Thaís Nicoleti https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br Sun, 25 Jul 2021 11:00:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O monstro da lagoa https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/02/27/o-monstro-da-lagoa/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2019/02/27/o-monstro-da-lagoa/#respond Wed, 27 Feb 2019 15:56:22 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/VÉLEZ-RODRIGUES-FOTO-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1344 A determinação de que estudantes cantassem o hino nacional todos os dias, encaminhada às escolas do país pelo ministro Vélez Rodrigues, não é o maior dos problemas da última gafe do Ministério da Educação, que, há menos de um mês, virou piada ao publicar em rede social uma vexatória mensagem em resposta a uma reportagem, na qual, na falta de qualquer argumento razoável, acusava o jornalista de ter sido treinado pela KGB, o serviço secreto soviético.

É fato, no entanto, que quem, tendo frequentado a escola durante o regime militar, teve de cantar o hino em posição de sentido, dia após dia, associa de imediato esse presumível respeito aos símbolos nacionais aos demais “valores” do governo ditatorial que tomou o país por 20 anos.

Ainda que seja normal em algum momento da vida escolar aprender o hino nacional – sendo, afinal, de praxe entoá-lo em cerimônias oficiais ou eventos esportivos internacionais –, para isso não se faz necessário implantar disciplina militar, menos ainda obrigar os alunos a levar a mão ao peito, como se prestassem homenagem a alguma divindade. O efeito, aliás, pode ser o contrário, como relata o colega Hélio Schwartsman.

O pior em todo esse episódio, porém, foi a carta do ministro, a ser obedientemente lida por professores e diretores diante de seus alunos, instados no final a repetir o bordão da campanha bolsonarista, conclusão do texto:

“Brasileiros! Vamos saudar o Brasil dos novos tempos e celebrar a educação responsável e de qualidade a ser desenvolvida na nossa escola pelos professores, em benefício de vocês, alunos, que constituem a nova geração. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos!”

Para piorar o que parecia não ter como ficar pior, havia a determinação de que os alunos fossem filmados enquanto cantassem o hino nacional e de que o vídeo fosse enviado ao MEC acompanhado dos nomes de professores e diretores – em cena de doutrinação explícita.

Em um governo que defende uma escola “sem partido”, é muita falta de coerência. Fujam da “doutrinação marxista”, que é como chamam qualquer tentativa de fazer aflorar o espírito crítico dos estudantes, e sejam abduzidos pela doutrinação pentecostal-militarista do partido do governo.

A reação nas redes sociais, bem como nos veículos da imprensa (e chamo a atenção para o texto do colega Ranier Bragon), não demorou, e o ministro recuou da obrigatoriedade de fazer a palavra de ordem da campanha eleitoral ser ecoada nas escolas.

Enquanto isso, contudo, já havia uma escola atendendo voluntariamente ao agora “pedido” do ministro. Bolsonaristas, os que ainda não se desencantaram com dois meses de noticiário,  podem, atropelando a lei, induzir as crianças a fazer o vídeo nas escolas, e pais igualmente pertencentes a esse grupo político poderão autorizar a divulgação das imagens – tudo voluntariamente, é claro. Enfim, a polarização vai se instalar no ambiente escolar, onde o que está em jogo é a formação dos jovens e a sua preparação para o pleno exercício da cidadania num país democrático e, é bom lembrar, signatário da Declaração dos Direitos Humanos.

O fato é que atitudes desse tipo (sabe-se lá o que ainda virá) despertam monstros adormecidos no fundo da lagoa, que, com a falta de traquejo de quem acaba de sair das trevas, voltam, sem nenhuma sutileza, a se apresentar como modelos possíveis.

Veja-se o professor Eduardo Lobo Botelho Gualazzi, da Faculdade de Direito da USP, que acaba de divulgar entre os alunos texto em que reforça preconceitos e estereótipos (pobres o são por se terem recusado a trabalhar, ativistas de esquerda são “energúmenos”, pessoas LGBT são “aberrações”, casamentos devem dar-se “entre homem e mulher da mesma etnia”) e finalmente, como se ainda precisasse, declara ter votado na turma que está no poder (Bolsonaro, Major Olímpio, Doria etc.).

Cada vez que um ministro faz uma maluquice, da qual volta atrás por meio de algum “post” em redes sociais (em geral, sob a mais esfarrapada das desculpas), um monstro ganha salvo-conduto para emergir do fundo da lagoa.

 

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Declarações não são bravatas https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/10/06/declaracoes-nao-sao-bravatas/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2018/10/06/declaracoes-nao-sao-bravatas/#respond Sat, 06 Oct 2018 14:46:16 +0000 https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/ELE-NÃO-STRINGER-REUTERS-320x213.jpg https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1316 “Ai, bota aqui/ Ai, bota aqui o seu pezinho/ Seu pezinho bem juntinho com o meu/ E depois não vá dizer que você se arrependeu!”

Não é novidade para ninguém que o candidato favorito ao cargo de presidente da República é pródigo em declarações ofensivas a mulheres, pessoas LGBT, negros, indígenas, pobres etc. Será que declarar essas coisas tem alguma importância?

Seus eleitores, excetuados aqui os homens brancos heterossexuais bem-sucedidos (em tese, não atingidos pelas diatribes do candidato), costumam minimizar o efeito dessas declarações, tomadas como gestos de sinceridade ou bravatas inconsequentes, mera expressão do “jeitão de machão” dele etc.

Como explicar a adesão feminina ao candidato que aceita como normal que mulheres (bonitas) sejam alvo de estupro? Ainda que não defenda o ato em si, ele o toma como resultado de um instinto normal em homens viris, cabendo, portanto, à mulher dar-se ao respeito, vestir-se adequadamente, esconder a beleza tentadora, a fim de que o homem consiga conter-se.

O que subjaz a esse discurso é que homens viris desejam estuprar, mas, é claro, devem tentar conter-se na maior parte das vezes. A solução para o problema passa, nesse tipo de raciocínio, pela contenção e, quando isso não funciona, pela punição.

Seria muito melhor pensar que os homens não são todos potenciais estupradores que têm de se conter diante de uma mulher que os atraia, que virilidade não é isso. É a mudança de mentalidade que traz o respeito à mulher, o qual implica vê-la como um ser dotado de inteligência, sujeito de suas vontades, não como mero objeto ou apêndice, a quem cabe apenas a gerência do lar de um homem.

O mesmo vale para os gays. Não é razoável dizer que preferia ver morto um filho gay ou dizer que não tem um filho gay porque deu aos seus boa educação em casa. Gays mais jovens, brancos e bem-sucedidos ou oriundos de famílias mais abastadas, porém, podem achar que as “bravatas” do candidato não têm o poder de interferir na sua vida e nas suas conquistas.

Mulheres brancas, casadas, ricas ou apenas bem-sucedidas, igualmente podem achar que nada disso é com elas, que ele é “machão”. Negros e afrodescendentes de modo geral, igualmente, se gozam de uma situação econômica boa ou razoável, também podem achar que as declarações do candidato não vão mudar a sua vida, podem até achar que não existe racismo na sociedade.

O fato é que as lutas das minorias (minorias de poder, não minorias numéricas) por reconhecimento e respeito vão dando resultado aos poucos, não de uma só vez. É por isso que, felizmente, há mulheres, LGBTs e afrodescendentes que já conseguiram galgar posições na sociedade, bem como pessoas de origem pobre que conseguiram ascender economicamente. Essas pessoas são, sim, fruto de seus esforços e de sua luta pessoal, mas também são fruto da luta coletiva que se empreende em favor delas, luta que jamais foi encampada por regimes de extrema direita.

Em suma, o ambiente de liberdade é o que permite que as pessoas desenvolvam suas potencialidades e se expressem como quiserem, respeitando umas às outras. Declarações vindas de um candidato a presidente da República não são palavras ditas ao vento ou bobagens inconsequentes ditas em reuniões privadas. Ao serem manifestadas em público, elas reivindicam legitimidade. Preconceitos que deveriam estar enterrados ganham o status de “opinião”.

Será que nós queremos uma sociedade que legitima o preconceito racial, a misoginia, a homofobia, a segregação dos mais pobres (sobre os quais recai toda a responsabilidade pelos crimes), a censura a livros e obras de arte, a solução dos problemas pela força, pondo as pessoas armadas umas contra as outras?

Nas redes sociais, muitas vezes faz sucesso quem é debochado, iconoclasta, aquele sujeito que parece comum, “igual a todo o mundo”. Talvez esse critério de valor não seja o melhor na hora de escolher o representante máximo da nação. A fanfarronice de hoje será lei amanhã. Se eleitas as forças retrógradas, acordaremos no dia seguinte sob a nuvem negra do preconceito e de todo tipo de rancor.

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Puristas de ontem e de hoje https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/02/19/puristas-de-ontem-e-de-hoje/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2017/02/19/puristas-de-ontem-e-de-hoje/#comments Sun, 19 Feb 2017 16:07:07 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1155 Antigamente existiam os puristas propriamente ditos, aqueles indivíduos que tomavam para si a missão de defender o idioma, o que se traduzia no incansável combate à influência estrangeira e na busca de um estilo elegante e correto. Eram geralmente pessoas detentoras de erudição, como o conhecimento de grego e latim.

Para essa turma, o princípio da correção gramatical nem de longe admitiria o grau de controvérsia que hoje se vê. No máximo, as tertúlias de gramáticos girariam em torno do uso que os clássicos fizeram de certa palavra ou construção sintática. O conceito de elegância, ligado ao de correção e de emprego de figuras de linguagem, é sempre difícil de definir, mas soava como um acordo tácito entre aqueles que pretendiam fazer bom uso da língua. Imitar os bons autores era, assim, caminhar na direção correta, sem sobressaltos e hesitações.

Vale notar que, do ponto de vista dos puristas, o grego e o latim sempre foram os legítimos fornecedores de elementos para compor palavras. Um bom exemplo disso está no gentílico “soteropolitano”, atribuído a quem nasce em Salvador. Chega-se a esse termo partindo da helenização do nome da cidade (de Salvador faz-se, com os elementos gregos “sotero” e “pólis”, Soterópolis, que quer dizer “cidade do Salvador”). De “Soterópolis”, derivamos “soteropolitano”, o adjetivo usado para os baianos da capital do estado.

Coisa capaz de irritar um purista, no entanto, é o chamado hibridismo, ou seja, a palavra formada de elementos de línguas diferentes, como televisão (que chega ao português pelo francês “télévision” ou pelo inglês “television”, mas contém o elemento grego “tele-” unido ao elemento latino “-visão”), burocracia (junção do francês “bureau” com o grego “-cracia”) e sambódromo (de “samba”, do banto, e “-dromo”, do grego), vocábulo criado em 1984 pelo saudoso Darcy Ribeiro, cuja morte acaba de completar 20 anos. Darcy era vice-governador do Rio na ocasião, quando idealizou a obra, que, projetada por Oscar Niemeyer, recebeu o nome de passarela Professor Darcy Ribeiro, mas ficou conhecida mesmo como “sambódromo”.

O purista repele com veemência essas palavras mestiças, bem como as forasteiras, os malfalados estrangeirismos, que “descaracterizam a língua”. O mesmo vale para os neologismos e as gírias. O que nutre a atitude purista é um ideal de conservação da língua, esta vista como um patrimônio que deve ser reverenciado e protegido de seus inimigos. O pressuposto dessa visão é que a língua em si é algo externo aos falantes.

Ocorre que as coisas não são tão simples assim. A língua é um bem coletivo que pertence a quem a fala, a todos e a cada um (mesmo quem não sabe escrever sabe falar e articular a gramática da língua). Hoje, com a popularização dos conhecimentos vindos da linguística, a ciência da linguagem, qualquer pessoa medianamente informada sabe que a língua é dinâmica e que as transformações são parte de sua permanência. Quem decide se um neologismo ou um estrangeirismo entra definitivamente na língua são os falantes, ou seja, o uso e, somente depois da consagração pelo uso, o termo é incorporado ao dicionário. Em suma, o que está em uso vale, o que está em desuso não vale mais – é o arcaísmo, aquela palavra que saiu de cena.

Como se vê, é vã a luta dos puristas. Eles não conseguem barrar a entrada dos estrangeirismos, embora talvez desejassem erguer um muro imaginário para confinar a última flor do Lácio, inculta e bela, em algum lugar de um suposto passado de esplendor e pureza, impermeável às inovações e às mudanças.

A beleza da expressão era, para eles, associada, entre outras coisas, a certos malabarismos sintáticos. Vejam-se os versos iniciais do Hino Nacional Brasileiro, que muita gente sabe de cor, mas nunca entendeu: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/ De um povo heroico o brado retumbante (As margens plácidas do [rio] Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico). Nos nossos dias, dificilmente esse tipo de construção seria visto como melhor do que outros – até porque é difícil de compreender. Nem está hoje a beleza do idioma em formas que caíram em desuso, como a mesóclise no português do Brasil, que, embora esteja aposentada, de vez em quando dá o ar da graça para enfeitar algum discurso de ocasião, que, afinal, soa antes postiço que propriamente belo.

É voz corrente que de médico e de louco todo o mundo tem um pouco. Parece que de purista também. Não falta gente moderna, bem informada, que trava discussões em redes sociais fazendo discurso de fundo purista. A figura de retórica predileta desse pessoal é a preterição, ou seja, aquele volteio de palavras que se usa para dizer que não se vai fazer aquilo que efetivamente se está fazendo.

Primeiramente, a pessoa critica os puristas, que são retrógrados, conservadores e não conhecem linguística; depois, pode até acrescentar explicações sobre o dinamismo da língua e mencionar a grande influência que o português recebeu do francês (os “galicismos”, que provocavam pruridos nos puristas de antanho e hoje soam como se fossem português puro-sangue). Nem sempre se lembram, no entanto, de que, provavelmente, se banidos da língua todos os estrangeirismos, não nos sobrariam um alfinete ou uma xícara de açúcar.

Muito bem. Depois de se apresentarem como conhecedores dos pressupostos (básicos) da linguística (grosso modo, o de que a língua muda e o de que não existe propriamente erro gramatical), vestem a casaca e desandam a vociferar contra o uso de estrangeirismos, vistos como erros de tradução cometidos por quem sabe mal o inglês, o que é, mais ou menos, digamos, uma vergonha. Citam-se os termos traduzidos incorretamente para, em seguida, mostrar a tradução correta em bom português.

Então estamos, na maior parte das vezes, diante de puristas disfarçados. A língua é indomesticável, mas certo modismo é intolerável, grosseiro, deselegante…, ou seja, vamos tentar domesticá-la.  O maior problema dessas aulas de tradução é que a questão nunca é tão simples quanto se afigura. Não vamos defender que a melhor tradução seja a que está mais próxima da cognação, prática muito comum que, por vezes, leva a impropriedades como confundir silício (“silicon”) com silicone. Nem sempre, porém, o que está em jogo é esse tipo de problema (os chamados “falsos cognatos”).

A cognação, de fato, leva à tradução por semelhança (“empoderar”, de “empower”) ou mesmo à adaptação de uma forma estrangeira (“printar”, de “print”, em vez de “imprimir”, por exemplo) e até à ressignificação de um termo, que se incorpora na língua como empréstimo semântico. É esse o caso de “submissão” (do inglês “submission”), largamente usado no meio acadêmico no sentido de “apresentar um trabalho para o exame ou apreciação de alguém”, emprego, aliás, já defendido por teóricos da tradução (veja-se a esse respeito o “Guia Prático de Tradução Inglesa”, de Agenor Soares dos Santos). O verbo “submeter” já se registra em dicionários com esse mesmo sentido; inserir o registro do substantivo “submissão” com explicitação desse significado é mera formalidade.

Em textos traduzidos do inglês, é muito comum vermos pessoas “devastadas” (“devastated”) diante de um fato trágico; quando o texto é feito em português, geralmente as pessoas ficam “arrasadas” ou “desoladas” diante do mesmo tipo de situação (e poderiam ficar “consternadas” ou “pesarosas”). É evidente que há influência da cognação, mas podemos falar em erro? “Desolado”, empregado nesse sentido, tem provável origem no francês “désolé”; “arrasar” hoje tem vários significados, inclusive o de sair-se muito bem em alguma atividade. Qual é o termo melhor?

O inglês é acolhido com tanto entusiasmo porque está associado à ideia de modernidade, de tecnologia, de comunicação sem fronteiras, uma gama de valores que se corporificam nas escolhas lexicais. É o caso de constatar o fato, não de julgá-lo.  Coibir o estrangeirismo, em si, não muda o que as pessoas sentem e pensam. É por isso que não adianta fazer qualquer tipo de lei que proíba o seu uso, como já se tentou por aqui e, diga-se de passagem, não só por aqui. Essa é uma das facetas, talvez a mais ingênua, da xenofobia.

Se os puristas da antiga tradição tinham lá suas convicções, os novos, em geral, nestes tempos fluidos, têm outras motivações: ou estão tentando exibir algum grau de erudição (não mais conhecimento de grego ou latim, mas de inglês mesmo), ou, coisa pior, estão tentando atingir aqueles de cujas posições ideológicas discordam.

As manifestações de indignação diante dos erros de português ou de alguma falta de fluência oral de um político ou de qualquer outra personalidade pública vêm quase sempre daqueles que divergem das ideias dessas pessoas ou do espectro ideológico a que elas pertencem, quando não são fruto do mais raso dos preconceitos, aquele que se volta contra quem teve menos oportunidades na vida.

Quando é o outro que usa estrangeirismo, vem à tona o Policarpo Quaresma que cada um guarda em si; quando é o outro que comete o erro de português, vem à tona o Rui Barbosa que quase ninguém leu, mas que permanece no imaginário como repositório da correção gramatical.

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Eles são lindos, mas… https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/06/23/eles-sao-lindos-mas/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/06/23/eles-sao-lindos-mas/#comments Thu, 23 Jun 2016 23:08:37 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=1003 Uma coordenadora de escola infantil envia um bilhete à mãe de dois alunos gêmeos de três anos de idade com os seguintes dizeres:

Olá! Mamãe Débora, peço-lhe se possível aparar ou trançar o cabelinho dos meninos, eles são lindos, mais (sic) eu ficaria mais feliz com o cabelo deles mais baixo ou preso. Beijos, Fran. portugues na rua (1)

A mãe, indignada com a atitude que considerou racista, põe o bilhete nas redes sociais, e o assunto vira notícia. Louvemos o imenso poder dessas redes de propalar informação com a rapidez de um relâmpago.

Quantas mães de alunos já terão recebido bilhetinhos desse tipo? A dona da escola, mãe da referida coordenadora, não vê nenhum problema na mensagem.

Tirante os lamentáveis erros gramaticais do bilhete redigido por uma professora, que aparentemente não consegue diferenciar “mais” de “mas” nem ponto final de vírgula, tentemos entender, nas linhas e nas entrelinhas, onde está o problema.

Termos como “mamãe”, “cabelinho”, “lindos” e “beijos, Fran” parecem ali postos para demonstrar carinho, uma espécie de embalagem da mensagem principal. A frase “eles são lindos” seguida do que deveria ser a conjunção adversativa “mas”, no entanto, desmonta a ideia e entra no assunto: corte ou trance os cabelos das crianças. Por que motivo?

O motivo é, segundo o texto, deixar a coordenadora da escola “mais feliz”. Por que a pessoa ficaria “mais feliz” se as crianças disciplinassem os cabelos crespos em tranças ou simplesmente os tivessem cortados? Seria porque os cabelos são um traço étnico que é preciso disfarçar?

As supostas palavras de carinho do bilhete, ingênua tentativa de camuflar preconceitos, mais parecem insultos. Tudo indica que o assunto vá ser resolvido na Justiça.

Que o episódio sirva de lição para todos aqueles que se propõem trabalhar na área de educação. A tarefa do educador pressupõe uma visão de mundo liberta das amarras do preconceito.

 

 

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Palavras carregam recortes do mundo https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/06/22/palavras-carregam-recortes-do-mundo/ https://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/06/22/palavras-carregam-recortes-do-mundo/#comments Wed, 22 Jun 2016 18:58:29 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/?p=999 Um termo pode revelar mais de quem o usa do que daquilo que deveria nomear. É por essas e por outras que nunca se pode tratar a língua como uma ciência exata. portugues em dia

Aquele que, para alguns, é teimoso ou obsessivo, para outros, pode ser apenas determinado; o que é enfadonho para uns é meticuloso para outros; o irresponsável de uns pode ser o ousado de outros; o que uns chamam de pessimismo outros chamam de realismo. Impeachment ou golpe, eis uma questão do momento (vale lembrar que o que houve em 1964 no Brasil, embora seja comumente chamado de golpe militar, ainda tem quem o chame de revolução).

Como vemos, as palavras carregam uma espécie de recorte da realidade, portanto a escolha de cada uma delas revela o modo como a pessoa vê o mundo.

Não faz muito tempo, era comum usarem a expressão “de cor” em referência a pessoas negras. Tratar uma característica natural de uma pessoa (como a cor de sua pele) com um eufemismo faz parecer que a característica é, de alguma forma, um traço negativo, algo a ser disfarçado. Em geral, quem usava “de cor” no lugar de “negro” o fazia em tom de cochicho, quase como se pedisse ao interlocutor permissão para dizer um palavrão.

POLITICAMENTE CORRETO

Nos Estados Unidos da América, a palavra “nigger” é que é pejorativa, altamente ofensiva. Por lá, usam-se os termos “afro-american” e “afrodescendant”, fruto de ações afirmativas. No Brasil, o termo “afrodescendente” aparece sobretudo em traduções do inglês, mas, salvo engano, não é um termo disseminado entre os falantes.

Entre as ações afirmativas, que visam a dar voz às minorias, está o estímulo ao emprego de termos chamados de politicamente corretos, uma forma de introduzir um recorte livre de preconceitos arraigados. O uso dessas palavras é, portanto, parte de um processo de reeducação.

As pessoas que têm algum tipo de deficiência física ou intelectual costumam ser chamadas de “portadores de necessidades especiais”. Embora essa expressão, que tenta abranger num só grupo pessoas com quaisquer tipos de deficiência, seja usada como politicamente correta, aqueles que ela procura nomear pensam de modo diverso, pois repelem o termo “portador”. Vejamos por quê.

Uma consulta ao verbete “portador” do dicionário “Houaiss” traz-nos, entre vários outros significados, estes dois:

  1. que ou aquele que apresenta certa característica diferencial [vagas para (pessoas) portadoras de deficiência]
  2. infectologia – que ou aquele que se encontra infectado por germes de doença [são (crianças) portadoras de malária]

Já que se buscam formas politicamente corretas (ou afirmativas) de denominar pessoas com deficiência, seria melhor escolher um termo que não servisse também a algo negativo, associado à ideia de doença, sobretudo porque ainda é comum na sociedade a ideia (falsa!) de que a deficiência é uma doença.

O termo “especial”, usado não só na locução “necessidades especiais” como também na alusão a certas síndromes (fulano tem um filho especial), substituiu o antigo “excepcional”, relativo à ideia de “exceção”, que aparece definido no “Houaiss”, entre outras acepções, assim:

  1. diz-se de ou indivíduo que tem deficiência mental [baixo QI (quociente de inteligência)], física [deformação do corpo] ou sensorial [cegueira, surdez etc.]

 

“Especial”, naturalmente, é um termo mais adequado, pois substitui a ideia de exceção pela de especificidade. Como sabemos, no entanto, “especial” carrega fortemente a noção de superioridade (excelente, fora de série, capaz de evocar coisas boas, aquilo que tem vantagens extras etc.), o que pode fazer parecer que se está empregando um eufemismo. O emprego de “necessidades específicas” talvez fosse mais adequado.

“Específico”, todavia, não resolve o emprego genérico pretendido por quem diz ter um “filho especial” (não se diria “específico” nesse caso, em que se faz alusão, geralmente, a alguma síndrome). Não é difícil perceber que estamos num terreno delicado, portanto sujeitos a errar na tentativa de acertar.

UM NOVO OLHAR, UMA NOVA ATITUDE

Certamente mais importante que os termos é a atitude que os acompanha. Embora seja bem-intencionado (e importante), o vocabulário politicamente correto, por si só, não basta. É preciso reeducar o olhar a fim de ver o outro como outra possibilidade, outra condição, outro modo de estar no mundo. Isso significa não ver o outro filtrado pelo deficit, pelo sinal negativo, mas apenas como diferente, se tanto.

Não poderia aqui deixar de indicar a leitura do comovente texto de Gregório Duvivier, publicado na Folha, em que, em seu habitual estilo descontraído, trata dessa questão com muita sensibilidade.

recomendados thais 2“MALACABADO”

Menos ainda poderia deixar de citar todos os textos do blog Assim Como Você, de Jairo Marques, colunista da Folha, que, há vários anos, vem trabalhando nesse processo de reeducação do olhar das pessoas.

Jairo, ora provocador em sua linguagem, ora comovente em suas descrições, mas, sobretudo destemido, porque não teme mostrar suas emoções, acaba de publicar seu primeiro livro.

Desde o título, “Malacabado”, o autor desafia o esforço da linguagem politicamente correta. Não quer, no entanto, dizer que esse empenho não seja válido. Ao dizer “malacabado”, engolindo o hífen da palavra e dando a ela um tom jocoso, Jairo provoca o leitor (eu sei que é assim que você me vê). Paraplégico desde os seis meses de idade, em decorrência da poliomielite, o autor vai narrando histórias de sua vida, que fazem chorar, mas também fazer rir ou, mais que isso, fazem refletir.

Quem estiver em São Paulo na próxima terça-feira, 28 de junho, poderá, a partir das 18h30, trocar um dedo de prosa com o Jairo Marques, que lançará o seu “Malacabado” na Livraria Martins Fontes, da avenida Paulista (a loja fica no número 509).

 

 

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