Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Meu neologismo favorito https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/07/01/meu-neologismo-favorito/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2021/07/01/meu-neologismo-favorito/#respond Thu, 01 Jul 2021 17:03:39 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/Dicionário-Aurélio-Fábio-Braga-25-set-15-Folhapress15593559805cf1e24cb7977_1559355980_3x2_lg-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1624 Uma palavra nova, inventada, começa a circular na língua aqui e ali e, depois de uma espécie de fase de testes, é incorporada ao léxico ou descartada, condenada ao esquecimento, quando não ao uso particular de um falante ou de um grupo. Em geral, é a inclusão em dicionários que atesta a entrada do neologismo no léxico da língua, uma forma de reconhecimento de sua vitalidade.

Nossos leitores aceitaram uma provocação para interagir com a Folha, que os convidava a dizer qual era o seu neologismo predileto. Como não poderia deixar de ser, não faltou quem se lembrasse do repertório novo surgido com a pandemia de Covid-19, que, por um deles foi chamado de covidioma.

Lá estão arrolados covidário (já usado por médicos para fazer referência à ala de pacientes de Covid-19) e as invenções covidar (pegar a doença/ Fulano covidou), descoronar (desinfetar com sentido específico de livrar do coronavírus/ Fulano descoronou as compras), clorokiller e cloroquiner – estes últimos, mesclas das sílabas iniciais de “cloroquina” com elementos da língua inglesa, têm uso ligado especificamente ao contexto brasileiro de enfrentamento da pandemia pelo governo e, por certo, dispensam explicação.

Covidário a alguns incomoda pela associação com os antigos “leprosários”, que eram estabelecimentos onde permaneciam isolados os pacientes de lepra (hoje hanseníase) quando a doença não tinha cura. O sufixo “-ário”, nesse caso, apenas indica a ideia de coleção, como, de resto, em apiário, serpentário, ranário etc. O exemplo é bom porque mostra um dos processos de criação de palavras: o uso de sufixos preexistentes na língua associados a novos radicais.

Em covidioma, temos um caso de composição, com dois radicais justapostos (Covid + idioma), outro processo bastante fecundo de criação. As formas verbais, é bom que se diga, sempre pertencem à primeira conjugação (terminada em “-ar”), que é a única fértil no momento atual da língua, aparecendo também no sufixo “-izar”. Assim se explicam covidar, descoronar e outros verbos que surgiram na enquete.

Verbos: sempre da primeira conjugação

Uma leitora nos diz que, no lugar da expressão “fazer xixi”, da linguagem infantil, ela emprega xixizar. Outro de nossos amigos gosta mesmo é de pitacar, coisa que ele diz fazer diariamente no site da Folha: ele dá seus “pitacos” e passa o seu recado! “Pitaco”, como todos sabemos, é aquele palpite que se dá numa conversa. No dicionário “Houaiss”, embora com ressalva, aventa-se a hipótese de que esse termo de uso informal tenha origem no nome de Pítaco, um antigo sábio da Grécia!

Entre os verbos, apareceram mariar (agir como Maria?) e baleiar, usado por um grupo de frequentadores da Barra do Sahy, no litoral norte de São Paulo, que costumava caminhar pelo areal até a vizinha praia da Baleia, momento de descontração e de conversas sobre vários assuntos. O termo funciona dentro de um grupo fechado, sendo, portanto, menos um neologismo propriamente dito que uma gíria. Segundo a leitora que o enviou, o verbo guarda sinonímia com a expressão fazer uma Baleia.

Formação erudita

Fazendo uso de elementos gregos de composição (“poli-” + “agn-”), um leitor nos disse usar o termo poliagno para se referir a uma pessoa multi-ignorante. É ele quem explica: “É o contrário de ‘polímata’, que é o indivíduo que sabe de vários assuntos. O ‘poliagno’ desconhece vários assuntos”. “Poli-” indica multiplicidade, e “agn-”, ignorância.

Sabor popular

Mais frequentes que os termos de feição erudita, chegaram a nós aqueles de sabor popular. É o caso de enjolanca, que o leitor diz ouvir do pai “e de mais ninguém” (um modo de dizer que algo é “muito enjoado”) e devolança, que seria a “volta”, a “resposta” (é do leitor o exemplo de uso: “Bolsonaro não comprou as vacinas e agora nas urnas virá a devolança”).

Composições criativas

A política tem dado grande estímulo à criatividade das pessoas. Têm surgido várias palavras expressivas, algumas muito bem-humoradas, caso de embaixapeiro, que já veio no formato de verbete de dicionário, com definição e tudo (“palavra que designa o sujeito que supõe ter aptidão para ocupar um cargo diplomático por ter já desempenhado a função de fritador de hambúrguer”), e de intelijumento (“o mais esperto entre os menos espertos”), ambas de um mesmo autor.

Uso particular

Comprofodência também chega à maneira de verbete: “Substantivo abstrato feminino. Sinônimo de ‘simancol’, bons modos, temperança. Adjetivo: comprofodente. Uso: Fulano tem uma postura bastante comprofodente”. Provavelmente de uso particular, o termo parece nascer da junção de vários outros. Formação similar dá-se em menosquência, que, segundo o autor, sugere capacidade de discernimento (“Isso é falta de menosquência; que absurdo, que lapso de menosquência!”).

Gíria

Uma leitora diz gostar muito da gíria tals, que é uma espécie de plural irregular do pronome demonstrativo “tal”, com valor de “etc.”: “Estou mergulhada naquele projeto, numa revisão difícil, e-mails por responder e tals”. A graça, naturalmente, está nesse plural com mero acréscimo de “s” ao “l” final. É a desobediência à regra de flexão que assinala o uso gírio.

Efeito semelhante vem de taqueopariu, enviado por outra pessoa: a criatividade vem da junção dos termos e da supressão da sílaba inicial de “puta”, cujo traço semântico se apagou, restando ao termo apenas o valor interjetivo.

Panguar também apareceu no rol de preferências dos leitores: o termo da linguagem popular (“ficar/estar de bobeira”, à toa, perdendo tempo, enganado, iludido) já aparece no “Dicionário Informal” na expressão “tá panguando”, de origem desconhecida.

Referências intelectuais

Alguns leitores trouxeram palavras inspiradas em leituras e outras referências. Foi esse o caso de gogolização, termo derivado do nome do escritor russo Nikolai Gogol, autor da célebre obra “O Inspetor-Geral”, na qual um impostor se passa pelo inspetor-geral de uma província russa e procede às mais ridículas situações.  Nosso leitor diz usar o termo “para qualificar o total desmantelamento da ética, da seriedade e da qualidade dos cargos de confiança do governo”.

Acabativa foi lembrado por outro leitor, que atribui sua criação ao consultor de empresas Stephen Kanitz, em clara analogia com “iniciativa”. Segundo o conferencista, não basta ter iniciativa; é preciso terminar os projetos iniciados. Esse termo ilustra outro processo de formação do neologismo, que é a analogia.

O termo quimiscritor, já inventado e associado a Primo Levi, químico e escritor, foi lembrado por outro leitor. Outro ainda se recordou do neologismo criado pelo ensaísta libanês (radicado nos Estados Unidos) Nassin Nicholas Taieb, que cunhou a forma antifragile – em português, antifrágil – que nomeia um conceito filosófico. Novos conceitos, novos objetos, novas realidades precisam de novos nomes. Esse é, por assim dizer, o caso típico de surgimento de neologismo.

Referências literárias: à moda de Guimarães Rosa

O maior criador de palavras da literatura brasileira foi, sem dúvida, João Guimarães Rosa, autor de “Grande Sertão: Veredas”, entre muitos outros livros bem conhecidos do público. Vários leitores se lembraram do escritor, tendo um deles escolhido desexistir, que aparece na sua obra máxima: “Dia da gente desexistir é um certo decreto – por isso que ainda hoje o senhor aqui me vê” ).

Outros trouxeram termos que, como se vê, até poderiam ter saído de uma página de algum de seus escritos: desver  (hoje usado nas redes sociais, quando queremos esquecer uma imagem inconveniente), desendoidar (busca de atividades na tentativa de não enlouquecer neste período de pandemia), desbolsonarizar (“Em 2022, será mais que necessário ‘desbolsonarizar’ o Brasil), disconcordar, desler (o último já usado por Paulo Leminski, no poema “Ler pelo Não” –  “Desler, tresler, contraler,/ enlear-se nos ritmos da matéria,/” – e pelo psicanalista Ricardo Goldenberg, na obra “Desler Lacan”), repiorar e desasnificar. Este último veio de leitora que diz tê-lo criado em associação à imagem do Burro Falante (personagem de Monteiro Lobato), com o sentido de “buscar instrução para afastar o rótulo de burrice, inteirar-se de determinados assuntos para não passar vexame entre amigos”. Vale dizer que os dicionários registram o termo “desasnar”, no sentido de dar instrução (especialmente as primeiras noções), instruir-se, adquirir conhecimentos básicos de um oficio, ou corrigir equívoco.

O verbo “descomer” também apareceu, como referência a Ariano Suassuna, que o emprega no “Auto da Compadecida”, mas, segundo o dicionário “Houaiss”, esse termo, de uso informal, tem registro desde 1882, não sendo, portanto, um neologismo. O mesmo ocorre com “esperançar”, palavra que nos chegou como criação do saudoso educador Paulo Freire, que, de fato, o empregou, mas não foi seu autor (o registro mais antigo do termo é de 1789).

Neologismos dicionarizados

Outros leitores resgataram neologismos que, embora tenham perdido o frescor da estreia, ainda são percebidos como tais. É esse o caso do adjetivo imexível, criado por Antônio Rogério Magri, ministro do Trabalho do governo Collor de Mello (1990). O uso do termo (no sentido de o governo “não pretender ‘mexer’ nas regras da caderneta de poupança”) foi objeto de grande polêmica na imprensa até ganhar a defesa do filólogo Antônio Houaiss, que o registrou em seu dicionário.

Outro termo que já se tornou familiar é o popular panelaço, lembrado por uma leitora, que o escolheu por gostar “tanto do som da palavra como do efeito”. Cabe lembrar que o sufixo “-aço”, normalmente associado a aumentativo (amigaço, mulheraço), aparece nesse caso ligado à ideia de quantidade, análogo a “buzinaço”.

Ressignificado

Houve um leitor que disse ter predileção pela palavra textículo, que acredita ser de sua própria lavra. O termo é comum na linguagem informal como diminutivo de “texto”, em possível analogia jocosa com “testículo”. Nosso leitor, no entanto, adverte de que o significado do termo é, para ele, “texto pequeno e ridículo”. Sua analogia particular dá-se, portanto, com “ridículo”. A ressignificação de um termo preexistente também é um processo neológico.

Tabuísmo e ativismo

Recebemos ainda “estelarmente”, que não é um neologismo, mas um advérbio derivado do adjetivo “estelar” (relativo a “estrela”), rebosteio, da linguagem popular tabuística, e, ainda, todxs, cujo uso foi defendido como forma de respeitar as pessoas que não se identificam com nenhum dos gêneros – e, talvez sem perceber, em sua justificativa, a pessoa que o enviou faz uso de um dos neologismos mais frequentes nas redes sociais: “E pedir que compreendam quem usa não é ‘mi-mi-mi’, é garantir a liberdade de expressão, liberdade sexual e liberdade que um ser tem sobre si”. “Mi-mi-mi”, cuja grafia deve ser com os hifens, ilustra outro processo de criação de palavras, a onomatopeia, ou seja, a imitação de um som. É uma modernização do proverbial “nhe-nhe-nhem”, formado pelo mesmo processo.

Candidato à dicionarização

Finalmente, citado por mais de um leitor, o vocábulo bolsomínion é um candidato à dicionarização, dada a frequência do uso e o significado razoavelmente bem definido. Formado das primeiras sílabas do sobrenome do presidente da República (Bolsonaro), seguidas da palavra “minion”, do inglês, que significa “lacaio”, “seguidor servil”, o termo está na boca do povo. Note que o uso do acento fica aqui como sugestão de aportuguesamento da palavra, que, de resto, é uma paroxítona terminada em “n”.

PS- Agradecemos a todas as pessoas que participaram da interação com a Folha. 

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Em defesa do neologismo https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/07/28/em-defesa-do-neologismo/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/07/28/em-defesa-do-neologismo/#respond Tue, 28 Jul 2020 18:04:31 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/Bolsonaro-apoiadores-Alvorada-Adriano-Machado-Reuters-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1531 “A economia brasileira despiora um tico. ‘Despiora’, sim. Tem de ser na base do neologismo, pois apenas nos recuperamos do infarto geral de dezembro. A carga de energia subiu um pouquinho, 0,7%, sobre fevereiro de 2008, mas foi um crescimento tão fraco como o do já terrível novembro do ano passado.” Em 3 de março de 2009, o articulista Vinicius Torres Freire cunhava o neologismo “despiorar”, que, de lá para cá, ele próprio usou 63 vezes em suas colunas da Folha, atravessando os governos de Lula, Dilma, Temer, Obama e, finalmente, chegando ao de Bolsonaro.

Só agora, porém, o termo ganhou as redes sociais, nas queixas do fã-clube do presidente da República, que nele viram um modo de mascarar uma suposta “melhora” da economia.

O próprio autor explicou o termo em 2009 (governo Lula), quando o empregou pela primeira vez na Folha. Não é preciso muito esforço para compreender o que ele quis dizer.

Vale relembrar que o prefixo “des-” é usado, principalmente, no sentido de negação ou oposição (contente/ descontente; prestígio/ desprestígio; confiança/ desconfiança; amor/ desamor; proporcional/ desproporcional), de falta (desabrigo, desalento, desemprego, desânimo) e de separação ou afastamento (desenterrar, desembolsar).

Associado a formas verbais, porém, sugere cessação de uma ação e, em certos casos, a volta a um estado anterior (fazer/ desfazer; costurar/ descosturar; mistificar/ desmistificar; afivelar/ desafivelar). O neologismo “despiorar” parece incorporar-se a esse grupo, uma vez que indicaria a cessação do processo de piora e talvez (não necessariamente) um retorno ao ponto em que as coisas começaram a piorar.

Vale notar que, rigorosamente, só piora aquilo que já está ruim e só melhora aquilo que já está bom. Pior e melhor são superlativos de mau e bom (ou de mal e bem), portanto são termos que aumentam a intensidade do que é mau e do que é bom. É por isso, aliás, que recomendamos, à luz da norma-padrão, que se evitem as construções “mais melhor” e “mais pior”.

A expressão “menos pior”, que também não está prevista no capítulo dos superlativos (diríamos “menos mau” ou “menos mal”), acabou por ganhar força expressiva e, em certos contextos, tem o mesmo efeito do neologismo do articulista, ou seja, o de indicar um breve recuo do processo de piora.

A questão filosófica é saber se aquilo que deixa de piorar melhora. Ao pé da letra, não, pois o que deixa de piorar não fica bom (menos ainda “mais bom”) – apenas estaciona ou, quando muito, volta ao seu grau anterior de ruindade. Se dissesse que a economia melhorou, o autor estaria pressupondo que ela estava boa antes.

Para evitar esse sentido embutido na palavra “melhorar”, o articulista criou o seu “despiorar”, que foi, como o são muitos dos neologismos, uma forma de resolver uma questão semântica. O resto, se nos autorizam os vernaculistas de plantão, é “mi-mi-mi”.

 

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O internauta, a loja física, o jornal de papel e o amigo virtual: uma conversa sobre arcaísmos e neologismos https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/23/o-internauta-a-loja-fisica-o-jornal-de-papel-e-o-amigo-virtual-uma-conversa-sobre-arcaismos-e-neologismos/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/23/o-internauta-a-loja-fisica-o-jornal-de-papel-e-o-amigo-virtual-uma-conversa-sobre-arcaismos-e-neologismos/#respond Fri, 23 Aug 2019 14:49:36 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/termo-internauta-Moacyr-Lopes-Júnior-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1402 Talvez com atraso tomo conhecimento de uma discussão sobre a suposta obsolescência do termo “internauta”, que hoje, quando estamos todos conectados em tempo integral, perde a sua função.

Na década de 1990, “internauta” surgiu como neologismo, formado dos elementos “inter” (redução de “internet”) e “nauta” (do grego “naútes”). Calcado em “astronauta”, o “internauta” era, então, a pessoa que explorava o ambiente virtual ou navegava por ele, como astronautas navegam o espaço sideral, aeronautas navegam o espaço aéreo e nautas propriamente ditos navegam pelos oceanos.

Naturalmente soa pueril dizer que internauta não navega porque a internet não é um oceano e que, portanto, melhor seria substituir o termo por “usuário”. É próprio da língua estender o sentido de um termo a outros contextos (e a prova disso, no caso de nauta, está nos termos aeronauta e astronauta, entre outros).

Quanto a “usuário”, esse é um termo que requer complemento. É frequentemente associado a consumo de entorpecentes (usuários de drogas), portanto teria de ser sempre seguido de seu complemento: usuário de internet. Ocorre, porém, que, nesse caso, estaríamos, como dizem os antigos, trocando seis por meia dúzia.

O problema real é outro. Não se trata de substituir um termo por outro, coisa que, aliás, quando ocorre, costuma ser espontânea. Palavras precisam ser funcionais, ter serventia, para que sejam acolhidas pela língua, afinal esta é um fenômeno social.

A língua tanto acolhe palavras novas, os chamados neologismos, como aposenta termos sem utilidade. Os neologismos, como toda novidade, chamam a atenção, despertam a curiosidade, chegando até a suscitar discussões e algumas paixões.  Já os que saem de cena costumam fazê-lo em silêncio, discretamente, sem um último aceno de adeus. Esses são os arcaísmos, que vão sendo esquecidos pouco a pouco, deixando de aparecer nos textos e nas conversas.

Talvez seja esse o destino do “internauta” num futuro próximo, quando lhe restará a companhia de termos como adail (antigo posto militar), almotacel (certo inspetor), albende (bandeira), samicas (talvez), toste (depressa), asinha (depressa), adur (dificilmente, a custo), nacibo (destino, sina), talaca (divórcio)…

Vários são os motivos que levam um termo a tornar-se um arcaísmo. Almotacel (ou almotacé), por exemplo, era, na Idade Média, um inspetor encarregado da aplicação de pesos e medidas e da taxação e distribuição dos gêneros alimentícios. Esse é um caso em que a palavra saiu do uso porque deixou de existir aquilo que ela nomeava. O mesmo se deu com a expressão “em cabelo” que, na época, era aplicada a mulheres solteiras, uma vez que as casadas deveriam cobrir a cabeça com uma touca. Despareceu o costume, desapareceu a expressão.

“Internauta”, se estiver mesmo em via de extinção, estará nesse grupo de arcaísmos e talvez venha a configurar o caso de palavra de vida mais curta na língua, que terá durado míseros 30 anos. Vale notar, entretanto, que há termos que persistem, sobretudo em expressões idiomáticas, mesmo quando sua base referencial é algo que já deixou de existir. Vejam-se os casos de “pegar o bonde andando” e “cair a ficha”, ambos plenamente em uso, mesmo por quem nunca tenha tomado um bonde ou feito uma ligação telefônica nos equipamentos públicos, aqueles com fichas metálicas (anteriores aos modelos com cartão, ainda existentes).

A questão da aposentadoria precoce do “internauta” ainda divide opiniões porque, enquanto, para alguns, estar conectado é como respirar, portanto seria desnecessário caracterizar alguém como tal (chamar alguém de “internauta” seria como chamar a pessoa de “respirante”), para outros, o termo ainda tem vitalidade, pois permite caracterizar a pessoa como usuária de um meio específico, a internet (afinal, a palavra “telespectador”, usada para quem vê televisão, continua em circulação).

O fato é que a internet dominou nossos hábitos de tal forma que passou a ser o principal meio de comunicação das pessoas. Quando alguém diz que leu uma notícia ou que assistiu a um vídeo, a um filme ou a um seriado ou que ouviu uma música nova, logo imaginamos que tenha feito tudo isso pela internet, com seu smartphone – principalmente se essa pessoa tiver nascido no século 21.

Mudou a percepção do “natural”, daquilo que não precisa ser nomeado. Hoje, quando lê um livro ou jornal impresso em papel, a pessoa tende a contar isso como experiência específica (é até engraçado para nós, os jurássicos, ouvir e até dizer também “jornal de papel”). Vejam-se expressões como “loja física” ou “livro físico”. O adjetivo antes era desnecessário, pois ninguém imaginaria que uma loja ou livro pudessem ser desprovidos de sua materialidade.

Hoje essas expressões se tornaram corriqueiras, um sinal de que o nosso referencial vem mudando a passos largos.  Por enquanto, ainda usamos a expressão “amigo virtual”, que denomina aqueles nossos amigos que só conhecemos pelo avatar nas redes sociais, com os quais nunca tivemos o prazer de um cafezinho. Quanto tempo levará para que a expressão natural seja “amigo físico”, quando este, enfim, for a exceção, como um jornal de papel…?

 

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Puristas de ontem e de hoje https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/02/19/puristas-de-ontem-e-de-hoje/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/02/19/puristas-de-ontem-e-de-hoje/#comments Sun, 19 Feb 2017 16:07:07 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1155 Antigamente existiam os puristas propriamente ditos, aqueles indivíduos que tomavam para si a missão de defender o idioma, o que se traduzia no incansável combate à influência estrangeira e na busca de um estilo elegante e correto. Eram geralmente pessoas detentoras de erudição, como o conhecimento de grego e latim.

Para essa turma, o princípio da correção gramatical nem de longe admitiria o grau de controvérsia que hoje se vê. No máximo, as tertúlias de gramáticos girariam em torno do uso que os clássicos fizeram de certa palavra ou construção sintática. O conceito de elegância, ligado ao de correção e de emprego de figuras de linguagem, é sempre difícil de definir, mas soava como um acordo tácito entre aqueles que pretendiam fazer bom uso da língua. Imitar os bons autores era, assim, caminhar na direção correta, sem sobressaltos e hesitações.

Vale notar que, do ponto de vista dos puristas, o grego e o latim sempre foram os legítimos fornecedores de elementos para compor palavras. Um bom exemplo disso está no gentílico “soteropolitano”, atribuído a quem nasce em Salvador. Chega-se a esse termo partindo da helenização do nome da cidade (de Salvador faz-se, com os elementos gregos “sotero” e “pólis”, Soterópolis, que quer dizer “cidade do Salvador”). De “Soterópolis”, derivamos “soteropolitano”, o adjetivo usado para os baianos da capital do estado.

Coisa capaz de irritar um purista, no entanto, é o chamado hibridismo, ou seja, a palavra formada de elementos de línguas diferentes, como televisão (que chega ao português pelo francês “télévision” ou pelo inglês “television”, mas contém o elemento grego “tele-” unido ao elemento latino “-visão”), burocracia (junção do francês “bureau” com o grego “-cracia”) e sambódromo (de “samba”, do banto, e “-dromo”, do grego), vocábulo criado em 1984 pelo saudoso Darcy Ribeiro, cuja morte acaba de completar 20 anos. Darcy era vice-governador do Rio na ocasião, quando idealizou a obra, que, projetada por Oscar Niemeyer, recebeu o nome de passarela Professor Darcy Ribeiro, mas ficou conhecida mesmo como “sambódromo”.

O purista repele com veemência essas palavras mestiças, bem como as forasteiras, os malfalados estrangeirismos, que “descaracterizam a língua”. O mesmo vale para os neologismos e as gírias. O que nutre a atitude purista é um ideal de conservação da língua, esta vista como um patrimônio que deve ser reverenciado e protegido de seus inimigos. O pressuposto dessa visão é que a língua em si é algo externo aos falantes.

Ocorre que as coisas não são tão simples assim. A língua é um bem coletivo que pertence a quem a fala, a todos e a cada um (mesmo quem não sabe escrever sabe falar e articular a gramática da língua). Hoje, com a popularização dos conhecimentos vindos da linguística, a ciência da linguagem, qualquer pessoa medianamente informada sabe que a língua é dinâmica e que as transformações são parte de sua permanência. Quem decide se um neologismo ou um estrangeirismo entra definitivamente na língua são os falantes, ou seja, o uso e, somente depois da consagração pelo uso, o termo é incorporado ao dicionário. Em suma, o que está em uso vale, o que está em desuso não vale mais – é o arcaísmo, aquela palavra que saiu de cena.

Como se vê, é vã a luta dos puristas. Eles não conseguem barrar a entrada dos estrangeirismos, embora talvez desejassem erguer um muro imaginário para confinar a última flor do Lácio, inculta e bela, em algum lugar de um suposto passado de esplendor e pureza, impermeável às inovações e às mudanças.

A beleza da expressão era, para eles, associada, entre outras coisas, a certos malabarismos sintáticos. Vejam-se os versos iniciais do Hino Nacional Brasileiro, que muita gente sabe de cor, mas nunca entendeu: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/ De um povo heroico o brado retumbante (As margens plácidas do [rio] Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico). Nos nossos dias, dificilmente esse tipo de construção seria visto como melhor do que outros – até porque é difícil de compreender. Nem está hoje a beleza do idioma em formas que caíram em desuso, como a mesóclise no português do Brasil, que, embora esteja aposentada, de vez em quando dá o ar da graça para enfeitar algum discurso de ocasião, que, afinal, soa antes postiço que propriamente belo.

É voz corrente que de médico e de louco todo o mundo tem um pouco. Parece que de purista também. Não falta gente moderna, bem informada, que trava discussões em redes sociais fazendo discurso de fundo purista. A figura de retórica predileta desse pessoal é a preterição, ou seja, aquele volteio de palavras que se usa para dizer que não se vai fazer aquilo que efetivamente se está fazendo.

Primeiramente, a pessoa critica os puristas, que são retrógrados, conservadores e não conhecem linguística; depois, pode até acrescentar explicações sobre o dinamismo da língua e mencionar a grande influência que o português recebeu do francês (os “galicismos”, que provocavam pruridos nos puristas de antanho e hoje soam como se fossem português puro-sangue). Nem sempre se lembram, no entanto, de que, provavelmente, se banidos da língua todos os estrangeirismos, não nos sobrariam um alfinete ou uma xícara de açúcar.

Muito bem. Depois de se apresentarem como conhecedores dos pressupostos (básicos) da linguística (grosso modo, o de que a língua muda e o de que não existe propriamente erro gramatical), vestem a casaca e desandam a vociferar contra o uso de estrangeirismos, vistos como erros de tradução cometidos por quem sabe mal o inglês, o que é, mais ou menos, digamos, uma vergonha. Citam-se os termos traduzidos incorretamente para, em seguida, mostrar a tradução correta em bom português.

Então estamos, na maior parte das vezes, diante de puristas disfarçados. A língua é indomesticável, mas certo modismo é intolerável, grosseiro, deselegante…, ou seja, vamos tentar domesticá-la.  O maior problema dessas aulas de tradução é que a questão nunca é tão simples quanto se afigura. Não vamos defender que a melhor tradução seja a que está mais próxima da cognação, prática muito comum que, por vezes, leva a impropriedades como confundir silício (“silicon”) com silicone. Nem sempre, porém, o que está em jogo é esse tipo de problema (os chamados “falsos cognatos”).

A cognação, de fato, leva à tradução por semelhança (“empoderar”, de “empower”) ou mesmo à adaptação de uma forma estrangeira (“printar”, de “print”, em vez de “imprimir”, por exemplo) e até à ressignificação de um termo, que se incorpora na língua como empréstimo semântico. É esse o caso de “submissão” (do inglês “submission”), largamente usado no meio acadêmico no sentido de “apresentar um trabalho para o exame ou apreciação de alguém”, emprego, aliás, já defendido por teóricos da tradução (veja-se a esse respeito o “Guia Prático de Tradução Inglesa”, de Agenor Soares dos Santos). O verbo “submeter” já se registra em dicionários com esse mesmo sentido; inserir o registro do substantivo “submissão” com explicitação desse significado é mera formalidade.

Em textos traduzidos do inglês, é muito comum vermos pessoas “devastadas” (“devastated”) diante de um fato trágico; quando o texto é feito em português, geralmente as pessoas ficam “arrasadas” ou “desoladas” diante do mesmo tipo de situação (e poderiam ficar “consternadas” ou “pesarosas”). É evidente que há influência da cognação, mas podemos falar em erro? “Desolado”, empregado nesse sentido, tem provável origem no francês “désolé”; “arrasar” hoje tem vários significados, inclusive o de sair-se muito bem em alguma atividade. Qual é o termo melhor?

O inglês é acolhido com tanto entusiasmo porque está associado à ideia de modernidade, de tecnologia, de comunicação sem fronteiras, uma gama de valores que se corporificam nas escolhas lexicais. É o caso de constatar o fato, não de julgá-lo.  Coibir o estrangeirismo, em si, não muda o que as pessoas sentem e pensam. É por isso que não adianta fazer qualquer tipo de lei que proíba o seu uso, como já se tentou por aqui e, diga-se de passagem, não só por aqui. Essa é uma das facetas, talvez a mais ingênua, da xenofobia.

Se os puristas da antiga tradição tinham lá suas convicções, os novos, em geral, nestes tempos fluidos, têm outras motivações: ou estão tentando exibir algum grau de erudição (não mais conhecimento de grego ou latim, mas de inglês mesmo), ou, coisa pior, estão tentando atingir aqueles de cujas posições ideológicas discordam.

As manifestações de indignação diante dos erros de português ou de alguma falta de fluência oral de um político ou de qualquer outra personalidade pública vêm quase sempre daqueles que divergem das ideias dessas pessoas ou do espectro ideológico a que elas pertencem, quando não são fruto do mais raso dos preconceitos, aquele que se volta contra quem teve menos oportunidades na vida.

Quando é o outro que usa estrangeirismo, vem à tona o Policarpo Quaresma que cada um guarda em si; quando é o outro que comete o erro de português, vem à tona o Rui Barbosa que quase ninguém leu, mas que permanece no imaginário como repositório da correção gramatical.

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Empoderar ou empoderecer? https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/07/06/empoderar-ou-empoderecer/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/07/06/empoderar-ou-empoderecer/#comments Wed, 06 Jul 2016 17:51:52 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=995 Não faz muito tempo, um leitor nos escreveu para corrigir uma palavra, que, segundo ele, a Folha de S.Paulo vem empregando de maneira incorreta.

O termo a que se referia era o verbo “empoderar”, que ele gostaria de ver corrigido para “empoderecer”, forma que aparece registrada no dicionário “Michaelis”. final portugues na folha

Segundo esse dicionário, “empoderar” é apenas uma variante de “apoderar”, ambos verbos pronominais (empoderar-se de algo, apoderar-se de algo), cujo sentido é basicamente o de tomar posse de alguma coisa. A mesma obra registra o verbete “empoderecer”, definido como a ação de “tornar poderoso”.

O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, que não é um dicionário (não traz definições, mas apenas a lista de palavras da língua), também registra “empoderecer”.

O que nenhum dos dois registra, porém, é um texto que abone esse uso, coisa extremamente importante, pois, como é bom lembrar, palavras não são criadas em laboratórios ou em supostas oficinas gramaticais. Não digo que, vez ou outra, não haja casos que nos desmintam quanto a isso. Alguém sabe de onde vêm palavras como “cardápio”, “convescote”, “ludâmbulo” ou “lucivéu”?

Essas são criações do filólogo brasileiro Antônio de Castro Lopes (1827-1901), que com elas pretendia evitar o uso dos estrangeirismos “menu” (francês), “picnic” (inglês), “tourist” (inglês) e “abat-jour” (francês). O fim da história é de conhecimento geral dos falantes: “cardápio” teve aceitação, mas não expulsou “menu”, “convescote” soa postiço e é bem menos usado  que o aportuguesamento “piquenique”, “turista” e “abajur” são aportuguesamentos dos termos estrangeiros, enquanto “ludâmbulo” e “lucivéu” não tiveram acolhida.

Em suma, quem define o destino das palavras é quem as usa (ou não). De tempos em tempos, surgem ímpetos nacionalistas a advogar uma suposta pureza da língua a ser mantida – pureza essa manifesta na rejeição a termos estrangeiros. Note-se que “empoderar” e “empoderamento” têm origem no inglês (“to empower” e “empowerment”). São claras adaptações das palavras estrangeiras. Será esse, pois, o motivo de serem postas em questão?

“Empoderecer”?

Vale dizer que o questionamento de nosso leitor ocorre também nas redes sociais, espaço em que as pessoas costumam defender pontos de vista com veemência. Lá estão os defensores do verbo “empoderecer”, que seria a forma “pura”, própria da língua portuguesa. O raciocínio baseia-se em analogia com fortalecer, empalidecer, enaltecer, engrandecer, envaidecer, enfraquecer etc., verbos que sugerem a ideia de transformação.  O que acolhe uma palavra nova na língua, no entanto, é o seu uso, que cabe aos dicionários registrar, de preferência abonado e/ou contextualizado.

Ademais, o sufixo “-ecer” não é a única terminação capaz de indicar a ideia de transformação (suave/ suavizar, preto/pretejar, verde/ esverdear, doce/ adoçar, macio/amaciar etc.) e,  por outro lado, esse mesmo sufixo pode indicar apenas o aspecto incoativo (de início) da ação, como em “amanhecer (começo da manhã), “entardecer” (começo da tarde) ou “anoitecer” (começo da noite).

Empoderar-se e apoderar-se

O que talvez incomode os que consideram errado o termo “empoderar” é o fato de haver registro dessa palavra como sinônimo de “apoderar” (está no “Michaelis”, indicado pelo leitor, e no “Aulete”). Se as pessoas usassem correntemente o termo “empoderar” com o sentido de “apoderar”, é muito provável que, de modo espontâneo, surgisse outro termo para traduzir o inglês “to empower”. Não parece ser, no entanto, o que ocorre. Tal situação tende a acomodar o novo sentido de “empoderar-se” (emancipar-se, adquirir voz na sociedade com base na consciência e na superação de uma condição opressiva), em oposição a “apoderar-se” (tomar posse de algo).

Convém observar o que ocorre em espanhol. O dicionário da Real Academia Española apresenta dois registros do verbo “empoderar”, um dos quais como sinônimo em desuso de “apoderar” e outro como neologismo (do inglês “to empower”), definido como “hacer poderoso o fuerte a un individuo o grupo social desfavorecido”.

O aparecimento de palavras novas é motivado por uma série de fatores sociais, historicamente explicáveis. Não há como desvincular as palavras de seus contextos de uso. Uma das fontes de neologismos são os estrangeirismos, fato que, embora possa desagradar a alguns, é normal. A  palavra, porém, só se dissemina quando há uma espécie de acordo entre os falantes.

Os dicionários

É claro que, no caso de que aqui tratamos, não se pode dizer que “a Folha” esteja empregando incorretamente a palavra, pois o termo já se difundiu entre os falantes brasileiros. A leitura de outros dicionários da língua portuguesa poderia trazer ao nosso leitor mais dados para a reflexão. Não se pode dizer que haja uniformidade quanto ao tema entre os nossos principais autores, o que se explica pelo fato de estarmos diante de um neologismo.

O dicionário “Aulete” (versão eletrônica e atualizada do célebre Caldas Aulete) faz coro com o “Michaelis”, trazendo “empoderar-se” como simples variante de “apoderar-se” (apossar-se, tomar posse de alguma coisa), e ignora o termo “empoderamento”.

“Houaiss”, por sua vez, registra “empoderamento” e ignora “empoderar”. Com base no inglês empowerment, define o termo primeiramente como “ato, processo ou efeito de dar poder a alguém ou a um grupo, ou de alguém ou um grupo tomá-lo” e, em seguida, como “conquista pessoal da liberdade pelos que vivem em posição de dependência econômica ou física ou de outra natureza; tomada de consciência dos direitos sociais desenvolvida pelos indivíduos ao poderem participar dos espaços de decisão”. O fato de o dicionário “Houaiss” registrar o substantivo, mas não o verbo, pode sinalizar que a entrada do substantivo “empoderamento” se deu antes da entrada do verbo, mas somente uma pesquisa de datação dos termos poderá, de fato, trazer informação segura sobre isso.

O dicionário “Aurélio” parece-nos ser o mais completo quanto ao tema, embora não traga datação das palavras. Registra tanto o substantivo “empoderamento” como o verbo “empoderar”, aludindo não só à origem inglesa da palavra como também ao uso que dela fez, na década de 80 do século passado, o grande educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997), autor do internacionalmente famoso livro “Pedagogia do Oprimido”, para quem o termo evocava o processo coletivo de aquisição de consciência social como caminho para realizar mudanças na sociedade.

Vejamos as definições do “Aurélio”:

empoderar – para traduzir o inglês to empower – neologismo: 1. Dar autoridade legal ou poder; 2. Restr. Dar poder a (alguém), esp. o de realizar tarefa(s), atividade(s), sem precisar da permissão de terceiros. 3. promover a conscientização e a tomada de poder (especialmente o de influência) de (pessoa ou grupo social). Int.P. 4. adquirir consciência e/ou conquistar poder e influência para realizar mudanças de ordem social, política, econômica e cultural.

empoderamento – de empoderar + mento , seja como tradução do inglês empowerment, seja como criação do educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997). Substantivo masculino. Neologismo 1. Ação, processo ou efeito de empoderar (-se). 2. Sociologia. Conquista e distribuição do poder de realizar ações, ao adquirir-se consciência social e conhecimento, de forma a produzir mudanças a partir destas aquisições. 3. Educação. Processo pelo qual indivíduos e grupos sociais passam a refletir sobre – e a tomar consciência de – sua condição e a de seus pares, e, assim, formulam e objetivam mudanças que levem à transformação da condição individual e coletiva. 4. Por extensão. Superação da falta de poder político e social, coletivo ou individual das populações pobres.

O registro do “Aurélio” demonstra a força que essas palavras têm hoje no português, o que nos autoriza dizer que, dificilmente, vamos substituí-las por “empoderecer” e “empoderecimento”, formas supostamente “melhores” ou mais “puras” que as adaptações do inglês.

“Empowerment”
O termo “empowerment” difundiu-se nos Estados Unidos na segunda metade do século 20 com o surgimento de movimentos emancipatórios das minorias (negros, mulheres, homossexuais, pessoas deficientes) em busca do pleno exercício da cidadania. A língua inglesa já tinha o verbo to empower, cujo significado era o de “dar a alguém mais controle sobre sua própria vida ou dar poder a alguém para realizar tarefas”, sentido esse que, como vemos, se expandiu para abranger uma nova realidade.

Barack-Obama-1 boate Pulse

Hoje os termos, substantivo e verbo, evocam com grande força os movimentos de conscientização e de superação de situações de opressão que persistem sob a camuflagem de um pretenso “estado natural das coisas”. Muito usada nos movimentos feministas, a palavra “empowerment” foi empregada pelo presidente Barack Obama recentemente, por ocasião do massacre ocorrido na boate Pulse, em Orlando, frequentada sobretudo pelo público LGBT: “O lugar em que foram atacados é mais que uma boate – é um lugar de solidariedade e empoderamento“. O emprego feito pelo presidente reforça o significado do termo como conquista coletiva de autonomia, emancipação das chamadas minorias. Não se trata, portanto, de termo restrito à bandeira feminista, muito menos de “jargão feminista”, como já se chegou a dizer.

Quem quiser se aprofundar sobre o tema poderá ler o interessante artigo de Rute Vivian Angelo Baquero, disponível na internet.

 

 

 

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