Existe “linchamento” sem morte?

Thaís Nicoleti

 

O verbo “linchar”, proveniente da língua inglesa (da lei de Lynch, de origem controvertida, mas relacionada a execuções sumárias nos Estados Unidos da América), é nosso velho conhecido, porém recentemente seu uso causou dúvida na Redação da Folha. Afinal, “linchar” pressupõe ou não a ideia de “matar”? final portugues na folha

No entendimento expresso no dicionário “Houaiss”, o verbo pode indicar tanto a “execução sumária da vítima por ação de um grupo” (primeiro significado) quanto a “prática coletiva (por uma multidão) de graves atos de violência contra alguém” (segundo significado). Na segunda acepção, a morte pode ou não ocorrer. O que definiria, então, o ato de linchar seria a agressão coletiva contra alguém. Daí, provavelmente, vem o sentido figurado do termo, hoje largamente usado na expressão “linchamento moral”.

O fato de ambas as interpretações estarem consagradas no dicionário significa que ambas vêm sendo suficientemente empregadas pelos falantes da língua portuguesa. A dificuldade de optar por um ou outro sentido levou a muita discussão e a diferentes “soluções” pelos redatores. Vejamos duas construções:

(1)   “Homem que escapou de linchamento recebe alta” (“Cotidiano”, 15.5.14)

(2)   “…disse estar agradecido por estar vivo após sofrer uma tentativa de linchamento”. (“Cotidiano”, 15.5.14)

À primeira vista, as soluções parecem ter sido boas, dado que a vítima sobreviveu ao espancamento coletivo. Ocorre, porém, que, em (1), é possível interpretar que o homem escapou da pancadaria, não somente da morte, quando o que, de fato, ocorreu foi ter ele sido espancado por um grupo grande de pessoas e ter sobrevivido. Diríamos, então, com mais propriedade, que ele “escapou da morte”. Jornalisticamente, porém, não seria possível usar “morte” , ignorando o espancamento.

No fragmento (2), temos um problema semelhante, pois há quem interprete que as pessoas tentaram espancá-lo, mas não conseguiram levar a termo a empreitada, o que não corresponde à verdade. Que fazer, então?

Lembremos que os dois sentidos do termo (“linchamento”) são possíveis, mas que o compromisso com a clareza e a precisão deve preceder quaisquer opções de redação. Dessa forma, sendo o primeiro deles aquele que pressupõe a morte da vítima, numa construção como “fulano foi linchado”, por certo entenderemos que “fulano morreu vítima de linchamento” e, caso a pessoa não tenha morrido, aí sim, o redator se obrigará a deixar isso claro no texto (fulano sobreviveu ao linchamento, por exemplo). Vejamos opções aos fragmentos acima:

Homem que sobreviveu a linchamento recebe alta

…disse estar agradecido por estar vivo após ter sido vítima de linchamento

Comentários

  1. Bom dia Professora : as grafias da palavra ” língua” , no texto , e ” ímã ” obedecem à mesma regra de acentuação ? Obrigado .

    1. Antônio, tudo bem? As duas palavras em questão são paroxítonas, mas “língua” recebe acento gráfico por ser paroxítona terminada em ditongo (como “relógio”, “canário”, “mágoa” etc.) e “ímã” por terminar em vogal nasal (como “órfã”, por exemplo). Abraços 🙂

  2. Também pode-se resolver ambos os problemas substituindo-se a palavra linchamento por outra mais específica, como espancamento.

    1. Oi, Roger, tudo bem? Essa opção foi cogitada, mas “espancamento” não indicaria ter sido um ato perpetrado pela fúria coletiva. No caso em questão, “linchamento” era mais específico. Aqui fala uma fã do Ultraje a Rigor. Adoro “a gente somos inútil”! (rsrsr) Parabéns! Abraços 🙂

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