoáveis, talvez até engraçados.

O mesmo vale para a marchinha carnavalesca “O teu cabelo não nega, mulata/ Porque és mulata na cor/ Mas, como a cor não pega, mulata/ Mulata, eu quero o teu amor”, a um só tempo machista e racista (a cor da pele é comparada a uma doença, que, não sendo contagiosa, permite ao homem desfrutar do amor da mulher numa noitada de festa ou, quiçá, nos recônditos da senzala). A volta do Carnaval de rua prometia a volta de um suposto tempo da inocência, que, no entanto, parece só existir nas nuvens da nostalgia.

O machismo é insidioso, inserido que está nos hábitos das pessoas. Aparece nas palavras, nos gestos, nas atitudes, nas piadas, nos chistes de palestrantes de sucesso no mundo corporativo, praticamente em todos os discursos que forçam uma dicotomia do tipo “homem é assim, mulher é assim”, “isso é coisa de homem”, “aquilo é coisa de mulher”, como se houvesse um padrão de comportamento naturalmente atrelado ao gênero.

Vale lembrar que os homens também são vítimas do machismo. São vítimas de um papel e de um projeto que lhes cabe seguir e os torna reféns do medo do fracasso.

Não se trata, portanto, de opor homens a mulheres, numa infantilização do debate, que o reduz a uma “guerra dos sexos”.  Essa tolice apenas alimenta esquetes de programas humorísticos ultrapassados e matérias de revistas ditas “femininas”, que, entre fofocas do universo das celebridades e outras amenidades (dicas de maquiagem e de moda, receitas, horóscopo, “fitness”, dietas), dedicam espaço a artigos que ensinam a lidar com os homens — tudo isso embalado em um editorial que garante ser a publicação voltada à mulher “moderna”.

A forma mais eficiente de alijar as mulheres do debate é transformar a feminista num personagem caricato (a mulher que não gosta de homens, que não é feminina, que é “feia”, mal-humorada ou “mal-amada”, infeliz por não ter conseguido um marido).  É evidente que esse estereótipo não mobiliza as mulheres; antes reforça a ideia de que um marido é um item de sobrevivência na vida social. O fato é que a discussão deveria envolver pacificamente homens e mulheres, que, afinal, precisam estar unidos para empreender outras lutas urgentes.

APLICATIVO

Há poucos dias, noticiou-se na Folha a criação de um aplicativo de celular que se propõe a mensurar o número de vezes que a fala de uma mulher é interrompida por um homem. Ao que parece, a tecnologia é de grande utilidade nas reuniões de trabalho em que mulheres são postas em segundo plano, tendo sua fala desprestigiada, como se não passasse de um punhado de ideias previsíveis, óbvias, menos importantes.

Mulheres que conseguem adentrar ambientes masculinos (aqueles em que circulam salários mais altos) são possivelmente as mais suscetíveis a esse tipo de problema. No âmbito doméstico, valeria baixar o aplicativo e fazer o teste com o maridão. Será que ele é daqueles que dizem “Já sei o que você está querendo dizer” antes de você terminar o raciocínio?

Antes que os homens se ponham na defensiva, vale dizer que o propósito do aplicativo é mostrar algo que pode ser imperceptível para eles, de tão naturalizado.  Não se trata de dizer que fulano é mal-educado (com hífen), pois, na verdade, ele provavelmente terá sido mal educado (sem hífen) por sucessivos exemplos que vêm atravessando gerações.

BELEZA E CREDIBILIDADE

Um artigo publicado nesta semana na Folha, cujo mote é o empreendedorismo feminino, cita pesquisa feita pela Harvard Business School, segundo a qual “investidores tendem a apostar mais em negócios liderados por homens”. O mesmo estudo ainda revela, com o aval da investigação científica, aquilo que já se intuía: “Quanto mais bonita a mulher, menor era a credibilidade [dela] diante da banca de investidores – composta por homens e mulheres”. Novamente o estereótipo machista: à mulher bonita cabe o papel de objeto, não o de sujeito.

Vale observar como a autora encerra o artigo: “Costumo dizer nas palestras para empreendedoras que não se trata de pegar o lugar dos homens que estão criando negócios e mudando o mundo. A questão é que somos mais de 50% da população mundial e podemos acrescentar muita inovação e criatividade no desenvolvimento de soluções que impactam a vida de todos”.

Ela própria (mulher) avisa que não quer tomar o lugar dos homens (eles estão na dianteira, criando negócios e mudando o mundo) e, mesmo constatando que as mulheres constituem mais da metade da população mundial, recomenda a elas que se resignem ao papel de “acrescentar (..) inovação e criatividade”.

Enquanto os homens mudam o mundo, as mulheres dão seu “toque feminino” (criativo) ao ambiente. Por que a divisão? Por que não homens e mulheres de negócios ao lado de homens e mulheres criativos? A formulação da ideia tem como pressuposto a existência de um lugar de homens e de um lugar de mulheres…

Isso sem considerar que muitos homens em posição de poder acham que está no seu direito assediar as mulheres. Aquelas mais atraentes geralmente passam por esse tipo de constrangimento e, caso não queiram trocar a dignidade por um cargo ou promoção, acabam tendo dificuldades adicionais na carreira. As que aceitam as regras desse jogo, imaginando-se poderosas, apenas alimentam o poder alheio.

UM MUNDO MAIS CONFORTÁVEL

Nem tudo, porém, é falta de esperança. A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, autora da conferência “Sejamos Todos Feministas” (2013), publicada em livro em 2015, acaba de lançar o volume “Para Educar Crianças Feministas”, em que apresenta suas reflexões sobre o tema. Reproduzo aqui alguns de seus conselhos para educar as crianças num mundo mais confortável para todos:

Seja uma pessoa completa. A maternidade é uma dádiva maravilhosa, mas não seja definida apenas pela maternidade. Seja uma pessoa completa. Vai ser bom para sua filha.

Ensine a ela que ‘papéis de gênero’ são totalmente absurdos. Nunca lhe diga para fazer ou deixar de fazer alguma coisa ‘porque você é menina’. ‘Porque você é menina’ nunca é razão para nada. Jamais.

Nunca fale do casamento como uma realização. Encontre formas de deixar claro que o matrimônio não é uma realização nem algo a que ela deva aspirar. Um casamento pode ser feliz ou infeliz, mas não é realização.

Ensine-lhe o gosto pelos livros. A melhor maneira é pelo exemplo informal. Se ela vê você lendo, vai entender que a leitura tem valor […] Os livros vão ajudá-la a entender e a questionar o mundo, a se expressar, vão ajudá-la em tudo o que ela quiser ser.

Ensine a não se preocupar em agradar. A questão dela não é se fazer agradável, a questão é ser ela mesma, em sua plena personalidade, honesta e consciente da igualdade humana das outras pessoas.

Ao lhe ensinar sobre opressão, tenha o cuidado de não converter os oprimidos em santos. A santidade não é pré-requisito da dignidade. Pessoas que são más e desonestas continuam seres humanos e continuam a merecer dignidade.

 

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