Três baixas na vida cultural da cidade
Depois do incêndio que atingiu o Museu da Língua Portuguesa e do fechamento da editora Cosac Naify, somos tomados de assalto pela notícia do encerramento das atividades da locadora de vídeos 2001, conhecido refúgio dos cinéfilos paulistanos. São três notícias, de diferentes dimensões, que abalam, cada uma a seu modo, os hábitos de quem tem aquela, digamos, sede de cultura.
Embora o acervo do museu seja virtual, portanto passível de recuperação por backup, os destroços do prédio sugerem que a visitação pública vá ser interrompida por longo tempo. Lamento não ter chegado a ver a exposição da obra de Câmara Cascudo, que, espero, volte por ocasião da reabertura do espaço. A Folha noticia que as obras expostas eram reproduções e que os originais estão a salvo, no Instituto Câmara Cascudo, em Natal, terra do etnógrafo, escritor e folclorista.
A reconstrução do museu pode ser uma oportunidade para empreender a revisão ortográfica de alguns tópicos. É um pormenor, mas sempre me incomodou a grafia “cafézinho”, assim com acento, que se via na grande tela do corredor principal do segundo andar. Certamente uma pequena falha técnica, pois ao substantivo “café” (acentuado) se juntava o sufixo “-zinho” sem observar que, no diminutivo, a tonicidade da palavra muda e esse acento desaparece. Pode ser banal para quem conhece a regra, mas tem relevância para os estudantes, que lá chegavam em caravanas.
A Praça da Língua, um belo espaço apelidado de “planetário da língua”, em que o visitante mergulhava na poesia, escrita no chão e projetada nas paredes e no teto, bem poderia incluir na seleção de textos algum poema do nosso Manoel de Barros. Muita gente boa ficou de fora, é verdade, mas o mato-grossense encantador de palavras merecia estar ali, ao lado de outros grandes, e ter seus versos entoados nas gravações.
Cosac Naify
Também se noticiou que uma parte dos títulos da Cosac será comprada pela Companhia das Letras, o que pode aliviar a corrida em busca dos exemplares remanescentes das poesias de Murilo Mendes e de Jorge de Lima, que estão no lote arrematado pelo antigo concorrente. Resta saber se a nova editora manterá os projetos gráficos da Cosac Naify, valorizando os livros como verdadeiros objetos de arte.
2001 Vídeo e as redes sociais
A proprietária da locadora, Sonia Abreu, diz acreditar que o responsável pela baixa procura dos filmes, mais que a pirataria ou a concorrência direta do Netflix e dos canais de TV a cabo, sejam os novos hábitos na internet. Segundo ela, as pessoas deixaram de ter tempo para ver filmes, dado que destinam muitas horas às redes sociais.
É uma ideia que merece reflexão. A tagarelice virtual parece estar provocando dependência. Prova disso foi o desespero desencadeado pela suspensão do WhatsApp por um dia. Não pretendo discutir o mérito da decisão judicial, de resto frágil, derrubada que foi em poucas horas, mas chamar a atenção para a reação coletiva.
O fato é que, sim, as pessoas não desgrudam de seus smartphones, sedentas de interação com conhecidos e desconhecidos, de reconhecimento, de existência num mundo que não é propriamente paralelo, uma vez que fincado na realidade concreta, esta a matéria-prima das publicações.
Presencia-se uma espécie de desejo coletivo de ser um narrador de si mesmo, de transformar-se em discurso consumível (não raro, de teor publicitário). Esse comportamento talvez advenha da necessidade de existir como individualidade num mundo impessoal, talvez da necessidade de criar um simulacro (ou uma versão editada) de si mesmo e da própria felicidade ante a impossibilidade de ser feliz.
Assim, viramos todos autores, lançados no oceano virtual sem uma bússola, a não ser as tênues relações de “amizade” no sentido novo que o termo adquiriu (“amigos no Face”). Os “amigos do Face” produzem o conteúdo que lemos durante o dia inteiro: fotos de meigos bebês, adoráveis gatinhos e cãezinhos, piadas de todos os tipos, variando da inconveniência ao achado espirituoso, comida, muita comida, e também coisas relevantes, sem dúvida, mas tudo junto e misturado ao sabor da ventania.
Do lado de fora desse mundo, alguns ficamos, por ora, sem saber onde é que vamos achar os filmes de Manoel de Oliveira, de Akira Kurosawa, de Eisenstein, aqueles tantos que vimos e queremos rever ou aqueles outros que ainda não vimos e sabíamos que estavam lá numa prateleira da 2001.
O fechamento da 2001, assim como o de outras videolocadoras, é também uma vitória da pirataria que, para meu espanto, prosperou sob aparente leniência dae muitas distribuidoras de filmes em DVD. Três meses antes do lançamento oficial de um filme americano com Julianne Moore, ele já estava a venda por camelôs. A cópia é idêntica a oficial que, nas lojas honestas, custava em torno de 39 reais. Como o original, com propaganda de um hotel, saiu antes e foi parar nas mãos da pirataria estabelecida? E por que a crítica especializada, suas associações, nunca se manifestaram a respeito da questão?
Sem dúvida, a pirataria tem uma grande parcela de contribuição no fechamento da locadora. No entanto, é preciso entender que a pirataria só existe porque possibilita as classes menos favorecidas terem acesso a produtos que, se a pirataria não existisse, só as classes mais abastadas teriam acesso. Para comprovar o que estou dizendo, basta ir a uma loja de CDs e DVDs originais; sem falar numa entrada para ver um filme no cinema ou uma peça no teatro; tudo muito caro. É por isso e por outros motivos que a pirataria prospera alegremente.
Era sócio da 2001 há muitos anos, mas confesso que realmente estava cada vez mais difícil dispor de tempo para ir à locadora (excelente, com funcionários bem informados e com um acervo excepcional) escolher um dos títulos. Perde a cultura, como já perdeu pela perda dos cinemas de rua, praticamente extintos em São Paulo. Perde também porque a pirataria, embora faça popularizar filmes entre pessoas de outras classes sociais (não nos esqueçamos que o cinema é desde a origem uma arte popular), certamente não se ocupará de Kurosawas, Mizoguchis, Eiseinsteins, Antonionis, dentre muitos outros, mas apenas dos blockbusters. A reflexão é relevante nesse universo das redes sociais tão vazio de conteúdo.
Pois é, Rodrigo, nós nos sentimos meio “órfãos”. Talvez tenhamos de comprar os filmes em lojas especializadas, o que não é prático. Eu era assinante da 2001 e gostava de poder encontrar lá o filme desejado. Nunca fui fã de cópia pirata, não gosto, não consumo esse tipo de produto. Novos tempos… 🙂