Os singulares higrômetros de Euclydes da Cunha
Você sabe o que é um higrômetro?
Do grego “higr(o)-”, úmido, molhado, chuvoso, e “-metro”, instrumento para medir, higrômetro é o nome genérico dos instrumentos que servem para medir a umidade de gases ou do ar.
Numa passagem da primeira parte do livro “Os Sertões”, intitulada “A Terra”, Euclydes da Cunha descreve o que chamou de “higrômetros inesperados e bizarros”. Vejamos o que ele quis dizer com essa expressão. Vamos à leitura, aqui auxiliada pela definição de alguns termos, postos entre colchetes:
Não a [refere-se à secura da atmosfera, mencionada no parágrafo anterior] observamos através do rigorismo de processos clássicos, mas graças a higrômetros inesperados e bizarros.
Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneio [descarga de canhões] frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes [verdejantes] viçando [vicejando] em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes [luzentes, cintilantes], davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a [sobrepondo-se à] vegetação franzina [de talhe fino].
O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela — braços largamente abertos, face volvida para os céus, — um soldado descansava.
Descansava… havia três meses.
Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da mannlicher [tipo de rifle] estrondada [avariada, quebrada], o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se [vergando-se] à violenta pancada que lhe sulcara a fronte [testa; face], manchada de uma escara [crosta de ferida] preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes…
E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranquilo [adaptado à nova ortografia] sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.
Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimes empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas [ressecadas, sem umidade] e o arcabouço engelhado [esqueleto enrugado] e duro.
À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a montada de um valente, o alferes Wanderley; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar [deslizar], porém, estrebuchando malferido [gravemente ferido], pela rampa íngreme, quedou, adiante, à meia encosta, entalado entre fraguedos [grupo de fragas, rochas]. Ficou quase em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto [saliência] da pedra… E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste [vento forte, típico da região], se lhe agitavam as longas crinas ondulantes…
Quando aquelas lufadas [rajadas de vento], caindo a súbitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos [mudanças bruscas na direção do vento] turbilhonantes [que rodopiam], à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação [ressecamento excessivo] do ambiente adusto [abrasado, de temperatura muito elevada]: cada partícula de areia suspensa do solo gretado [rachado, estriado] e duro irradiava em todos os sentidos, feito um foco calorífico, a surda combustão da terra.
(IN: Cunha, E – “Os Sertões”, Círculo do Livro, s/d)
Euclydes usou os adjetivos “inesperados e bizarros” para caracterizar o que, metaforicamente, chamou de “higrômetros”. O termo “bizarro”, embora também signifique “elegante, garboso, valente”, é empregado, não só no texto acima como pela maioria dos falantes brasileiros, como sinônimo de “insólito, excêntrico, estranho”.
O trecho exemplifica o gosto do autor pela descrição pormenorizada, em que alterna termos específicos (note que ele nomeia cada árvore ou plante que encontra: quixabeira, icozeiro, palmatória) com impressões (vale observar os adjetivos que emprega, em expressões como “canhoneio frouxo”, “tiros espaçados e soturnos”, “anfiteatro irregular”, “vale único”, “icozeiros virentes”, “flores rutilantes”, “quixabeira alta”, “vegetação franzina”, “promiscuidade lúgubre”, “fosso repugnante”, “sóis ardentes”, “luares claros”, “estrelas fulgurantes”, “tranquilo sono”, “árvore benfazeja”, “animal fantástico”, “rajadas ríspidas”, “crinas ondulantes” etc.). É quase como se cada substantivo recebesse um adjetivo, sendo este, não raro, um termo que revela a percepção subjetiva do autor.
Vamos destacar duas questões gramaticais, constantes objeto de dúvida, que a passagem bem ilustra.
A primeira delas diz respeito à colocação pronominal. É comum as pessoas terem dúvida sobre a posição do pronome átono quando, mesmo existindo um claro fator de próclise, ocorre uma intercalação de expressão (entre vírgulas) antes dele. Pergunta-se se prevalece a próclise ou se, por haver uma expressão entre vírgulas, a ênclise seria mais adequada.
A orientação que costumo dar aos consulentes é que mantenham a próclise, exatamente como faz Euclydes em algumas passagens do texto acima. Vejamos:
… sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes…
Quando aquelas lufadas, caindo a súbitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos turbilhonantes, à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação do ambiente adusto:…
A oração iniciada pela conjunção “quando” (subordinada adverbial) constitui fator de próclise (quando se lhe agitavam; quando se compunham). O fato de haver elementos intercalados (ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste; caindo a súbitas) não alterou a posição do pronome átono, que se manteve antes do verbo (próclise).
A segunda questão é o emprego das formas “há” e “havia” para indicar o tempo decorrido. Ambas se prestam a isso, mas não expressam a mesma ideia. Estamos aqui no campo da categoria gramatical do aspecto verbal.
Voltemos ao texto para extrair dois exemplos:
- Descansava… havia três meses.
- O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes…
Na primeira das passagens acima, o autor empregou “havia”, no pretérito imperfeito (mesmo tempo verbal em que está a forma “descansava”). Esse tempo, além de indicar ação interrompida (daí o nome “imperfeito”), apresenta o aspecto durativo, ou seja, indica que uma ação se prolonga no tempo.
Ao dizer que o soldado morto “descansava havia três meses”, Euclydes deixa claro que ele ali permaneceu por três meses (quando foi encontrado pelo escritor, fazia três meses que estava lá). Foi, aliás, a sua permanência lá, no clima árido, que o mumificou.
Na segunda passagem, Euclydes afirma que o destino o deixara (pretérito mais-que-perfeito) ali há três meses. Nesse trecho, Euclydes não se refere à duração, mas ao momento exato (aspecto pontual) em que o soldado morreu (morreu há três meses).
Há, portanto, uma diferença entre dizer que algo ocorreu há três meses (ação terminada três meses atrás) e dizer que algo ocorria havia três meses (vinha ocorrendo durante três meses).
Não faltam temas a extrair dos textos de Euclydes da Cunha, mas hoje ficamos por aqui. Espero que tenham gostado da leitura. 🙂
Por que escrever Euclides com “y”? Vamos voltar a “Christo” com “h”?
VLC, vou-lhe dizer que hesitei quanto a isso, mas, como o blog é da Folha e esse é o padrão do jornal, decidi segui-lo. Esse é o padrão, pois houve o entendimento de que não deveríamos adaptar a grafia de nomes próprios às reformas ortográficas. De resto, tenho em casa uma 10ª edição d’Os Sertões, em que o nome do autor ainda é Euclydes da Cunha, e outra mais recente, que venho usando para reproduzir os textos, na qual se optou por Euclides.
Thaís (ou Taís?), não quero encher o saco mas achei interessante o que Luís Antônio Sacconi escreve em sua gramática Não Erre Mais (aliás, eu sou pela atualização da grafia, caso contrário a reforma ortográfica não teria sentido, e não entendo essa postura da Folha:
Devo escrever Aírton Sena ou Ayrton Senna?
Pelas normas ortográficas em vigor, fixadas pela Academia Brasileira de Letras, hoje devemos escrever Aírton Sena.
É bem provável que o leitor tenha ficado surpreso com a resposta. É compreensível; nós também não somos favoráveis a tamanha mutilação, principalmente nos sobrenomes. Pelas regras vigentes, no entanto, após a morte de uma pessoa, seu nome passa a estar sujeito às normas ortográficas em vigor: Philomeno vira Filomeno, Raphael vira Rafael, Thomaz vira Tomás, Teophilo vira Teófilo, Josephina vira Josefina, Manoel vira Manuel, Newton vira Nilton, Walter tem de se tornar Válter e assim por diante. Os sobrenomes nacionais com letras dobradas, como Villa-Lobos e Villas-Boas, devem perder uma dessas letras, tornando-se, portanto, Vila-Lobos, Vilas-Boas etc. Não considero isso razoável, por isso desobedeço aqui e em outras obras minhas a essa norma, mas apenas no tocante aos apelidos ou sobrenomes. Convém lembrar, porém, que Thomé de Souza passou a Tomé de Sousa(e ninguém reclama); que Adhemar de Barros virou Ademar de Barros (e ninguém reclama); que Paes Leme passou a Pais Leme; que Rodrigues de Moraes passou a Rodrigues de Morais; que Viriato Corrêa virou Viriato Correia; que Carlos Goes passou a Carlos Góis; que Osman Lins virou Osmã Lins.
Um dia, também eu mesmo virarei Luís Antônio Sacconi. (E já estou indignado.) Mesmo com relação aos nomes, é preciso haver alguma condescendência. Veja o caso de Wilson. Alguém aceitará Uílson? Ou Vílson? Não, creio que já seja hora de mudarmos isso. Toda mudança, contudo, tem deter a chancela da Academia Brasileira de Letras, que ainda não se dignou manifestar. Tom Jobim não aceitava que alguém escrevesse Vinícius (com acento) de Morais (com i). Queria que todos respeitassem a grafia constante do registro civil do grande poeta: Vinícius de Moraes. Mal sabia Tom que seu próprio sobrenome deveria ser escrito, após a sua morte, Jubim (esta é a forma correta, segundo a norma em vigor). Os sobrenomes estrangeiros ou de origem estrangeira ficam, até pela norma, imutáveis. Portanto, grafaremos sempre Drummond, Goulart, Kubitschek, Matarazzo, Sacconi etc.
É o professor Sacconi quem está comentando?
Gostei
Excelente texto, especialmente no que se refere à colocação pronominal. Embora já seja velhusco, reaprendi ontem uma palavra de que já havia me esquecido: dilúculo. Foi o nome do jornalzinho editado pelo velho Graça quando tinha apenas 12 anos de idade, em 1904.
Gosto dos textos enxutos de Graciliano e de sua distimia que o fazia mal-humorado (para diversão de seus amigos, pois ele os possuía).
Li certa vez uma história cuja veracidade gostaria de certificar. Levado quase à força a uma homenagem, enfrentou o discurso de um poetastro da época que, referindo-se a sua obra, mandou:
– Quando o farfalhar das águas…
Graça teria se levantado e proclamado:
– Farfalhar das águas é a PQP !!!
Será verdade?
Sinceramente, não conheço a história, mas bem poderia ser verdadeira. Vamos ver se algum leitor pode confirmar para nós! Também gosto muitíssimo de Graciliano Ramos e logo ele estará aqui na nossa sala de leitura. Abraços 🙂
Sim, é do Sacconi. Ver em http://pt.scribd.com/doc/235815817/Nao-Erre-Mais-Luiz-Antonio-Sacconi#scribd
Sempre tive a intenção de ler “Os Sertões” mas ficava desanimado por encontrar muitas palavras desconhecidas (me parecia ser imprescindível ter, o tempo todo, um dicionário ao lado). Li e reli o texto acima e espero que haja outros, que nos ajudarão a ter uma maior compreensão dos fatos narrados.