Fazer morrer de inveja gênios
A flexão (ou não) do infinitivo é assunto recorrente entre as dúvidas da Redação. Como sabemos, o tema é complexo, avesso à simplificação, mas vale o esforço de tentar esclarecer alguns pontos.
Num texto recentemente publicado no caderno “Ilustrada”, encontramos a seguinte construção:
As aberturas de “Stranger to My Happiness” e “You’ll Be Lonely” são de fazer morrer de inveja gênios como James Brown e Prince –duas figuras que Sharon sempre cita entre seus favoritos.
Algumas pessoas perguntaram se estava mesmo correto o uso do infinitivo ou se a construção deveria ser “fazer morrerem de inveja gênios”, sendo “gênios” o sujeito de “morrer”. Objetivamente, a construção escolhida pelo redator está correta e atende perfeitamente à norma culta. Vamos entender o que ocorre nesse caso.
Há uma série de verbos transitivos diretos (mandar, deixar, fazer, ver, ouvir, sentir) que se completam com uma oração infinitiva de sujeito acusativo. “Acusativo” é um dos casos da gramática latina, que, grosso modo, equivale ao objeto direto da língua portuguesa. Tente pensar em alguns exemplos de frases em que os pronomes de objeto direto (me, te, se, o, a, nos, vos, os, as) exercem a função de sujeito. Você vai encontrar frases construídas com os tais verbos mencionados acima. Veja:
Não me faça rir.
Não o deixe partir.
Mandou–os sair da sala imediatamente.
Nessas construções, os pronomes de objeto direto (me, o, os) exercem a função de sujeito do infinitivo (rir, partir, sair, respectivamente). Note que o infinitivo não se flexiona nesses casos, independentemente de o pronome estar no plural. Até aí, tudo bem.
Vamos agora imaginar que, no lugar desses pronomes, apareçam substantivos:
Não faça seu avô rir tanto!
Não deixe sua namorada partir.
Mandou os filhos sair da sala imediatamente.
A terceira frase é a que causa alguma hesitação, pois, no português moderno, a tendência é fazer a flexão do infinitivo quando o sujeito lhe é anteposto e representado por um substantivo (não por um pronome). Assim: Mandou os filhos saírem da sala imediatamente.
As duas construções estão, portanto, corretas no português moderno. Assim:
Mandou os filhos sair da sala.
Mandou os filhos saírem da sala.
A segunda (saírem) é mais frequente, pois, nessa posição, a expressão “os filhos” é claramente percebida pelos falantes do português como sujeito do verbo (filhos saírem).
Ocorre, no entanto, que uma simples alteração na ordem dos termos pode mudar essa percepção. Numa frase como “É preciso fazer valer os seus direitos”, muito dita e muito ouvida, dificilmente alguém flexiona o infinitivo para fazer a concordância com o sujeito “seus direitos”. Ao deixar o sujeito depois do infinitivo, este, em regra, não se flexiona. É exatamente isso o que se vê na construção escolhida pelo redator do texto em questão. Esse tipo de construção, com o sujeito posposto aos dois verbos, é tradicional e bastante usual quando o infinitivo é um verbo intransitivo. Vejamos alguns casos:
fazer morrer de inveja os gênios da música [morrer é intransitivo]
fazer valer os própros direitos [valer é intransitivo]
deixar passar na frente os mais velhos [passar é intransitivo]
deixar entrar primeiro as mulheres [entrar é intransitivo]
ouvir cantar os pássaros [cantar é intransitivo]
fazer rir até os mais empedernidos [rir é intransitivo]
LÍNGUA FALADA
É comum ouvirmos no dia a dia construções como “Deixe eu ver isso” ou “Mandou ele sair”. Por enquanto, ainda não ingressaram na norma culta, mas mostram a tendência à substituição do pronome de objeto pelo pronome de sujeito nessas construções.
Há um “errinho” de digitação em “idependentemente”, em vez de “iNdependentemente”.
Obrigado por mais uma aula, professora!
Caro sr. Hélio Trebbi, muito obrigada, mas confesso que não encontrei o erro. Na minha versão de trabalho, a palavra aparece corretamente com a letra “n”. Grande abraço! 🙂