Pedagiar e escanear
Vale ainda conversar um pouco mais sobre a conjugação dos verbos terminados em “-iar” e “-ear”. Apesar de uma confusão aqui, outra acolá, muitas vezes fruto da preocupação em “acertar” (a chamada hipercorreção), a tendência dos falantes do português é intuitivamente fazer as flexões adequadas.
Isso ocorre porque quem conhece uma língua internaliza a sua gramática, ou seja, “sabe sem saber que sabe” – mais ou menos isso. Uma maneira interessante de observar essas estruturas já apreendidas é examinar os neologismos, isto é, as palavras novas que passam a integrar o léxico da língua.
Há vários caminhos para o surgimento do neologismo, inclusive a influência de termos estrangeiros, que se acomodam à nossa língua no processo de incorporação ao uso.
Os verbos que intitulam este texto são neologismos. O primeiro deles ainda não conquistou seu lugar nos nossos dicionários, mas o segundo já está registrado. É um derivado de “escâner”, este um aportuguesamento do inglês “scanner”.
“Pedagiar” uma rodovia é instalar nela as chamadas “praças de pedágio”, coisa muito comum nas estradas que passam pelo estado de São Paulo, mas nem tanto nas que cortam outras regiões do país. Aparentemente, o termo surgiu na forma de um verbo no particípio passado, usado como adjetivo, como ocorre normalmente com essa forma nominal (a expressão “rodovia pedagiada” é um exemplo desse uso). É difícil saber se “pedagiar” veio antes de “pedagiada”, mas é fato que ambos vieram de “pedágio”. (Vale um parêntese: o já antigo “pré-datado”, de “cheque pré-datado”, parece ser um particípio surgido antes do infinitivo “pré-datar”.)
Para criar os verbos “pedagiar” e “escanear”, não foi preciso que alguém consultasse uma gramática, pois as palavras nascem espontaneamente (exceção feita aos termos científicos, para cuja formação geralmente se recorre a radicais gregos ou latinos). Muito bem: “pedagiar” termina com “-iar” e “escanear” termina com “-ear”. Por que será?
É aí que a entra a gramática que já está internalizada. Sem precisarem parar para pensar, as pessoas usaram a terminação “-iar” para formar um verbo derivado de um substantivo terminado em “-io” (“pedagiar” – “pedágio”). Essa associação explica-se porque tal comportamento é frequente na língua (plágio – plagiar, salário – assalariar, frio – esfriar etc.). A terminação “-ia” de substantivos e adjetivos também leva à forma “-iar” (cópia – copiar, via – desviar, notícia – noticiar, polícia – policiar). Os exemplos são muitos.
“Escanear”, por sua vez, vem de “escâner”. Sua formação segue a de verbos oriundos de substantivos terminados em consoante (mar – marear, flor – florear, pastor – pastorear). É bom que se diga que a terminação “-ear” é típica dos verbos cujos nomes correlatos terminam em “-é” (tônico), “-eio” ou “-eia” (pé – apear, feio – enfear, rateio – ratear, ceia – cear, areia – arear; estreia – estrear) e dos terminados em vogal átona “-a”, “-e” ou “-o” precedida de consoante (granja – granjear, prata – pratear, bronze – bronzear, sorte – sortear, branco – branquear).
Também é verdade, no entanto, que a terminação “-ear”, por vezes, concorre com a terminação “-ar” (caracolear/ caracolar, dosear/ dosar, pipoquear/ pipocar, reboquear/rebocar, tricotear/ tricotar, sambear/ sambar) e que podem ocorrer tanto “-ear” como “-ar” em situações semelhantes (cabo – cabear, mapa – mapear, mas planta – plantar, pasto – pastar). Ainda na linha dos comportamentos de exceção, estão os verbos “alumiar” (de “lume”) , “abreviar” (de “breve”) e “ampliar” (de “amplo”), que se consagraram com a terminação em “-iar”, não em “-ear”.
CARREATA
Como uma palavra dá origem a outras, mesmo os termos que são novos têm sua grafia baseada na dos preexistentes. Veja-se um termo como “carreata”, formado por analogia a “passeata”. Este é derivado de “passear”, aquele é calcado na forma do verbo “carrear”. “Negociata”, por sua vez, vem de “negociar”. O que fundamenta a grafia desses termos é ainda a oposição “-ear”/ “-iar”.
Os verbos “negociar” e “premiar”, no Brasil, conjugam-se apenas como regulares (negocio, negocias, negocia; premio, premias, premia), mas, em Portugal, são aceitas (e comuns) as formas “negoceio” e “premeio”.
ORTOGRAFIA
Não é difícil perceber por que escrevemos prateado, bronzeado, bronzeamento, branqueamento, todos com a letra “e”, mesmo que a sua pronúncia tenda ao som de “i”, certo? Eles são derivados de verbos terminados em “-ear”.
“CREAÇÕES”
O verbo “criar”, do português, tem origem na forma latina creare (creo, creas, creat). Embora na passagem do latim ao português o “i” tenha substituído o “e”, durante certo tempo houve hesitação entre as grafias criar/crear. No Brasil, chegou a existir uma suposta distinção de uso, que, aliás, caiu por terra. Entendia-se que “crear” fosse dar existência, tirar do nada e que “criar” fosse educar, cultivar, promover o desenvolvimento. Daí distinções como creação (a obra de Deus) e criação (de gado, dos filhos). Curiosamente, ainda hoje sobrevivem nomes comerciais (geralmente de confecções) que incluem o termo “creações”, assim com a letra “e” (Creações Kelman Confecções, Creações Vital Ltda., Pingo Doce Creações etc.).