E agora, José?

Thaís Nicoleti

Quem não conhece a célebre expressão? Pois saiba que ela é o verso que se repete insistentemente no famoso poema “José”, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1942. Caiu em domínio público e passou a ser usada sempre que alguém está diante de dificuldades, num beco sem saída, em busca de uma solução.

“José”, segundo a crítica, é o próprio poeta, mas pode ser qualquer pessoa, “qualquer José”. Hoje, como singela homenagem ao poeta, na data em que, vivo fosse, completaria 110 anos, lembramos o poema “José”, que foi musicado por Paulo Diniz (http://letras.mus.br/paulo-diniz/102398).

JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho do mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

(In: “José”, 1942)

Observação: a primeira estrofe do poema “José” tinha sido inadvertidamente quebrada na primeira postagem do texto, o que já está corrigido na versão ora disponível. Deleitem-se com Drummond, caros leitores!

Reler a obra de Drummond é sempre um prazer. São muitos os poemas capazes de suscitar importantes reflexões. Fica aqui, do livro “Sentimento do Mundo”, o poema “Mundo Grande”:

Mundo Grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem… sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo…
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! nós te criaremos.

(do livro “Sentimento do Mundo”, 1940)

Comentários

  1. Se o momento de sua composição fosse o atual, certamente o Drummond faria uma pequena complementação ao nome do personagem, ou seja, e agora José Serra?

    1. Não creio. Ao individualizar o personagem, o autor estaria matando a universalidade própria dessa poesia – e Drummond jamais faria isso. Como está, o poema questiona todos os Josés (da Silva, Serra, Dirceu, Genoino, etc.), além de todas as pessoas, quaisquer que sejam seus nomes reais. Pois passamos a ser, todos nós, simplesmente Josés, a quem o poeta pergunta: “E agora?”

  2. Cara Thaís, vou te contar uma coisa que aconteceu comigo,

    Excursão para Visconde de Mauá

    Quando: meados da década de 90

    Cerca de 30 viajantes (todos de São Paulo); destaco os seguintes:

    Sandra → eu me apaixonei por ela

    Pedro → extrovertido, boa pinta, sabia tocar violão

    Em suma: a Sandra gostou do Pedro; ele não se interessou por ela

    Antes de regressarmos, cometi um pecadinho: sorrateiramente, obtive o seu endereço residencial.

    Dois ou três dias depois da viagem, o Homem-Audácia-Quase-Zero abriu, finalmente, o seu coração.

    A carta terminava assim:

    No meio do caminho tinha um Pedro
    tinha um Pedro no meio do caminho
    tinha um Pedro
    no meio do caminho tinha um Pedro.

    *Ela não respondeu; nunca soube o que pensou

    Um grande abraço a você e aos seus leitores

  3. Como não sou muito bom com a gramática, fico lendo todas as publicações. E com isso estou sempre aprendendo! Um grande abraço a Thaís Nicoleti.

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