Coesão: alicerce do texto
Um bom texto deve ter coesão. Em física, esse termo é usado para nomear a força de atração entre os átomos e as moléculas de um corpo, a força que torna o corpo resistente à quebra; no universo empresarial, a palavra costuma ser empregada com o sentido de união (uma equipe coesa é aquela cujos membros são solidários e trabalham em conjunto).
Pode-se dizer que a coesão textual é uma espécie de solidariedade entre as partes de um texto. Embora a ideia seja fácil de compreender, a produção da unidade num texto requer o conhecimento de alguns mecanismos linguísticos.
A tão almejada fluência resulta da organização do pensamento, que se articula segundo diferentes relações semânticas (de causa e efeito, de oposição, de condição, de conformidade etc.). Arranjando e rearranjando as ideias – uma ideia explica a outra, duas ideias se adicionam e, juntas, constituem a causa de outra, três ou quatro ideias se enumeram e, juntas, constituem a condição de outra etc. –, o redator vai fazendo a costura do texto, ponto por ponto.
Nesse processo de estabelecimento de relações, usam-se as conjunções (coordenativas e subordinativas) e as estruturas correlativas, além de outros mecanismos. Coordenação e subordinação são os processos básicos de organização dos períodos. As orações coordenadas têm o mesmo peso no período, já as subordinadas se distinguem hierarquicamente.
Na fala das crianças e nos seus primeiros textos, tende a preponderar o processo de coordenação (muito uso da conjunção “e”, orações sem conectivos, oposição marcada apenas pela conjunção “mas” etc.).
Textos mais complexos apresentam períodos que mesclam os dois processos. A ideia de oposição, por exemplo, pode aparecer de diferentes formas. Tomemos o conhecido ditado popular “A justiça tarda, mas não falha”, no qual duas orações se ligam por um conectivo de oposição (“mas”) sem que haja hierarquização sintática entre as partes do período.
Se o período fosse composto por subordinação, a oposição entre as ideias poderia ser feita com a conjunção “embora” ou outra similar.
Vejamos duas construções possíveis:
(1) Embora tarde, a justiça não falha.
(2) A justiça tarda, embora não falhe.
Nos exemplos (1) e (2), criamos hierarquização sintática entre as ideias. A oração que contém a conjunção introduz a ideia subordinada, de modo que, em (1), a ênfase recai sobre a crença em que a justiça não falha (mesmo que chegue tarde, o que importa é que “ela não falha”) e, em (2), a ênfase é posta sobre o fato de a justiça tardar (mesmo não falhando, o que importa é que “demora a ser feita”). Vemos, assim, como o modo de enunciar uma ideia nos permite perceber diferentes pontos de vista e intenções.
O jogo de ênfases – uma ideia sobrepondo-se a outras em um momento ou outro – resulta, sobretudo, da manipulação dos processos de coordenação e de subordinação, bem como do uso das estruturas correlativas e mesmo da escolha da ordem dos termos.
A ordem dos termos pode ser um importante recurso na obtenção de nuances de significado. Que efeito obteríamos se alterássemos a ordem de “A justiça tarda, mas não falha” para “A justiça não falha, mas tarda”?
A primeira formulação coincide com a máxima, na qual a advertência de fundo moral aparece na segunda parte do período (a justiça pode até demorar, mas não falha, dela ninguém escapa etc.). A segunda, inventada com o intuito de estudar possibilidades linguísticas, pode embutir uma crítica ao sentido da frase original (a ressalva indicada por “mas tarda” mostra um ponto de vista crítico em relação à demora).
O recurso da correlação também produz importantes nuances semânticas. Numa construção como “João não só trabalha mas também estuda”, para além da ideia de adição (trabalhar e estudar), temos ênfase no fato de João estudar e, de quebra, um traço de oposição, que articula não os elementos do período em si mesmos (estudar e trabalhar), mas a expectativa do receptor da mensagem (expressa na primeira parte do período) e a informação contida na segunda parte. E aqui já estamos adentrando o terreno da pragmática, a disciplina da linguística que estuda a linguagem em sua situação de produção, considerando as crenças e o sistema de referências de quem fala e de quem ouve.
Há muito a examinar nessa seara. O texto fluente é o resultado da atuação de muitas forças, entre as quais a coesão.
[o presente texto é uma reedição da versão original, publicada em outubro de 2012 na “Revista da Cultura”]
Excelente texto. Um grande prazer em lê-lo. Um contraponto para a barbárie que diariamente maltrata os nossos olhos e ouvidos nestes tempos de “nóis-pega-o-peixe”.
Sempre um prazer ler e aprender com seus textos. Obrigada pela clareza de suas explicações.
Thaís Nicoleti, achei muito bom o teu artigo. Esclarecedor. Sou estudante de jornalismo. Mas gostaria de que a disciplina de redação fizesse este tipo de abordagem no ensino dos textos. Gosto de escrever, mas sinto uma carência nas construções dos meus textos muito grande. Se eu aprendesse a dominar este tipo de tema que abordaste no artigo, muito melhoraria minha escrita. Se você tiver mais material que possa me ajudar na área de Redação Jornalística ou produção textual e puder me conseguir, ficarei muito grato. Parabéns pelo artigo. Obrigado!
Valnir, fico feliz por tê-lo ajudado. Pelo que observo em sua mensagem, você escreve bem. Publicarei mais textos nessa linha aqui no blog. Continue acompanhando, certo? 🙂
Muito bom este texto. De certa forma, o referido texto mostra que a organização sintática dos períodos influencia ou determina a semântica (idéia) que queremos transmitir quando redigimos.