“Em matéria de língua e ortografia, é preciso qualificar o debate”, diz Faraco
O adiamento do prazo oficial de entrada em vigor do Acordo Ortográfico para 2016 e a discussão que se vem travando no Senado Federal acerca do tema, com direito a debate sobre uma proposta de ortografia fonética, podem fazer parecer que existe espaço para alguma mudança radical no sistema ortográfico do português.
Para elucidar os pontos obscuros de toda essa discussão, desta vez conversei com nada mais, nada menos que o coordenador da Comissão Nacional brasileira do Instituto Internacional da Língua Portuguesa da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), o linguista Carlos Alberto Faraco, professor titular de língua portuguesa da Universidade Federal do Paraná, cujo currículo não deixa dúvida de que os trabalhos de implantação definitiva do Acordo estão em boas mãos.
Mestre pela Unicamp e doutor pela Salford University, com pós-doutorado pela University of California, Faraco tem uma vida dedicada aos estudos linguísticos. Foi presidente da Associação Brasileira de Linguística de 1985 a 1987 e pertenceu ao grupo de pesquisadores que criou o projeto VARSUL-Variação Linguística da Região Sul.
É autor e organizador de vários livros, entre os quais Linguagem escrita e alfabetização (Editora Contexto), Linguística histórica, Norma culta brasileira: desatando alguns nós, Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin e Estrangeirismos: guerras em torno da língua (todos publicados pela Parábola).
Também é autor da coleção Português: língua e cultura (IBEP/Base) para o ensino médio e, em coautoria com o romancista Cristovão Tezza, de dois livros para o ensino de português no nível universitário: Prática de texto e Oficina de texto (ambos publicados pela Editora Vozes).
O professor Faraco vai direto ao ponto e definitivamente põe os pingos nos is. Deixa claro que “a ortografia de qualquer língua não é assunto plebiscitário ou para abaixo-assinados, ou para coletas aleatórias de ‘sugestões’” e alfineta a Comissão de Educação do Senado: “Ao constituir um grupo de trabalho apenas com dois críticos do Acordo, a CE vira as costas para a sociedade, desqualifica a opinião majoritária, marginaliza os especialistas e passa a falsa impressão de que o Brasil está se posicionando contra o Acordo”. E resume a situação citando Shakespeare: “Muito barulho por nada”.
Questionado sobre as propaladas dificuldades que o Acordo teria trazido, Faraco é rápido no gatilho: “As poucas mudanças podem ser aprendidas em não mais que 15 minutos”. E tem mais, muito mais. Leia a seguir a entrevista concedida ao blog:
Thaís Nicoleti – Segundo o senador Cyro Miranda (PSDB – DF), presidente da Comissão de Educação do Senado, após a entrada em vigor do Acordo Ortográfico, o Senado recebeu milhares de e-mails de cidadãos indignados com as dificuldades impostas pelas mudanças ortográficas, fato que provocou a abertura de discussões sobre o tema na Casa legislativa. Reportagem publicada no site Observatório da Língua Portuguesa informa que o senhor Ernani Pimentel, um dos representantes da Comissão de Educação do Senado brasileiro em missões internacionais, criou um movimento chamado “Acordar Melhor”, por meio do qual colheu grande quantidade de assinaturas favoráveis à simplificação da ortografia, fato que teria levado o Senado a propor a discussão e o adiamento da entrada em vigor do Acordo. Diante disso, pergunto se o senhor considera ter faltado discussão antes da assinatura do Acordo. Na sua opinião, o Acordo foi imposto de forma autoritária?
Carlos Faraco – Seguramente não houve falta de discussão. As discussões para se alcançar um Acordo Ortográfico que unificasse as bases da ortografia do português começaram na década de 1920. Foram, portanto, quase 70 anos de discussões. Acrescente-se a isso o fato de que os pontos que exigiam uma harmonização para se alcançar a unificação das bases da ortografia eram poucos. Basicamente questões de acentuação e o tratamento das chamadas consoantes não articuladas. A cada tentativa de se estabelecer a unificação das bases (1931, 1943, 1945, 1971/1973, 1975, 1986, 1989) poliram-se arestas e acumularam-se alternativas que acabaram por ser consolidadas no texto de 1990.
No fundo, com o Acordo de 1990, houve apenas pequenos ajustes em cada uma das ortografias vigentes para submetê-las a um único conjunto de normas. Houve cedências de parte a parte, adotando uns soluções já existentes na grafia dos outros. Nada mais do que isso. Não houve nenhuma alteração das grandes coordenadas que fixaram a ortografia do português em 1911 (nem era este o objetivo). Também não houve imposição, e sim cedências. E ninguém esteve obrigado a adotar o Acordo, na medida em que cada país soberanamente teria de ratificá-lo. E o próprio calendário de ratificações é prova de que nada foi imposto.
TN – O senhor poderia relembrar aos nossos leitores como se deu o processo de ratificação do Acordo nos vários países da CPLP?
CF – Cada país seguiu a cronologia que lhe aprouve. Portugal foi o primeiro país a ratificar o Acordo já em 1991. O Brasil o fez em 1995. Posteriormente, foram assinados dois Protocolos Modificativos (em 1998 e 2004 respectivamente) para ajustar o prazo de vigência antes previsto para 1994. Esses Protocolos Modificativos foram ratificados pelo Brasil em 2004, por Cabo Verde em 2005, São Tomé e Príncipe em 2006, por Portugal em 2008 e por Timor-Leste e Guiné-Bissau em 2009. Em 2012, o Conselho de Ministros de Moçambique recomendou ao Parlamento daquele país que completasse o processo de ratificação. O Segundo Protocolo Modificativo, assinado por todos os países, estipula que o Acordo entraria em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação, o que ocorreu em 2006 (Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe). O Acordo, portanto, está em vigor desde 2006.
O Brasil, porém, antes de implantar o Acordo, esperou que a Assembleia da República Portuguesa ratificasse os Protocolos Modificativos, o que veio a ocorrer em maio de 2008, ano em que, em conjunta Declaração Sobre a Língua Portuguesa, os chefes de estado e de governo da CPLP instavam a que tal acontecesse em todos os países de língua oficial portuguesa. Longos foram os anos e as discussões para se chegar ao Acordo de 1990 e longos têm sido os anos para sua ratificação e implantação para atingir o objetivo único de uniformizar as regras de ortografia em todos os países.
TN – Diante disso, fica difícil afirmar que o Acordo foi imposto de modo autoritário, sem discussão. O fato é que esse tipo de afirmação foi feito em audiência pública no Senado por membros do (GTT) grupo de trabalho técnico da Comissão de Educação. O professor Ernani Pimentel, por exemplo, por meio de seu site, chegou a criar um concurso em que oferecia uma quantia em dinheiro para a pessoa que apresentasse a melhor proposta de simplificação ortográfica. Há nesse GTT da Comissão de Educação do Senado o entendimento de que qualquer pessoa está em condições de propor mudanças na ortografia. Essa seria talvez, no entender da CE, uma forma de democratizar o processo. Como o senhor vê isso?
Quando se olha com atenção para a história, parece claro que são totalmente improcedentes afirmações de que não houve discussão e de que o Acordo foi uma imposição autoritária. A ortografia de qualquer língua não é assunto plebiscitário ou para abaixo-assinados ou para coletas aleatórias de “sugestões”. E menos ainda para uma oferta de “recompensa” em dinheiro para quem apresente a melhor proposta de simplificação. Não dá para acreditar que alguém leve essas propostas descabidas a sério. A ortografia resulta de uma longa construção histórica. É um trabalho de cuidadosa ourivesaria. Qualquer ajuste tem de ser muito bem pensado e avaliado, inclusive tomando em conta as tradições ortográficas bem consolidadas. É, portanto, um assunto eminentemente técnico e altamente complexo.
Não por acaso foram necessários quase 70 anos de discussões para se chegar à unificação das bases da ortografia do português, discussões que sempre foram cuidadosamente conduzidas por sucessivas gerações dos mais qualificados filólogos e linguistas de língua portuguesa. Por outro lado, falar em “dificuldades impostas pelas mudanças ortográficas”é mostrar preocupante desconhecimento do teor do Acordo. As poucas mudanças podem ser aprendidas em não mais que 15 minutos. Dizer também que nenhum professor conhece as mudanças (como tenho ouvido e lido nesse período de audiências públicas) é subestimar demais a inteligência dos professores. Eu mesmo, entre 2008 e 2010, fui muitas vezes chamado para discutir as mudanças com os professores de Curitiba e do Paraná. Nunca encontrei um sequer que dissesse estar encontrando problemas para assimilar o Acordo. O mesmo se deu com editores, revisores e jornalistas com quem trabalhei na época. Por isso, gostaria muito de ter acesso a estes propalados “milhares de e-mails” que teriam chegado ao Senado.
TN – Como já é suficientemente sabido, o professor Ernani Pimentel, proprietário de curso preparatório para concursos públicos, tem uma proposta de mudança do sistema ortográfico do português. Segundo ele, a ortografia deve refletir a fala, ou seja, o sistema deve ser fonético, eliminando-se a informação etimológica das palavras. Segundo ele, esse sistema seria mais lógico do que o atual e, portanto, mais simples. Qual é a sua opinião sobre essa proposta?
CF – Trata-se de uma proposta inerentemente inviável pelo simples fato de que a língua comporta muitas variações de pronúncia. A ortografia, para ser de fato funcional no espaço e no tempo, não pode jamais refletir com precisão a fala de cada um; deve, ao contrário, pairar a uma certa distância das variações de pronúncia. A ortografia estabelece uma relação abstrata com a língua e nunca com a fala. Além disso, há todo um processo histórico que vai fixando tradições ortográficas. Alterá-las radicalmente em qualquer direção será sempre desastroso econômica, cultural e cognitivamente. O próprio falante, como demonstram os estudos de psicologia cognitiva, opera com um léxico mental ortográfico que é não apenas fônico, mas também visual. Há nessas propostas uma certa ingenuidade conceitual. Por isso, elas têm sido sistematicamente rejeitadas na história da nossa ortografia e são uma ideia completamente abandonada desde o século 19. Os proponentes parecem fazer parte do time dos “reformadores da Natureza”, tão bem representados ficcionalmente por Monteiro Lobato com o personagem Américo Pisca-Pisca.
TN – Em recente audiência pública no Senado, da qual tive a oportunidade de participar, o professor Pimentel expôs a sua proposta, que, entretanto, não obteve a acolhida dos estudiosos presentes. A única manifestação de apoio foi feita pelo senador Fleury (DEM-GO), que disse ser professor de matemática. Embora a proposta tenha sido criticada por quase todos os membros da mesa (à exceção do prof. Pasquale Cipro Neto e do professor Carlos André, de Goiás), o senhor Pimentel é o coordenador do grupo de trabalho técnico da Comissão de Educação, sendo inclusive, ao lado do prof. Pasquale, representante do Senado brasileiro em missões internacionais. Na sua opinião, ao ser representado no exterior apenas por críticos do Acordo, ignorando as vozes que hoje acreditam na importância de implantá-lo definitivamente, o Senado passa a imagem de que os brasileiros se posicionam contrariamente ao Acordo Ortográfico? É adequado que o senhor Pimentel apresente a sua proposta de simplificação ortográfica nos países da CPLP na condição de representante do Senado brasileiro?
CF – Ainda bem que a proposta não obteve acolhida. Aliás, ela tem sido sistematicamente criticada e condenada com ótimos argumentos por vários artigos e editoriais publicados na imprensa nacional nos últimos meses. Era o que se podia mesmo esperar. Encampar as propostas do sr. Pimentel seria não só um descalabro (pela absoluta falta de fundamentos técnicos), como seria um gesto de lesa-cultura, como procurei mostrar em um artigo publicado no jornal Gazeta do Povo com o título Vandalismo Ortográfico.
De qualquer forma, toda essa movimentação da Comissão de Educação do Senado é muito estranha. Até hoje não consegui captar os objetivos de “debater” o Acordo Ortográfico. Ele foi devidamente ratificado pelo Congresso Nacional em 1995 e novamente em 2004 (os Protocolos Modificativos). Foi incorporado à ordem jurídica interna por decreto presidencial de setembro de 2008. Entrou em vigor em 01/01/2009 e foi em pouquíssimo tempo adotado (e sem grandes percalços) pela imprensa, pelas editoras, pelo sistema escolar e por todas as esferas da administração pública. É hoje de uso universal no espaço público brasileiro. O que há ainda a “debater”?
É espantoso antes de qualquer coisa ouvir e ler as declarações de senadores da CE. Elas revelam grande desinformação sobre a matéria, o que é, sem dúvida, muito preocupante. Além disso, parece que a CE do Senado está um tanto alienada da sociedade (que – repito – já adotou universalmente o Acordo) e, pelo viés muito restrito com que vem abordando o assunto, tem superdimensionado questões que são menores. Mais espantoso ainda é a CE ter dado espaço quase exclusivamente a duas pessoas que fazem críticas (nem todas fundamentadas, diga-se de passagem) ao Acordo. Há claros indícios de um encaminhamento tendencioso do debate, o que o desqualifica de saída. Nunca, nas audiências que promoveu, a CE chamou membros da Comissão que assessorou o governo no processo de implantação do Acordo em 2008; nunca chamou a Associação Brasileira de Linguística (que precisou tomar a iniciativa de ir lá entregar um documento com razões contrárias às propostas de mexer na ortografia e protocolar um pedido para ter um representante seu nas audiências); nunca chamou ninguém do mundo editorial nem da Universidade.
A CE parece também desconhecer a presença oficial do Brasil no Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), fórum da CPLP responsável pela discussão e encaminhamento de questões da língua que são do interesse do conjunto dos países de língua oficial portuguesa, inclusive a ortografia. Isso apesar de eu, em junho passado, ter entregado pessoalmente ao senador Cristovam Buarque (que é membro da CE) um documento da Comissão Nacional do IILP sobre a situação atual do Acordo e ter deixado com o secretário da CE cópia do mesmo documento. Diante desse panorama de desinformação, alienação e exclusão, só podemos esperar um grande desserviço ao país, à nossa cultura linguística e à causa da língua. Ao constituir um grupo de trabalho apenas com dois críticos do Acordo, a CE vira as costas para a sociedade; desqualifica a opinião majoritária (que se manifesta – insisto – na adoção universal do Acordo pela sociedade); marginaliza os especialistas e passa a falsa impressão de que o Brasil está se posicionando contra o Acordo, como aconteceu quando da desastrada decisão da presidente Dilma de prorrogar por mais três anos a vigência definitiva do Acordo a pedido da CE do Senado. E ainda mais grave é esse grupo aleatoriamente constituído, sem qualquer representatividade acadêmica ou política, receber mandado da CE para, em seu nome, realizar “missões” internacionais. Acho que o mínimo que se espera é que a sociedade seja informada sobre quais os critérios usados para a designação dos dois, quais os objetivos dessas “missões”, os custos e os resultados.
O Sr. Pimentel pode, é claro, apresentar suas ideias onde bem quiser. Teve, inclusive, espaço para tanto na I Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Global, promovida pela CPLP em Brasília em março de 2010. Apresentou suas ideias, que, obviamente, não tiveram qualquer acolhida das delegações presentes, o que mostra bem a irrealizabilidade do projeto do ponto de vista diplomático. O que me parece totalmente sem propósito é o Senado Federal custear “missões” internacionais e permitir que se fale em seu nome para fazer proselitismo de uma proposta de alteração radical da ortografia, dando a impressão de que ela já está encampada por aquele órgão legislativo. Desmoraliza o Senado e desmoraliza o Brasil.
TN – Na última audiência pública acerca do tema, o professor Carlos André Pereira Nunes, proprietário do Instituto Carlos André, em Goiânia, demonstrou, por meio de questões de concursos públicos, que o sistema de hifenização do prefixo “pré-” é problemático. Ele apresentou questões de exames que exigiam dos candidatos saber a grafia correta de “prequestionar”/ “pré-questionar” e de pré-embrião/ preembrião. Segundo ele, pessoas perdem uma vaga de emprego porque a sistematização do hífen com os prefixos pré/pre é imprecisa. O problema mais grave é o do hífen com esses prefixos ou o das bancas que elaboram questões de concursos públicos?
CF – É óbvio que o problema está nas bancas que elaboram as questões. Há, em geral, uma concepção muito rastaquera do que é testar o domínio de língua dos candidatos. As questões costumam focar picuinhas de ortografia e gramática, deixando de avaliar o efetivo domínio das competências linguísticas que realmente interessam – a leitura compreensiva de textos de mediana complexidade, a escrita de um texto razoavelmente complexo e uma reflexão inteligente sobre as estruturas e os usos sociais da língua. Essas competências indicam efetivamente o nível de maturidade linguística dos candidatos. Eis aí um tema que a Comissão de Educação do Senado poderia debater com mais propriedade e relevância.
TN – O prefixo “pré” dominou boa parte da segunda audiência sobre o Acordo, embora esse item não tenha sido objeto de modificação. Houve queixas sobre a suposta incoerência das grafias preembrião/ pré-embrião e pré-embrionário (esta não é registrada com grafia dupla no VOLP); também se questionou o motivo de “prequestionar” ter o prefixo átono e “pré-qualificar” ter o prefixo tônico, segundo o VOLP. O pressuposto nesse caso era a semelhança das duas palavras baseada na letra “q” inicial do termo subsequente ao prefixo em ambas, o que deveria levá-las a um comportamento gráfico/ fonético semelhante. Pergunto se o raciocínio é necessariamente esse (o da letra inicial da palavra) ou se outros fatores, como tonicidade e sufixação podem intervir na pronúncia e, consequentemente, na grafia.
CF – Antes de mais nada, vamos conversar um pouco sobre o hífen nos compostos. Este foi, aliás, o único tópico identificado como problemático nas audiências da CE do Senado. Falou-se dele como se tivesse sido criado pelo AO de 1990 (o que não corresponde aos fatos) e se tentou justificar com ele a proposta de se “mexer” no Acordo (se a premissa é falsa, falsa é a conclusão, certo?). Com perdão da palavra, me pareceu que a montanha pariu um ratinho. Ou, como diz o título da peça de Shakespeare, “Muito barulho por nada”.
O hífen nos compostos é uma área ainda em adensamento na nossa ortografia. Desde o século 18, tenta-se uma razoável regulação de seu uso. Reconheça-se que o AO melhorou muito a questão. Basta compará-lo ao Formulário Ortográfico de 1943. Devíamos acabar com o hífen? Esta foi uma proposta que se fez em 1986, mas provocou uma forte reação negativa. Simplesmente aglutinar todos os prefixos às bases provocou um profundo estranhamento. Feriu os olhos e o léxico mental ortográfico dos falantes (que é eminentemente visual). Na sequência dos debates, trabalhou-se, então, no sentido de diminuir o uso do hífen nos compostos e formular algumas regras gerais. E isso foi alcançado no texto de 1990. Persistem problemas? Claro que sim. Mas esses problemas justificam a crítica que se fez nas audiências ao Acordo? Claro que não. Sem mexer no texto, esses problemas podem ser muito bem encaminhados. Basta interpretar tecnicamente o texto do AO, tendo o “espírito do legislador” como baliza. E o que diz o “espírito do legislador”? Diminuir o uso do hífen em compostos e formular princípios gerais. O resto é discussão bizantina.
A Equipe Central do VOC fez uma brilhante leitura do texto do Acordo e, sem alterá-lo em nada, condensou as regras de uso hífen nos compostos em 4 grandes coordenadas. Muitas vezes, quando nos apegamos excessivamente às árvores, não conseguimos enxergar a floresta e não percebemos que a solução ovo de Colombo está na nossa frente.
Quanto ao caso específico dos prefixos pre- e pré-, é importante deixar claro que eles não são o mesmo prefixo, nem variantes, sem mais. São dois prefixos diferentes que por vezes têm o mesmo sentido mas que nem estão em distribuição complementar nem são sempre substituíveis um pelo outro. E elementos diferentes devem ser tratados diferentemente. Dizer isso é importante para afastar a ideia de que os prefixos e as palavras cognatas em que são empregados possam ser tomadas como variantes ortográficas. Para dar um exemplo muito claro: preencher e pré-encher não são a mesma coisa. Acho que a explicação cabal de que isto não é um caso de dupla grafia fecha a questão. Mas vamos à análise de cada um dos prefixos, a ver se há mais argumentos. Em termos puramente ortográficos, pre- é um antepositivo átono, monossilábico, que como tal sempre se aglutinou ao elemento a que se associa; pré- é tônico e, por isso, acentuado graficamente, pelo que sempre se separou por hífen da base. A regra é simplérrima e qualquer aluno a conhece: se um prefixo tem acento gráfico, tem que ser separado da base por hífen. Em português não há palavras sobre-esdrúxulas, isto é, com acento antes da antepenúltima sílaba, logo, tem que ser usado o hífen com prefixos acentuados como pré-. Nada mudou com o Acordo no que diz respeito à sua escrita e não é necessário saber mais nada para saber como usar o hífen nesses dois casos.
Vamos, porém, a uma análise linguística mais profunda para explicar o que confundiu alguns debatedores nas sessões da CE do Senado. Sendo esses dois prefixos muito produtivos, os dicionários e vocabulários não registram todas as formas possíveis, como não o fazem para ex- ou anti-. Os critérios de inclusão (e.g., atestação num cânone ou num corpus específico) e de identidade lexical (e.g., não inclusão de formas com antepositivos hifenizados) de diferentes dicionários do português ditaram que na tradição lexicográfica não houvesse sistematicidade no registro de todas as formas com pre- e com pré-. Os instrumentos ortográficos são por natureza não extensivos, sendo meras projeções exemplificativas dos processos de definição por intensão das normas. Nada no que diz o VOLP impede os escreventes de usarem as formas que entenderem com pre- e com pré-, caso o queiram fazer. O VOLP não registra as palavras antitortura, praticamente, ex-presidente, iluminada ou beijoquice. Nada, porém, nos impede de as usar ou nos obriga a substituir por outras que ali estejam atestadas. Quanto à distribuição, é natural que pre-, sendo átono, tenha um comportamento clítico, formando uma única palavra prosódica com a base, ao passo que pré-, tendo acento próprio, tenha tendência para incorporar complexos prosódicos, sobretudo quando a base tem mais material fonético, sendo assento para um acento secundário. Além disto, a tendência, parece-me, será, com a frequência e habitualidade, de crescente preferência para o pre-, com a gradual perda de noção de composicionalidade semântica (quantos tomaremos ainda preencher por pré+encher?), sendo pré- preferido para formações ocasionais e pre- tendencialmente usado em palavras em que sincronicamente não há noção da derivação. Tudo isto além, é claro, dos imprevisíveis processos de analogia que acompanham essa perda de noção de composicionalidades e que gerarão naturalmente assistematicidades.
Nada justifica o tipo de crítica que se faz, salvo uma visão erroneamente simplificadora daquilo que é complexo. A língua (e sua “subsidiária”, a ortografia) não pode, por sua própria natureza, ser reduzida a códigos de precisão matemática nem seriam propostas como esta agora feita ao Senado que permitiriam tal coisa. O uso é dinâmico e, como a história mostra claramente, produz tanto sistematicidades como assistematicidades. Uma faixa de indefinição ou instabilidade não constitui, por isso, problema. Ao contrário, mostra apenas que a prática e o senso linguístico dos falantes está em funcionamento. Isso nada tem que ver com regras de ortografia. O tempo vai indicando o rumo da estabilização. Em matéria de língua e ortografia, é preciso qualificar o debate, retirando-o do palpitismo.
TN – O senhor pode explicar a situação de Portugal e dos demais países da CPLP em relação à implantação do Acordo? Portugal continua opondo resistência à unificação gráfica? Algum país ainda não ratificou o Acordo?
CF – Por desinformação, criou-se aqui no Brasil um mito de que Portugal continua se opondo à unificação das bases ortográficas. Confundem-se opiniões individuais publicadas, algumas até bem virulentas, com o real posicionamento daquele país. O que temos de fato é o seguinte: Portugal foi o primeiro país a ratificar o Acordo já em 1991, mostrando claramente seu comprometimento político com o fim da dualidade de ortografias oficiais. Depois, ratificou os Protocolos Modificativos em 2008. Pela Resolução 8/2011, o Conselho de Ministros deu início à implantação do Acordo naquele país a partir de 01/01/2012 em todas as esferas da administração pública e no sistema educativo a partir do ano letivo de 2011-2012. A mesma Resolução reiterava que, pelo Aviso 255/2010, o Acordo já se encontrava em vigor na ordem jurídica interna desde 13/05/2009 com carência de 6 anos para sua entrada definitiva em vigor, o que vai ocorrer, portanto, em 13/05/2015, sete meses e meio antes de sua vigência definitiva no Brasil.
O AO é neste momento aplicado plenamente por todos os serviços do Estado português. Vem sendo gradualmente aplicado em todos os níveis de ensino há mais de três anos, com o apoio explícito da Associação de Professores de Português e das associações de pais e sem que se notem particulares problemas da parte dos professores. No presente ano letivo, passou a ser aplicado obrigatoriamente nas últimas disciplinas (Português e Matemática de 9º ano), sendo também exigido como única grafia válida em todos os exames. O AO é aplicado em Portugal por todas as grandes redes televisivas e pela quase totalidade dos canais por cabo. O AO é há anos aplicado por todos os operadores de telecomunicações (MEO, ZON, Vodafone), por mais de 90% do mercado editorial (grupos Leya e Porto Editora, entre outros), por 9 dos 10 jornais mais vendidos (a exceção entre os mais vendidos é o jornal Público, de Lisboa, o nono mais vendido), pela quase totalidade das maiores empresas (bancos, todas as empresas de eletricidade e energia, etc.), além, é claro, das universidades e dos organismos dependentes do Governo e da própria Assembleia da República (a exceção é a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que não determinou ainda a obrigatoriedade definitiva do AO, permitindo as duas grafias), bem como todos os partidos com representação parlamentar (o último foi o Partido Comunista) e pela própria Assembleia da República, pelo Governo e pela União Europeia (há anos).
O desenvolvimento dos instrumentos de aplicação do AO em Portugal (VOP e Lince) incluiu especialistas de seis instituições muito representativas: Academia das Ciências de Lisboa, Universidade de Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, Universidade do Minho, Direção Geral de Tradução da União Europeia, ILTEC (Instituto de Linguística Teórica e Computacional). É preciso também destacar que tanto o Poder Legislativo como o Judiciário têm sistematicamente recusado iniciativas que solicitam que o país se desvincule do Acordo. A implantação do Acordo em Portugal, portanto, é já quase universal e o ciclo se encerra em maio de 2015.
Os demais países vêm progressivamente implantando o Acordo desde 2009. A situação está ainda indefinida em Angola e Moçambique. Neste, o Conselho de Ministros encaminhou recomendação ao Parlamento em 2012 para que ratificasse o Acordo. De qualquer forma, Moçambique já organizou, com base no Acordo, seu Vocabulário Ortográfico Nacional, concluído em maio último e já incorporado ao Vocabulário Ortográfico Comum. Isso claramente sinaliza que o país está se encaminhando para ratificar e implantar o Acordo.
O Parlamento de Angola ainda não ratificou o Acordo. No entanto, o governo daquele país foi o que deu até agora a maior contribuição financeira para a execução do VOC (Vocabulário Ortográfico Comum), o que também sinaliza o compromisso do país com o Acordo. Além disso, vem trabalhando na elaboração de seu Vocabulário Ortográfico Nacional a ser incorporado ao VOC. Tanto em Moçambique quanto em Angola se defendeu que o VOC era pré-requisito para a implantação do Acordo. Essa atitude é plenamente compreensível, considerando que nenhum deles dispunha de um Vocabulário Ortográfico Nacional. Mais ainda: o português nestes dois países incorpora continuamente muitas palavras das línguas bantu e é preciso estabelecer as bases para a incorporação ortográfica desses empréstimos. Os especialistas em linguística bantu daqueles países vêm pesquisando as melhores soluções para isso, o que, obviamente, toma tempo, mas, de novo, sinaliza o compromisso com o Acordo. Os pesquisadores de Moçambique, por exemplo, já consolidaram essas bases, em discussões entre especialistas nos últimos anos na Universidade Eduardo Mondlane, e as aplicaram na elaboração de seu Vocabulário Ortográfico Nacional.
TN – Na audiência, em Brasília, afirmou-se que o Acordo foi feito pela Academia de Ciências de Lisboa e pela Academia Brasileira de Letras, cada uma dessas instituições possuindo apenas um especialista em lexicografia. Foi assim mesmo?
Sempre me espanta a desinformação em qualquer debate, assim como sempre me assusta a tentativa de esconder a história ou de reescrevê-la. O Acordo, como disse antes, foi precedido de quase 70 anos de debates. Nessas décadas, muitos linguistas e filólogos de ambas as academias, portuguesa e brasileira, se debruçaram sobre o assunto, bem como especialistas que não estavam afetos a cada academia, mas eram, sim, professores universitários de Linguística e Filologia (houve conferências e discussão pública em 1931, 1943-1945, 1967, 1975 e antes e depois de 1986 já agora incorporando especialistas dos outros países de língua oficial portuguesa). Houve, pois, inúmeras ocasiões para discutir o Acordo em âmbito técnico. Nessas ocasiões, a unificação das bases da ortografia foi sempre pensada em termos de grandes caminhos, sendo pesadas as diferentes opções técnicas gerais possíveis para obter o máximo de harmonização e aceitação política e social.
Nunca me lembro de ler a opinião de algum técnico envolvido nestas discussões defendendo uma reforma profunda à nossa grafia, de tão desavisado que tal seria. Por outro lado, não há nenhum motivo para desqualificar as duas Academias. Podemos, obviamente, discutir criticamente soluções que encaminharam aqui ou ali e os instrumentos que elaboram (isso faz parte do jogo), mas não podemos negar que elas construíram uma longa tradição lexicográfica que é, indiscutivelmente, um patrimônio da cultura de língua portuguesa e tem constituído o ponto de partida e referência para garantir a estabilidade da ortografia. E fizeram isso não só com a contribuição de seus membros, mas constituíram grupos permanentes de pesquisas na área – a Comissão de Lexicografia e Lexicologia da ABL e o Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa da ACL. Ambas as Academias sempre souberam também solicitar a contribuição de especialistas das Universidades.
Nada se fez ex-nihilo,como parecem sugerir algumas intervenções nas audiências na Comissão de Educação do Senado, e o objetivo sempre foi o de conseguir a unificação das regras de ortografia entre os países, objetivo que estamos quase a atingir neste momento, ao fim de quase um século de discussão e negociação.
TN – O PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) já adotou as mudanças? Novas alterações a esta altura acarretariam prejuízo ao erário? Qual é a posição do mercado editorial sobre isso?
CF – Sim, o PNLD adotou a ortografia do Acordo já a partir de 2010. A Comissão que assessorou o governo federal no processo de implantação do Acordo em 2008 (da qual fiz parte) teve este cuidado: propôs que o prazo para a vigência definitiva do Acordo levasse em conta o cronograma do PNLD. Trata-se, como sabemos, do maior programa editorial do Brasil, que envolve altíssimo investimento de dinheiro público. Qualquer nova alteração traria enormes prejuízos ao erário. Mas também traria enormes prejuízos às editoras brasileiras (todas vêm adotando a ortografia do Acordo nas reedições e novas edições desde 2009) e à imprensa (que adotou o Acordo no seu primeiro dia de vigência em janeiro de 2009).
Quando ouço e leio que há gente defendendo novas (e até radicais) mudanças, me pergunto se a intenção de fundo não é quebrar o parque editorial brasileiro. Os editores são contrários a qualquer nova mudança. Uma primeira manifestação nesse sentido foi feita oficialmente pela ABEU – Associação Brasileira de Editoras Universitárias. Seu documento, muito bem fundamentado, foi enviado à Comissão de Educação do Senado. A informação que tenho é que a Câmara Brasileira do Livro está também acompanhando de perto o assunto para eventuais medidas contra novas mudanças. A CBL, aliás, promoveu, na última Bienal do Livro em São Paulo, uma mesa-redonda na qual se debateram essas questões.
TN – O senhor pode explicar o que será o VOC (Vocabulário Ortográfico Comum)? Já há um prazo para a sua publicação? O VOC estabelecerá nomenclatura científica, topônimos e grafia de estrangeirismos?
O VOC é um instrumento previsto no texto do Acordo de 1990. É um instrumento necessário para servir de referência geral da ortografia resultante da unificação das bases ortográficas. É um vocabulário ortográfico não apenas nacional – como até 1990 – mas um instrumento geral consolidador da ortografia definida pelo AO com a representação das formas gráficas do vocabulário comum corrente em todos os países de língua oficial portuguesa. Como o VOC agrega os Vocabulários Nacionais de cada país, ele registra também palavras correntes em apenas um ou em alguns dos países. É possível, então, uma consulta geral obtendo os espaços de que é característica cada forma e suas eventuais variantes, quando existam, assim como é possível uma consulta específica, na medida em que cada Vocabulário Nacional mantém sua integral autonomia no interior do VOC. Sendo um vocabulário que registra todas as variedades nacionais do português, o VOC será um instrumento imprescindível de normalização ortográfica e poderá servir, no futuro, de base para um grande dicionário geral da língua.
O VOLP-Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da ABL não é um instrumento de referência geral porque apenas adaptou a antiga ortografia brasileira ao AO, abrange apenas o vocabulário corrente no Brasil e não deu representação às formas facultativas. O VOP-Vocabulário Ortográfico Português registra formas facultativas, mas, por ser um vocabulário basicamente português, não serve de referência geral do vocabulário comum. O VOC é, então, o instrumento que consolida a ortografia prevista no AO e abrange todos os países de língua oficial portuguesa. É uma base de dados lexicais eletrônica, de grande escala e aberta, que vem atender a necessidade da implementação da ortografia prevista no AO, bem como instaurar uma nova metodologia de trabalho conjunto dos países da CPLP na área do léxico da língua.
TN – O senhor poderia explicar como essa nova metodologia de trabalho torna possível, numa perspectiva de presente e de futuro, manter a unificação da ortografia nos países de língua oficial portuguesa?
A metodologia foi desenvolvida segundo o padrão tecnológico mais avançado existente na área. Essa base tecnológica de ponta permite: (a) ampliar as informações disponíveis sobre cada item lexical, quais sejam, o paradigma flexional, a divisão em sílabas e a marcação da sílaba tônica; (b) permite o reaproveitamento para ferramentas de processamento da linguagem natural (como os corretores ortográficos) e para pesquisas científicas; (c) facilita as consultas dos especialistas e do público em geral; e (d) deixa pronta a via para futuras atualizações.
A sua elaboração tem também outro efeito importante, qual seja, a consolidação de critérios mais objetivos para resolver contextos ortográficos tradicionalmente problemáticos, como as regras de hifenização e a adaptação de palavras importadas de outras línguas. Há, portanto, toda uma dimensão generalizadora no VOC que pautará sua atualização futura e a gestão conjunta da ortografia do português. O VOC foi apresentado na X Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da CPLP, realizada em Díli (Timor-Leste) em 23 de julho de 2014. Na Declaração Final dessa Cimeira, os Chefes de Estado e de Governo incluíram o VOC no patrimônio da CPLP, reconhecendo e recomendando seu desenvolvimento. A elaboração do VOC foi atribuída ao Instituto Internacional da Língua Portuguesa pelo Plano de Ação de Brasília saído da I Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, realizada pela CPLP em Brasília em março de 2010. O IILP procurou o centro mais avançado no espaço da língua portuguesa em pesquisas lexicográficas na área do processamento de língua natural, identificando-o no ILTEC-Instituto de Linguística Teórica e Computacional, que está hoje integrado à Universidade de Coimbra. Assinou, então, um acordo de cooperação técnica com esse Instituto pelo qual o ILTEC assumiu a planificação e execução técnica do VOC, aproveitando sua experiência no desenvolvimento de várias ferramentas ortográficas, em especial o VOP – Vocabulário Ortográfico Português, que foi adotado como referência oficial na aplicação do AO em Portugal pelo Conselho de Ministros em 2011.
O IILP fez também gestões junto ao governo português e à Academia Brasileira de Letras para obter a cessão das bases do VOP e do VOLP, respectivamente, para serem integradas ao VOC como o VON-Portugal (Vocabulário Ortográfico Nacional de Portugal) e o VON-Brasil (Vocabulário Ortográfico Nacional do Brasil). Ambas as gestões foram exitosas, o que garantiu um excelente ponto de partida para a elaboração do VOC, que agrega, pela primeira vez na história, as bases ortográficas portuguesas e brasileiras num único instrumento de referência, o que é uma grande vitória.
A esses Vocabulários se somaram, posteriormente, o Léxico do NILC -Núcleo Interinstitucional de Linguística Computacional da USP/ São Carlos e da Univ. Federal de São Carlos (que serve de base aos corretores ortográficos que operam acoplados ao processador de textos Microsoft Word no Brasil), o Vocabulário Atualizado da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa e o Corpus Brasileiro da PUC/SP. O IILP realizou uma reunião técnica internacional sobre o VOC em setembro de 2011, na cidade da Praia, Cabo Verde. Nessa reunião foram definidos, entre outros, os procedimentos para a elaboração de Vocabulários Ortográficos Nacionais dos países que ainda não dispunham de um. Ficou também estabelecida a constituição de um Corpo Internacional de Consultores com especialistas de cada país da CPLP para atuar junto à Equipe Central do VOC, analisando tecnicamente os critérios propostos por ela para chegar a um consenso interpretativo e contornar, quando necessário, eventuais omissões e ambiguidades do texto do AO.
Os trabalhos se desenvolveram a contento e uma primeira versão do VOC, incluindo o Vocabulário Nacional de quatro dos oito países de língua oficial portuguesa (Brasil, Moçambique, Portugal e Timor-Leste) foi apresentada em Lisboa na II Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, em outubro de 2013, sendo reconhecido oficialmente, já com a entrega para incorporação posterior do VON de Cabo Verde, na X Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da CPLP. O VON de São Tomé e Príncipe está em fase de validação e está previsto para dezembro próximo o lançamento oficial dessa grande base lexicográfica com pelo menos quatro países representados. Posteriormente, serão incorporados também os Vocabulários de Angola e Guiné-Bissau.
Os resultados alcançados até agora pelo projeto do VOC devem, sem dúvida, ser amplamente comemorados, considerando que representam significativos avanços na lexicografia do português e para uma real aproximação em sua normalização, já não apenas no plano político e legal, materializado no AO de 1990, mas também na efetiva aplicação técnica comum das normas dele resultantes. A questão terminológica fica para um outro momento, mas tem no VOC boas bases. No Plano de Ação de Brasília há uma diretriz sobre um futuro projeto de normalização terminológica. Será um projeto ambicioso, considerando a magnitude do problema terminológico em língua portuguesa que decorre do fato de essa questão nunca ter sido levada técnica e sistematicamente à frente, o que estimulou e continua a estimular indesejável divergência terminológica. Essa situação só será enfrentada e resolvida adequadamente com a organização e publicação de glossários em que os termos técnicos apareçam definidos com precisão e haja, pelas equipes de especialistas, ou a opção por um dos termos divergentes ou o estabelecimento de equivalências entre termos diferentes já consolidados. E essas tarefas todas não se fazem apenas por meio de um vocabulário ortográfico. Essa diretriz foi incorporada ao Plano Estratégico de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior da CPLP para o período 2014-2020, atribuindo-se ao IILP-Instituto Internacional da Língua Portuguesa a tarefa de coordenar o referido projeto, que já foi aprovado pelo Conselho Científico do Instituto em sua última reunião ordinária, em maio de 2014.
TN – Por tudo o que o senhor explicou, por todas as informações generosamente disponibilizadas a este blog, tenho muito a lhe agradecer – em nome também dos nossos leitores de fato interessados no tema. E, para terminar, gostaria que o senhor dissesse se acha que o AO pode ser chamado de “Desacordo Ortográfico”.
CF – É claro que não. O Acordo foi feito com o único objetivo de dissolver a dualidade de ortografias oficiais que constituía um embaraço à internacionalização e ao futuro da língua. Seu objetivo não era unificar a grafia de todas as palavras, mas as bases da ortografia, ou seja, reunir num único formulário com valor legal internacional as regras que configuram a ortografia. Por isso, admitiu formas facultativas em alguns poucos casos (e não, como alguns disseram exageradamente, uma multiplicação desordenada de formas facultativas). Eu diria que o Acordo de 1990, consolidando 70 anos de discussões, alcançou plenamente seu objetivo. Por isso, foi, é e será um grande sucesso.
Boa noite!
Prezada amiga e professora Thaís:
Simplesmente FANTÁSTICO o seu bate-papo com o professor Faraco. É inadmissível querer “ASSASSINAR” a ortografia da língua portuguesa, como quer o senhor Pimentel, um mero professor de cursinho preparatório para concursos. A senhora também está de parabéns. NÃO A ESSA ABERRAÇÃO!
Um abraço,
José Carlos
Existem dois contrassensos gigantescos aqui. O primeiro é dizer que essa unificação vem sendo estudada desde a década de 1920. Se o português brasileiro mudou incrivelmente de lá pra cá e se distanciou decisivamente do português europeu no processo, o que transparece é uma tentativa forçada, de todo descabida, de implantar algo que já não fazia sentido há pelo menos uns 30 anos. O tal acordo foi imposto, sem dúvida (como não é assunto de plebiscito a língua que as pessoas falam?), mal pensado como instrumento de política externa e veio mais atrapalhar a vida do cidadão atual do que prestar qualquer melhoria. Defender que isso vem sendo discutido desde aquela época é um enorme desfavor que o professor presta à sua própria argumentação. O segundo problema gritante é o tamanho dessa entrevista e das respostas do professor para algo que deveria, em tese, ser de máxima simplicidade. Justificativas demais, explicações demais, indignação demais. Não era melhor antes, sem “acordo” nenhum, sem precisar de nada disso? Não é a essência da coisa tornar tudo mais simples?
Obrigada ao professor Faraco e a você, Thaís. A entrevista é “serviço de utilidade pública” e deveria ser amplamente divulgada. Material rico para escolas. Parabéns!
Para defender o AO até às últimas é preciso uma coisa: mentir desbragadamente.
«Quando se olha com atenção para a história, parece claro que são totalmente improcedentes afirmações de que não houve discussão e de que o Acordo foi uma imposição autoritária. […] As poucas mudanças podem ser aprendidas em não mais que 15 minutos. […] Nunca encontrei um [professor] sequer que dissesse estar encontrando problemas para assimilar o Acordo. O mesmo se deu com editores, revisores e jornalistas com quem trabalhei na época. […] Seu objetivo não era unificar a grafia de todas as palavras, mas as bases da ortografia […]. Eu diria que o Acordo de 1990, consolidando 70 anos de discussões, alcançou plenamente seu objetivo. Por isso, foi, é e será um grande sucesso.»
Bom saber que as mudanças do acordo demoram 15 minutos para serem aprendidas e depois constatar que as pessoas, depois de anos de aulas, chegam à universidade semi-analfabetas. Melhor ainda é ser informado que os especialistas demoraram 70 anos para fazer um acordo que não alterou quase nada. Mas nada supera a previsão de que as editoras vão falir com uma nova mudança, quando lembramos o quão alegremente elas adotaram o acordo.
Que petulância a desse Ernani, achar que pode fazer o que os especialistas não foram capazes de fazer em 70 anos! Ele chegou ao cúmulo de querer ouvir o que o povo tem a dizer. O povo!! Alguém informe esse professor de cursinho que o papel do povo é apenas aceitar docilmente as decisões dos especialistas!