Entenda os “acentos facultativos”

Thaís Nicoleti

Antes de começarmos a tratar do sistema de hifenização proposto pelo novo Acordo Ortográfico, vamos rever e fixar alguns pontos relativos à acentuação.

Muita gente reclama  (com razão) da incoerência de suprimirmos o acento diferencial da forma verbal “pára” e mantermos o da forma verbal “pôr”. Vale a pena transcrever um trecho do texto do Acordo:

Base VIII – Da acentuação gráfica das palavras oxítonas

3º) Prescinde-se de acento gráfico para distinguir palavras oxítonas homógrafas, mas (…) heterofônicas, do tipo de cor (ô), substantivo, e cor (ó), elemento da locução de cor; colher (ê), verbo, e colher (é), substantivo. Excetua-se a forma verbal pôr, para a distinguir da preposição por.

Esse é o trecho final do texto da Base VIII do Acordo, que deu a justificativa para a manutenção do acento de “pôr” (verbo). O curioso é que não há distinção de pronúncia entre a forma verbal e a preposição, como há em “saber de cor” e “ter uma cor“.

Lendo o artigo 9º da Base IX do mesmo Acordo, temos o seguinte:

Prescinde-se, quer do acento agudo, quer do circunflexo, para distinguir palavras paroxítonas que, tendo respectivamente vogal (…) tônica aberta ou fechada, são homógrafas de palavras proclíticas. Assim, deixam de se distinguir pelo acento gráfico: para (á), flexão de parar, e para, preposição (…) etc.

Nesse artigo, estão arrolados os casos de “pelo” e de “polo”, já explicados anteriormente. Note, entretanto, que o item termina com um “etc.”, que nos permite nele enquadrar casos semelhantes, que, porventura, não tenham sido explicitados. É nesse “etc.” que está, por exemplo, a supressão dos acentos das formas do verbo “coar” (tu coas, ele coa), que antes se opunham às formas átonas “coa” e “coas”, fruto da contração da preposição “com” com os artigos femininos “a” e “as”, respectivamente. O substantivo “coa” (ato de coar) também perdeu o acento.

Ao conjugarmos no presente do indicativo o verbo “coar”, temos eu coo, tu coas, ele coa (no lugar das antigas formas eu côo, tu côas, ele côa). “Coo”, como “voo”, “enjoo” e as formas de primeira pessoa do singular dos verbos terminados em -oar e -oer em geral (excetuando-se naturalmente os defectivos), perdeu o acento.   Trata-se do princípio enunciado no artigo 8º da Base IX do Acordo.

O verbo “pôr” deveria ter sido incluído nesse mesmo “etc.”. O que impediu que se fizesse isso foi o texto do artigo 3º da Base VIII, reproduzido acima. Debates à parte, dado que, ao que tudo indica, Inês é morta (pelo menos, por enquanto!), deixemos por ora o nosso verbo “pôr” com o seu velho acento diferencial.

Muito bem. Agora o mais curioso: criou-se o acento facultativo. Parece estranho? Vamos entender. Trata-se dos acentos de “fôrma” (substantivo/”molde”) e de “dêmos” (forma verbal do modo subjuntivo).

“Facultativo” aqui não significa simplesmente usar ou não sem qualquer critério. Não é isso, tanto que essas formas acentuadas não são registradas em dicionários atualizados nem mesmo na base de dados do Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras, documento que é a referência oficial no Brasil das grafias do nosso português.

O que ocorre é a possibilidade de empregar esses acentos caso o contexto não permita interpretar satisfatoriamente a intenção do redator. Um contraexemplo é o caso de “pão de forma”. Não há necessidade de explicitar a pronúncia fechada do “ô”. É claro que poderá surgir, sim, alguma situação em que não se trate claramente de “pão de forma”. Alguém poderá descrever certo pão assim: “um pão de forma arredondada”. Nesse caso, o adjetivo “arredondada” desfaz qualquer confusão e o acento diferencial não seria cabível. Enfim, não serão muito corriqueiras as situações em que poderá ser útil lançar mão dessa possibilidade.

O conhecido poema “Os Sapos”, de Manuel Bandeira, deu ensejo a esse debate exatamente por causa dos seguintes versos:

“Vai por cinquenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas forma.”

Note que, com o acento, fica mais imediata a compreensão daquilo que quis dizer o poeta em sua crítica aos parnasianos, que compunham poemas presos a moldes fixos.

O outro caso de acento facultativo é o da forma “demos” quando no subjuntivo. Vamos observar duas construções:

1. Sempre nos demos bem. (pretérito perfeito do indicativo)

2. Ele espera que nos demos bem daqui para a frente. (presente do subjuntivo)

Observe que o contexto, nos casos acima, é suficiente para demarcar a distinção entre as formas, motivo pelo qual não haveria razão para o emprego do acento diferencial. O que faz o Acordo é permitir que, havendo necessidade de clareza, se lance mão dessa possibilidade.

 

 

Comentários

  1. É por esses detalhes que o estudo da Lingua Portuguesa deve ser contínuo.
    Parabéns pelo esforço para exclarecer os mistérios (para muitos) da nossa amada e não tão respeitada Língua Portuguesa.

  2. O post a respeito dos “acentos facultativos” está impecável, como, aliás, todos os outros do blog. A Thaís os nunca demasiados e jamais imerecidos parabéns. Aproveito para ESCLARECER que as tais “homógrafas de palavras proclíticas” de que fala o acordo são, grosso modo, palavras tônicas de mesma grafia de palavras átonas.

  3. boa tarde professora,tem alguma técnica pra eu sempre lembrar dos acentos e das virgulas? ; sou muito ruim não consigo saber quando e uso a virgula .!

    1. Cris, em primeiro lugar, deixe de dizer “sou muito ruim”. Ninguém é “muito ruim” em nada logo de saída. É difícil para todo o mundo. Vou dar uma dica: a pontuação está ligada à sintaxe do texto. Assim, para bem pontuar, você deve perceber as divisões do texto, as funções de cada elemento. Às vezes, a intuição funciona, mas esse não seria um método seguro, não é mesmo? Ainda não tratei desse tema aqui no blog, mas logo o farei, pois muita gente me pede. Quanto aos acentos, o ideal é entender o sistema. Decorar sem entender não é boa solução, pois a memória nos trai quando menos esperamos. Abraços, Thaís

    2. Cris,

      A Professora Thaís é autora de um ótimo livro a propósito do emprego da vírgula, chamado “Uso da Vírgula”, editado pela Editora Manole. Com esse livro, suas dúvidas acerca do uso da vírgula desaparecerão.

  4. Bom dia, Thaís.

    Acabou de chegar o meu livro (Redação linha a linha).

    Por favor, preciso de uma ajudinha sua.

    Qual a orientação você me indicaria para aproveitar melhor o estudo da redação:

    – Ler a redação que você vai corrigindo ?
    – E depois copiar em um caderno a redação como deveria ser escrita?

    Tenho uma imensa dificuldade em escrever textos.

    OBS: É extremamente importante sua dica!!

    Desde já agradeço.

    Robson
    srobson_adm@yahoo.com.br

    1. Robson,

      Não é fácil estudar sozinho um tema como esse, pois o bom desempenho do estudante depende muito da prática e de haver um leitor que aponte a sua evolução. O “Redação Linha a Linha” foi escrito para ajudar os alunos nesse processo. Foram escolhidas algumas redações, que foram gramaticalmente corrigidas e, em seguida, comentadas. Nos comentários, não tratei de gramática, mas da articulação do texto. A redação final, corrigida, é um modelo não meu, mas daquilo que o estudante poderia ter feito. Você pode tentar outras soluções para tornar os textos ainda melhores ou mais interessantes. Esse é um exercício que você pode tentar fazer. O glossário e a minigramática no final são voltados às questões de ordem prática que você tem de enfrentar ao redigir. Tente partir dos temas lá expostos e criar seu próprio texto. De prefeência, peça a seu professor que leia seus trabalhos, certo? Grande abraço.

  5. Daí ser importantíssimo que os redatores pensem bem antes de escrever algo, para eliminar a ambiguidade. É evidente a diferença entre ‘pão de forma arredondado’ e ‘pão de forma arredondada’, mas, em não se tratando de texto técnico ou de função absolutamente denotativa, podemos escolher outra solução, como ‘broa’, e assim por diante. Porque volta e meia eu lido com preparadores que são muito argutos na aplicação da norma culta e pouco proficientes no bom senso. Mas eu não os culpo, por isso mesmo acho que a criatividade é do âmbito dos redatores e dos autores e que isso não pode ser cobrado ou esperado de quem está mais à frente na cadeia de produção.

  6. Boa noite, Thaís!
    Tenho uma dúvida, será que poderia esclarecer-me? É quanto à acentuação da forma “por que” junto a vocativo. Em uma frase como: “- Por que, Ana?”, deve-se ou não usar o acento circunflexo no “e”?
    Desde já agradeço imensamente o esclarecimento!

    1. Esse é um caso que provoca hesitação entre os autores. Cegalla, que é um dos mais tradicionais, recomenda o uso desse acento “no final de frase ou depois de pausa acentuada”, situações em que o “que” é palavra tônica. O autor exemplifica com um caso de “por quê” antes de oração adversativa (“não sabia por quê, mas ele…”). No caso do vocativo, a pausa não é tão pronunciada, mas existe a possibilidade de usar o acento caso se pretenda dar tonicidade, reforçar a pausa.

  7. Cara Thaís,

    Em minha opinião, acentuação gráfica, crase e ortografia só se aprendem com memória fotográfica. Não conheço nenhuma regra de acentuação nem de ortografia, mas escrevo corretamente. Para aprender a acentuar e a grafar corretamente as palavras, o segredo é um só: ler os bons escritores de língua portuguesa. Não há outra saída.

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