Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A gramática debochada do ministro https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/01/09/a-gramatica-debochada-do-ministro/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2020/01/09/a-gramatica-debochada-do-ministro/#respond Thu, 09 Jan 2020 15:31:27 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/WEINTRAUB-E-BOLSONARO-COCHICHO-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1448 A apresentação do ministro da Educação, Abraham Weintraub, no Twitter, “Meu Twitter, minhas regras”, em analogia ao slogan feminista “Meu corpo, minhas regras”, parece dizer respeito até mesmo às regras gramaticais. Suas mensagens continuam denunciando uma embaraçosa falta de intimidade com as letras, ainda mais constrangedora por emprestar um involuntário (?) ar de deboche à própria função que ele exerce.

Erros gramaticais são perdoáveis e muita gente os comete aqui ou acolá. Ocorre, no entanto, que a ortografia, por ser algo que se aprende mais pela leitura do que pelas regras em si, acaba sendo uma espécie de cartão de visita da pessoa que escreve.  Certas falhas denunciam deficit cultural, ausência de leitura, coisa que, aliás, Abraham já demonstrou em outras ocasiões. Confundir o nome do escritor Kafka (conhecido até de quem não o leu) com a iguaria da culinária árabe “kafta” (grafia corrente em restaurantes; na verdade, “cafta”, aportuguesamento do árabe “kufta”) não é algo fácil de relevar. É digno de esquetes de programas humorísticos popularescos.

Escrever “imprecionante” com “c” é algo que pode acontecer durante o processo de alfabetização –seja de criança, seja de adulto–, afinal, o som de “cê” pode ser grafado de diversas formas: com “s” de “sair” , com “c” de “certo”, com “ss” de “impressão”, com “ç” ou  “xc”, como em “exceção”. Com o tempo e o hábito da leitura, as pessoas naturalmente reconhecem as famílias de palavras (impressionante, impressionar, pressão, impressão, impresso) e a escrita se torna automática. Essa não deveria ser, portanto, uma questão para alguém que, tendo tido acesso à educação, ascendeu ao cargo de ministro da Educação.

Nessa posição, Abraham perde (ainda mais) credibilidade cada vez que desrespeita o vernáculo. Um pouco de leitura (de livros) pode ajudá-lo a pacificar suas querelas com a gramática. A cartilha “Caminho Suave”, recomendada pela Presidência da República, pode ser um bom começo.

Em tempos de elogio da “meritocracia”, fosse ele um motorista que não conhecesse as regras de trânsito, já teria sido demitido –a  menos, é claro, que seu chefe decidisse mudar o código de trânsito.

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Balbúrdia na ortografia https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/30/balburdia-na-ortografia/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/08/30/balburdia-na-ortografia/#respond Fri, 30 Aug 2019 23:25:56 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/05/WEINTRAUB-15569842995ccdb1ebb7f91_1556984299_3x2_lg-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1417 O ministro da Educação, Abraham Weintraub, cabulou mais uma aula de português. Neste 30 de agosto, caiu nas redes sociais um ofício assinado por ele em que a palavra “paralisação” aparece duas vezes grafada com a letra “z” e, de quebra, “suspensão” vem com “ç”, o que nos leva a crer que “incitar” com “s” não tinha sido um caso isolado.

Erros de grafia têm aspecto dúbio: por um lado, são grosseiros e dão vergonha como um rasgo nos fundilhos da calça; por outro, pertencem à camada superficial da língua, dado que sujeitos a uma convenção.

Muita gente deve estar pensando que talvez já tenha cometido os mesmos erros, afinal, confundir “s” com “z” e “s”, “ss” e “ç” é relativamente comum entre usuários da língua portuguesa. Nem por isso o ministro merece ser desculpado, pois, na posição que ocupa, tudo o que diz, faz e escreve também se reveste de valor simbólico. A sabedoria popular dá o veredicto: não pega bem.

Culpar o assessor ou um revisor distraído não diminui o mal-estar: quem assinou o texto foi o ministro da Educação. O mais provável, no entanto, é que o personagem nem se dê ao trabalho de eximir-se de culpa – afinal, que se pode esperar de quem chamou de “acepipes” os que pretendia chamar de “asseclas” e confundiu o conhecidíssimo escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) com um prato da culinária libanesa?

Resta extrair do episódio uma oportunidade de rever a gramática. O sufixo “-izar”, formador de verbos de caráter frequentativo (fiscalizar, agonizar) e causativo (demonizar, banalizar, purificar, realizar), é acrescentado a termos que não têm no radical as letras “s” ou “z” (de concreto fazemos concretizar; de economia, economizar; de ameno, amenizar e assim por diante). De baliza, no entanto, fazemos balizar, apenas com acréscimo de -ar (de cicatriz, cicatrizar; de ojeriza, ojerizar). Igualmente, apenas com a terminação -ar, de análise fazemos analisar, e de pesquisa, pesquisar.

Paralisação, paralisar, paralisia, essa família de palavras remete-nos à língua francesa, que nos deu paralisar via paralyser e paralisia via paralysie. Este último termo derivou do latim paralysis, já usado no sentido de “paralisia” como enfermidade; e ao latim o termo chegou pelo grego parálusis (“relaxamento, relaxamento dos nervos”).

Quanto à grafia de suspensão (e de outros substantivos abstratos cognatos de verbos), vale observar que, geralmente, a terminação -nsão dos substantivos tem correspondência com as  terminações -nder/-ndir dos verbos (ns — nd). Vejamos alguns exemplos: apreensão/apreender, ascensão/ascender, pretensão/pretender, distensão/distender, expansão/expandir, escansão/escandir, extensão/estender, compreensão/compreender, propensão/propender, suspensão/suspender.

Agora observemos alguns dos terminados em -ção e seus verbos correlatos: atenção/ater, detenção/deter, unção/ungir, contenção/conter, manutenção/manter, obtenção/obter, prevenção prevenir, intenção/intentar, promoção/promover, presunção/presumir, invenção/inventar, subsunção/subsumir, distinção/distinguir.

As regras (que são a expressão da regularidade, daquilo que é mais frequente) ajudam muito a entender a língua e, por conseguinte, a ter mais recursos de comunicação, mas é a familiaridade com a leitura de textos escritos na modalidade culta do idioma  que nos faz internalizar esse conhecimento. A ortografia, em particular, está bastante ligada à memória visual das palavras. Quem tentar orientar-se apenas pela escuta vai ter muitos problemas nessa área.

Em vez de se insurgir contra o fantasma do marxismo cultural, o ministro bem poderia lançar projetos de estímulo à leitura e de fomento à educação em todos os níveis.

 

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‘Incitar’ é com ‘c’, ministro, mas por que mesmo? https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/05/10/incitar-e-com-c-ministro-mas-por-que-mesmo/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/05/10/incitar-e-com-c-ministro-mas-por-que-mesmo/#respond Fri, 10 May 2019 16:59:43 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/05/WEINTRAUB-15569842995ccdb1ebb7f91_1556984299_3x2_lg-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1357 As gafes do atual ministro da Educação do governo Bolsonaro, um certo Abraham Weintraub, já foram tema de inúmeros comentários, e talvez os eleitores simpáticos ao governo tendam a achar exageradas as críticas.

(Fosse apenas esse o pecado do titular da pasta, talvez bastasse dar-lhe um puxão de orelha e dizer que “não pega bem” alguém na sua posição cometer erros de grafia, tidos, na idade adulta, como atestado de falta de intimidade com a língua escrita, portanto com a leitura.)

Qualquer um que tenha apreço pela educação está indignado com as ações do governo, que, sem projeto algum para a área, impõe um corte de verbas capaz de desestruturar todo o setor. Antes, porém, que alguém me pergunte se eu sou petista, volto a tratar do verbo “incitar”.

Ora, “insitar” ou “incitar”, com “s” ou com “c”, que diferença faz se a pronúncia é a mesma? Está demorando para alguém botar a culpa na língua portuguesa, que é “muito difícil”.

De fato, a nossa ortografia não é apenas fonética, coisa que, a bem da verdade, seria praticamente impossível, uma vez que a pronúncia está no campo da fala e esta é, por si mesma, instável e variada. Temos, portanto, dois princípios na base do sistema ortográfico: um deles é, sim, o fonético, e o outro é o etimológico.

O princípio etimológico considera a origem da palavra e, de modo geral, é o responsável pela existência de sons idênticos representados por letras diferentes. Conforme observamos a história das palavras, percebemos seus significados antigos e suas transformações no decorrer do tempo.

Para evitar certos erros de grafia, como esse do ministro, às vezes é suficiente observar algumas semelhanças entre palavras e, a partir disso, pelo menos “desconfiar” de que haja uma origem comum e – fatalmente – uma grafia comum. Palavras também pertencem a famílias, de modo que, como as pessoas, carregam traços comuns ao grupo e traços individuais.

“Incitar” e “excitar”, ambas as palavras têm a mesma origem latina: o particípio “citus”, do verbo “cieo”, que quer dizer “pôr em movimento”, “suscitar um movimento”. Note-se que “citar” é termo usado na tauromaquia no sentido de provocar o touro ao combate.

Vale atentar para os prefixos “in-” e “ex-“, que entram na formação dos dois termos. A oposição básica entre os dois se dá na direção do movimento, para dentro e para fora, respectivamente, fácil de perceber em pares como interno/ externo, interior/ exterior, importar/ exportar etc. Vale notar que o prefixo “in-“, por vezes, tem sentido intensivo (intensifica a ação), o que nos interessa aqui, em particular.

Em “excitar”, não é difícil compreender a ideia de movimento para fora (excitar os ânimos, por exemplo); o prefixo “in-” de “incitar”, por sua vez, assemelha-se ao de “impelir”, em ambos os casos prevalecendo a ideia de imprimir força a um movimento, ou seja, o sentido intensivo.

No português atual, “incitar” e “excitar” têm significados muito próximos, tanto que ambos são sinônimos de “estimular” (veja o que diz o dicionário Houaiss). O que distingue um de outro parece ser da ordem da sutileza e, sobretudo, do uso.

Poderíamos, a par disso, tentar aqui a interpretação de que “incitar” seria agitar algo (um sentimento) internamente, fazê-lo brotar, e “excitar” seria agitar algo (um sentimento) em direção ao exterior, ou seja, com o propósito de fazer sair (provocar reação física, fazer provocações). Daí, expressões como o incitar o ódio, incitar a compaixão, mas excitar os sentidos, excitar o apetite.

Na prática, bem como no Direito, quando falamos em incitação, o que temos em mente é o incentivo a uma ação. Constitui, aliás, prática delituosa a incitação ao crime, que é o estímulo ou incentivo a uma pratica criminosa feito em público, manifestamente.

As distinções semânticas, como vemos, são sutis, pois as palavras estão sujeitas a modificações no decorrer do tempo, por meio das quais vão se adaptando às novas necessidades e situações. A ortografia, embora esteja na camada superficial da língua, proporciona um importante diálogo com a história. Ao estudar a língua, é sempre bom ter um olho no presente e um no passado. Aliás, não só ao estudar a língua.

 

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