Notas sobre a construção do suspense no conto “A Causa Secreta” (2)
De volta à seção Sala de Leitura, segue mais um trecho do conto “A Causa Secreta”, de Machado de Assis. É muito interessante observar nesse conto o modo como o autor constrói o suspense. Vamos lá:
Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No ano de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na Rua de D. Manuel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.
A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouviu-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo Beco do Cotovelo, Rua de São José, até o Largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No Largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da Praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada.
TINHA-SE FORMADO
Note-se o emprego do hífen, que demarca a ênclise ao verbo auxiliar da locução. Hoje, no português do Brasil, existe certa tendência a omitir esse hífen, como se o pronome “se” estivesse proclítico ao verbo principal (“formado”). Isso decorre da pronúncia brasileira, que confere tonicidade ao pronome átono. Em alguns exames de português, o uso desse hífen ainda é cobrado.
DESCRIÇÃO
Com poucos elementos, Machado consegue caracterizar cenas e personagens, criando a atmosfera de suspense que conduz o texto. Nesse trecho, vemos o personagem Fortunato pelos olhos de Garcia (“Fez-lhe impressão a figura”), embora não saibamos em detalhes como é essa “figura”. Sabemos apenas que não passou despercebida aos olhos de Garcia. Ficamos sabendo ainda que Garcia não era dado a sair, afinal ir ao teatro que ficava próximo de sua casa era uma de suas “raras distrações”. Da expressão “raras distrações” podemos inferir como era a vida de Garcia. Machado não perde tempo com detalhes – ele escolhe o que dizer e o que deixar que o leitor deduza. Esse é um dos motivos de sua prosa ser tão instigante. Sem perceber, o leitor é “cooptado” pelo narrador e fica preso até a última linha do conto.
RARAS DISTRAÇÕES/ SINGULAR INTERESSE/ APARECEU ALI …
Em algumas passagens, o autor opta pelo uso do adjetivo antes do substantivo e pelo sujeito posposto ao verbo. Que efeito obtém com essas inversões? Os adjetivos (“raras”, “singular”) ganham relevo e, como poderá o leitor perceber, eles são fundamentais na construção do suspense. O sujeito posto depois do verbo também reforça a atmosfera de suspense (a ação aparece antes do agente).
A PEÇA ERA UM DRAMALHÃO, COSIDO A FACADAS, MAS FORTUNATO OUVIU-A COM SINGULAR INTERESSE.
O narrador, já em tom de cumplicidade com o leitor, descreve a peça como algo que não deveria ser levado a sério (“dramalhão cosido a facadas”). Ao usar a conjunção adversativa “mas”, reforça essa ideia e cria oposição entre o ponto de vista do narrador (e do leitor) e o de Fortunato. Alimenta, assim, a desconfiança a respeito da conduta do personagem. Segue-se a descrição do movimento de seus olhos, que iam “avidamente de um personagem a outro” . O advérbio “avidamente”, que indica o modo de uma ação, é altamente caracterizador da personalidade de Fortunato. A descrição do personagem não é estática, mas diluída nas suas ações.
DRAMA, DRAMALHÃO E FARSA /ENTROU NUM TÍLBURI. QUE SABEMOS SOBRE FORTUNATO ATÉ AGORA?
Era médico, sua figura impressionava, assistia avidamente a um dramalhão cosido a facadas, dispensou a farsa (peça ligeira, cômica), dava bengaladas em cães, andava devagar, cabisbaixo, solitário. “Garcia voltou para casa sem saber mais nada”. E nós, leitores, estamos tão desconfiados quanto Garcia. Garcia é o homem comum com quem nos identificamos. O narrador põe lenha na fogueira e está feito o suspense.
Note-se ainda que o fato de a ação transcorrer num local conhecido (lá estão os nomes das ruas) aumenta a adesão do leitor, pois a verossimilhança está criada. As notas da edição Garnier (do volume “Várias Histórias”) informam que o Beco do Cotovelo é a atual Rua Vieira Fazenda e que a Praça da Constituição é hoje a Praça Tiradentes.
COSIDO E COZIDO
Não vale confundir um e outro, certo? “Coser”, com “s”, é “costurar”, enquanto “cozer”, com “z”, é “cozinhar”.
(Quem quiser retomar o início do conto poderá pôr “A Causa Secreta” no buscador do blog).
O meu contentamento é de que estarei a me felicitar sempre, com a qualidades dos espaços que levam-me, a aperfeiçoa a língua que muito me esforço a navega-la.