Um acento facultativo

Thaís Nicoleti

O Novo Acordo Ortográfico, em vigor desde 2009, faculta o emprego do acento circunflexo na palavra “forma” quando pronunciada com “o” fechado, mas não o torna obrigatório.  portugues em diaNo registro oficial do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, a palavra é grafada sem acento nenhum.

Muita gente pergunta como proceder e até mesmo se “é melhor padronizar” uma só grafia (por exemplo, “fôrma” sempre que se pretender mencionar certo utensílio próprio para fazer bolos).

Se a intenção fosse “padronizar” uma grafia, teriam sido registrados dois verbetes (forma e fôrma), um deles com acento diferencial. Não era isso o que se queria fazer até mesmo porque quase todos os acentos diferenciais deixaram de existir.

O que se estabeleceu foi a possibilidade de usar esse acento nos casos em que a sua ausência pudesse tornar o texto ambíguo.  Vale como exemplo desse tipo de situação o trecho do poema “Os Sapos”, de Manuel Bandeira, em que os dois termos, “forma” (ó) e “forma” (ô), aparecem juntos, no mesmo verso. Vamos relembrá-lo (segue um trecho do poema com a acentuação atualizada segundo as regras ora vigentes):

O sapo-tanoeiro,

Parnasiano aguado,

Diz: — Meu cancioneiro

É bem martelado.

 

Vede como primo

Em comer os hiatos!

Que arte! E nunca rimo

Os termos cognatos!

 

O meu verso é bom

Frumento sem joio

Faço rimas com

Consoantes de apoio.

 

Vai por cinquenta anos

Que lhes dei a norma:

Reduzi sem danos

A fôrmas a forma.

 

Nesse texto, um dos estandartes do modernismo brasileiro, Manuel Bandeira faz uma sátira dos poetas parnasianos, que se preocupavam excessivamente com o formato do poema, com as regras de versificação. Os modernistas acenavam, então, com o verso livre, sem rimas e sem regularidade métrica.

O sapo parnasiano do poema dá sua lição: “Reduzi sem danos/ A fôrmas a forma” . Com isso, ele quer dizer que as formas poéticas devem se encaixar em espécies de “fôrmas”. Agora, vejamos o texto sem o acento em “fôrmas”: “Reduzi sem danos/ A formas a forma”.

Fica mais difícil compreender de imediato a ideia, embora a rima  (“norma” rima com “forma”) nos ajude a chegar à interpretação desejada. Com o acento, o entendimento da passagem é imediato. Fica claro que não há necessidade de usar acento na palavra que integra a expressão “pão de forma”, por exemplo. Também não há necessidade do acento quando listamos os utensílios de cozinha (pratos, talheres, tigelas, formas, copos). Não é preciso “padronizar” nada. Basta o bom senso.

É importante observar que esse princípio (o do acento facultativo) já existe em alguns casos de emprego do acento grave (indicador de crase). Todos sabemos que a crase é a fusão de dois “aa” e que é essa fusão que assinalamos com o acento grave (à). Existe, porém, a possibilidade de usar esse sinal sem que ocorra, de fato, a crase – unicamente para evitar a ambiguidade. A título de exemplo, observemos uma frase como “Recebeu o sogro a bala”. Podemos entender que o sogro recebeu a bala (foi baleado) ou que alguém recebeu o próprio sogro a tiros. Vale lembrar que, nas locuções adverbiais de instrumento (é o caso de “a bala”), não aparece o artigo e, por conseguinte, não ocorre a crase. Caso a intenção do produtor da frase fosse dizer que o sogro foi recebido a bala, seria possível (e recomendável) escrever “Recebeu o sogro à bala”. Esse acento ajuda na compreensão imediata do sentido da frase.

É claro que qualquer frase sempre está inserida em um contexto ou em uma situação de comunicação, que é o que, de fato, garante a sua compreensão. Recursos facilitadores, como são esses acentos facultativos, podem, porém, facilitar esse processo.

Comentários

  1. Eu sempre entendi muito bem a regra da crase e, por isso mesmo, nunca entendi esse uso em expressões onde ela não fazia sentido. Obrigado pela explicação. À parte “à bala” e “à mão”, existe alguma outra expressão que leva o acento grave só por questão de ambiguidade?

    1. “à mão” sempre leva, pois não é locução adverbial de instrumento. A situação pode ocorrer com as locuções adverbiais de instrumento cujo núcleo seja uma palavra feminina (a máquina, a caneta, a tinta etc.). Abraço 🙂

  2. Nicoleti, mais triste, mais deprimente, comentaristas da Folha referirem-se aos assentos de aeronaves escrevendo, erradamente,”aCentos”.
    Outro dia, num manual de montagem de um equipamento que comprei estava escrito assim: …”preCione o parafuso…”. Nosso Português(ou nossa Educação?) está cada vez mais decadente…

    1. Sergio, aponte o texto da Folha em que isso foi publicado, por favor. Muito obrigada. Pode enviar o link para o meu e-mail (thaisncamargo@uol.com.br). Abraço 🙂

        1. Sim, fazemos um trabalho contínuo com a Redação, mas não é fácil. A colaboração dos leitores é sempre bem-vinda. Grande abraço 🙂

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