Dupla negativa pode causar confusão

Thaís Nicoleti

Nosso amigo José Wilson Faustino trouxe uma questão capciosa, que pode ser interessante para muita gente. Certa passagem de uma tradução de um romance de Balzac foi o que suscitou a dúvida do atento leitor.

A frase era a seguinte: “São raros os homens que não sobem sem vivas emoções as escadarias da Corte Real”. Como podemos observar, o trecho destacado final o leitor quer saber apresenta dupla negação – e é exatamente aí que mora o problema.

A ler o que está escrito, como percebe o leitor, estaria o narrador balzaquiano dizendo “que poucos homens sobem as escadarias tomados de vivas emoções” e que o personagem citado “seria uma exceção, pois ele se deixa tomar de forte emoção ao subir aqueles degraus”. Ocorre que, ao confrontar essa tradução com o texto original, o que percebemos é que o sentido pretendido era o inverso. O personagem em questão era, sim, uma exceção à regra, mas “a regra” era que poucos homens sobem aquelas escadarias sem vivas emoções (ou no controle dessas fortes emoções). O referido personagem era um desses homens capazes de dominar as emoções.

Esse tipo de confusão é frequente quando se empregam verbos como “evitar” ou “impedir”, que têm sentido negativo. Ao usar a negativa com esses verbos, o seu sentido passa a ser positivo (quem não evita filhos, por exemplo, permite que eles sejam gerados; quem não impede uma ação certamente a permite).

A estrutura não… sem, de dupla negativa, é apropriada para afirmar algo de maneira indireta. Vale lembrar uma antiga campanha publicitária de cartão de crédito (Não saia de casa sem ele), que, com humor, foi parafraseada por Jô Soares como bordão de seu programa noturno (Não vá para a cama sem ele).

Não sair de casa sem o cartão de crédito significa sair de casa sempre com ele; não ir para a cama sem o Jô Soares significa ir para cama só depois de ver o programa. Em suma, “não… sem” produz, sim, sentido positivo. A estrutura é bastante usada no dia a dia. Vejam-se frases como “Fulano não passa um dia sem ligar para a mãe”, ou seja, liga para a mãe diariamente.  

Só não vale confundir esse caso com o de frases como “Não fez nada” ou “Não viu ninguém”, que são corretas e mantêm seu sentido negativo. Esse tema fica para a próxima!

 

 

Comentários

  1. Fiquei intrigado com a classificação sintática do “sós” (caso 3) como predicativo do sujeito. O verbo da frase (VIAJAR) parece-me nocional, significando que o predicado é verbal. Como “sós” refere-se ao susjeito idosos, acho que a classificação sintática mais correta é adjunto adnominal. Você poderia explicar isso, Thaís?

    1. Olá, Carlos, tudo bem? Numa frase como “Idosos viajam sós”, o verbo é nocional e a característica (sós) é um atributo circunstancial (ou momentâneo). O predicado tem dois núcleos (chamado de “verbonominal”). O que distingue o adjunto adnominal do predicativo é que o adjunto indica uma característica própria do substantivo e o predicativo indica uma qualidade atribuída no contexto. Será que ficou claro? Abraços 🙂

    1. Sim, sim, é verdade e é simples, mas há quem faça muita confusão nesse tipo de situação. Abraço 🙂

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