Homem-Legenda, um caçador de eufemismos

Thaís Nicoleti

O super-herói das tirinhas do querido Adão Iturrusgarai certamente deve frequentar as aulas de português nas escolas. Suas micro-histórias, aventuras e desventuras de um desmascarador de volteios semânticos, são ótimos ganchos para estudar as possibilidades expressivas da língua.  portugues em dia

As chamadas figuras de linguagem ocorrem não apenas nos textos literários, quando têm clara finalidade estética, mas também no dia a dia, mediando as relações entre as pessoas. É esse o material de que se serve o Homem-Legenda, com o qual nos identificamos imediatamente. Ele se diverte desmontando os eufemismos cotidianos.

Essa figura de linguagem é normalmente definida como uma palavra ou expressão de que lançamos mão para suavizar uma notícia desagradável, para não ofender ou chocar o interlocutor. Pode aparecer na literatura, é claro,  quando provoca emoção estética. Exemplo disso está no belo poema de Camões, “Alma minha gentil, que te partiste/ Tão cedo desta vida descontente,/ Repousa lá no Céu eternamente,/ E viva eu cá na terra sempre triste”, em que a ideia de morte é “traduzida” pela imagem de um “repouso eterno”.

Como vemos, Camões associou a ideia da morte à de um repouso. Até hoje, as pessoas usam o verbo “descansar” no lugar de “morrer” quando se veem na situação de consolar alguém pela perda de um ente querido. Quantas vezes ouvimos alguém dizer que a pessoa que morreu “descansou”? Esse é um exemplo corriqueiro de eufemismo.

Houve um tempo em que se dizia que uma pessoa “foi desta para melhor” para evitar dizer diretamente que morreu. Atualmente, essa mesma expressão adquiriu um sentido jocoso. A linguagem expressiva tem tendência a desgastar-se mais rapidamente que a linguagem neutra. Já não seria cortês dizer que a pessoa falecida “foi desta para melhor”, mas nem por isso deixamos de buscar um modo mais suave de falar da morte.

É o eufemismo ainda que empregamos para camuflar aquilo que não queremos admitir publicamente por ser, em alguma medida, constrangedor. Uma pessoa perde o emprego, mas prefere dizer que está em busca de novos desafios; o empregador demite, mas diz que a empresa está em processo de reengenharia. São muitos os exemplos.

Vejamos aqui uma das situações em que o Homem-Legenda, com seu humor escancarado, desmascara o sentido supostamente oculto da frase “Estou me adaptando aos novos tempos”:

 

HOMEM -LEGENDA - NA MERDA 15229187

É nítido que a tira apresenta um viés crítico, ligado ao momento de sua veiculação (foi publicada na Folha ontem, 18.8.2015). Os “novos tempos” a que se refere o personagem são o momento de crise econômica por que passa o país. Como o Homem-Legenda não tem hora de descanso, hoje (19.8.2015), ele volta à página do jornal em nova “aventura”:

Homem-legenda - garrafas PET

Aqui se vê uma situação típica do nosso tempo: o uso de um discurso politicamente correto para camuflar intenções menos “nobres”. A defesa do meio ambiente é hoje um discurso mobilizador, contra o qual “não há argumentos”. Daí o seu poder persuasivo.

As figuras de linguagem, antes objeto da retórica, hoje pertencem também ao estudo da pragmática. Aliás, os estudos de retórica vêm-se revitalizando na relação com as disciplinas da linguística que estudam os componentes afetivos da linguagem. Teremos a oportunidade de voltar a esse tema.

Por ora, deixo aqui o convite do Adão Iturrusgarai para o lançamento do seu livro de quadrinhos “Rocky & Hudson”. Haverá uma sessão de autógrafos amanhã, 20/08, quinta-feira, em Curitiba, às 19h, no Itiban Comic Shop (Av. Silva Jardim, 845). Em São Paulo, o evento será realizado no próximo sábado, 22/08, em dois horários e locais: às 13h, no Centro Cultural Correios (Av. São João, s/n, Vale do Anhangabaú) e, às 19h, no Conjunto Nacional, livraria Geek. (Av. Paulista, 2073).

Comentários

  1. Prezada Thaís,

    Em “os estudos de retórica vem-se revitalizando”, há um erro de revisão em “vem-se” em vez de “vêm-se”, já que o sujeito é plural.

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