Nova ortografia: “subumano” ou “sub-humano”?

Thaís Nicoleti

Conforme temos observado, nem tudo foram mudanças no que se refere ao sistema de hifenização do português. Louve-se o novo Acordo por ter tentado ser coerente, buscando seguir um princípio único.

Esse princípio é o de separar letras iguais quando uma delas é a final de um prefixo e a outra é a inicial da palavra subsequente. Assim: mega-apagão, entre-eixo, anti-inflacionário, micro-ondas, super-resistente, sub-base etc.

Vejamos agora o que ocorreu especificamente com os prefixos terminados  com a letra “-b”: hífen diante de outro “b-“, mas também diante de “r-” e diante de “h-“. Se, porventura, tivéssemos uma palavra como “subreitor” (sem o hífen), como a leríamos? Sim, como “abraço”, “breque”, “broca” etc. Percebemos, então, a utilidade do hífen nesse caso, pois é o sinal que nos remete à pronúncia correta da palavra. Temos, portanto, “sub-reitor”, “sub-região” etc.

Nesse ponto, não houve mudança. Muita gente, porém, hesita ante grafias como “subtotal” ou “subtropical”, pondo-se a imaginar que teriam hífen, mas, ao mesmo tempo, quase ninguém pensa em hifenizar uma palavra como “subterfúgio”. O leitor atento já percebeu que, formalmente, essas três palavras são muito parecidas (depois de “sub-” vem a letra “-t”), todas corretamente grafadas sem hífen.

É normal que as pessoas tenham esse tipo de hesitação, pois, em palavras como “subtotal” ou “subtropical”, a presença do prefixo é facilmente perceptível — afinal, usamos as palavras “total” e “tropical” sem o prefixo, coisa que não ocorre com “subterfúgio”, palavra que herdamos do latim já “pronta” (“subterfúgio” vem de um verbo latino que significava “fugir às escondidas”, “esquivar-se”, “tergiversar”; a prefixação ocorreu no próprio latim, de modo que não nos é facilmente perceptível). Em suma, quando percebem o prefixo, as pessoas tendem a usar o hífen, mas esse não é um bom critério, pois vai funcionar apenas uma vez ou outra por mera coincidência com alguma regra.

 Dito isso, retomemos: “sub-” requer hífen antes de “-b”, “-r” e “-h”. Com a letra “h”, agora sim, temos mudança e já houve até polêmica. Isso porque a palavra que resulta da junção do prefixo “sub-” com o adjetivo “humano” antes se grafava “subumano”, mas, à luz das mudanças, o “h” deveria voltar à cena. A solução era simples: passaríamos a escrever “sub-humano”, como, aliás, muita gente já fazia antes…

Num primeiro momento, esse caso provocou dúvida e divisão. Por se tratar de palavra muito usada (na expressão condições subumanas de existência, por exemplo), havia uma familiaridade com a sua forma, já desprovida do “h” (como ocorre com “desumano” e “inumano”). Fazer voltar uma letra eliminada é sempre complicado, mas, ao mesmo tempo, satisfaria a coerência do sistema.

Examinados os prós e os contras — “subumano” é a grafia consagrada, mas “sub-humano” satisfaz a coerência do sistema; “subumano” não faz voltar uma letra já eliminada, mas muita gente já escrevia “sub-humano” por engano –, não se chegou a uma conclusão. Resultado: as duas grafias são oficialmente corretas, segundo o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.

Perguntará o leitor: tanto faz? Sim, tanto faz, mas note que a pronúncia da palavra é uma só, independentemente da grafia escolhida. É muito comum ouvirmos pessoas pronunciarem um “i” inexistente depois do prefixo “sub-” (dizendo algo como “súbi-humano”), mas a palavra é “subumano” (sem o “h”, ocorre menos confusão na leitura). “Sub-humano” lê-se exatamente da mesma maneira que “subumano”. O apoio vocálico do “-b” do prefixo é o “u” de “humano”, já que “h” é uma letra muda. 

Em nome da coerência, num mesmo texto é importante escolher uma das formas. Quem sabe, futuramente, uma sobressaia à outra e se fixe definitivamente.

Esse par de grafias não foi o único a preservar a dupla interpretação. Coisa curiosa ocorreu com o termo “abrupto”, cuja pronúncia correta — e quanto a isso os puristas não têm a menor dúvida — é (e sempre foi) “ab-rupto”. Na edição anterior do Vocabulário Ortográfico, tínhamos apenas a grafia “abrupto”, em geral associada à pronúncia “bru” (como “de bruços”), esta frequentemente corrigida — pelos puristas, diga-se — para “ab-rup-to”.

A Academia Brasileira de Letras aparentemente aproveitou a oportunidade da “reforma” para acrescentar ao vocabulário oficial a grafia “ab-rupto”, mas não teve coragem de eliminar a mais que consagrada forma “abrupto”, acompanhada de sua pronúncia cotidiana (“bru” mesmo). Aqui valem as duas grafias e as duas pronúncias.

Note-se que o prefixo “ab-“, segundo a regra, deve mesmo prender-se por hífen a termos iniciados por “-r” (“ab-rogar”, “ab-rupção” etc.), o que valida a volta do “ab-rupto”, mas a pronúncia corrente (e consagrada) tende a rejeitar essa forma. Como vemos, as exceções sempre têm sua razão de ser.

[thaisncamargo@uol.com.br]

Comentários

  1. Olha… Eu não perco a chance de ler esses textos sobre o português e esse maldito acordo que veio bagunçar de cima pra baixo, e sempre são bons e ajudam muito. Mas esse complicou bem mais do que explicou — como, aliás, fez o tal (des)acordo.

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    Em trechos como “todos (os) meus amigos” e similares, pode-se suprimir o artigo ou ele é obrigatório? Acho a supressão tão estranha… Grato.

    1. André, creio que você tenha dado uma ótima sugestão para um post. Vou preparar algo sobre o tema e logo publicarei aqui no blog, certo? Grande abraço. Thaís

    2. A Folha de S. Paulo tem feito isso com constância tal que chega a irritar. Só porque o final de uma palavra coincide com a letra ou as letras do artigo (ou preposição, ou a palavra pequena que siga), eles vão lá e engolem a palavra. Claro que há casos em que a coisa é certa, como a diferenciação entre “todo mundo” e “todo o mundo”, mas o que a Folha faz é absolutamente errado — e é todo santo dia.

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