“Que horas ela volta?”

Thaís Nicoleti

Alguns leitores ficaram incomodados com o título do último filme de Anna Muylaert, em que Regina Casé dá show de interpretação na pele da empregada doméstica Val.  Afinal, não estará faltando um “a” antes do “que”?

A resposta é positiva quando consideramos o registro formal do português. Se voltamos às 7h ou às 8h, com a preposição “a”, é claro que, pelo menos em tese, a preposição deve anteceder o pronome interrogativo: a que horas ela volta? recomendados thais 2

Digo “em tese” porque qualquer falante do português do Brasil pode perceber facilmente que, no registro informal, essa preposição tende a ser apagada.

E não foi outro o motivo da escolha do título do filme, que se explica logo na cena inicial, quando o menino, praticamente criado pela empregada, pergunta a ela qual seria o horário de chegada da mãe – para ouvir em seguida um “só Deus sabe” e ganhar um abraço de cumplicidade afetuosa.

Vale notar que esse traço linguístico tem largo uso inclusive entre as pessoas das camadas mais escolarizadas da sociedade: construções como o filme que eu assisti, a rua que eu moro, a hora que eu cheguei e outras parecidas são ouvidas com muita frequência. Isso não significa, é claro, que sejam a forma adequada ao registro formal, tanto escrito como oral, mas são fato linguístico.

A questão merece aprofundamento, mas, por ora, não quero perder a oportunidade de recomendar vivamente aos leitores que assistam ao filme.

Os diálogos são muito precisos; com poucas palavras e situações bem escolhidas, a diretora consegue revelar o cinismo estrutural da relação entre os patrões e a empregada doméstica, que é “parte da família”, só que não, como se diz por aí.

O que se vê o tempo todo é o discurso edulcorado dos patrões, em que se manifesta o que devem considerar respeito pela empregada, sem se dar conta de que o verdadeiro respeito se mede mais pelas ações que pelas palavras.

O descompasso entre a fala de gente educada e as condições de vida da empregada, que mora apertada num quartinho da área de serviço de uma luxuosa residência, a todo momento fisga o espectador.

A “patroa” é uma estilista, que, numa entrevista filmada nas dependências de sua casa, instada a definir “estilo”, dirá que “não tem segredo, é ser o que você é”.

Cheia de “estilo”, a filha da empregada rouba a cena exatamente porque foge ao “script” de “filha da empregada”: a moça, vinda do Nordeste para prestar vestibular em São Paulo, acaba instalada na casa da patroa de sua mãe como hóspede da família.

A presença da jovem é que revelará o conflito latente na relação e que desencadeará um processo de tomada de consciência e de transformação. Pode ser que essa transformação ainda vá demorar na vida real, mas o filme dá uma bela chacoalhada em quem acha muito “natural” distinguir o sorvete da patroa do sorvete da empregada e continuar dizendo que esta é uma “pessoa da família”.

Comentários

  1. Bacana este comentário. Eu também vi o filme e gostei, sobretudo, das atuações da Regina Casé e da atriz que fez a filha da empregada, cujo nome não guardei. Nos últimos anos, o Partido dos Trabalhadores (como “trabalham” esses coitados – rs) confundiu consumismo com cidadania. O filme mostra que é possível adquirir dignidade e consciência antes mesmo de se sair por aí comprando eletrodomésticos. Ser cidadão pleno não é abrir crediários nas Casas Bahia, embora seja importante, também, ter poder de compra.

    1. É verdade, Jaime. A moça diz em certo momento que foi um professor que “botou a cabeça dos alunos para funcionar”. Acho que isso também traz uma mensagem relevante a respeito da importância da educação na construção da cidadania.

  2. Não quero polemizar com partidarismos, Jaime. Mas é evidente que assim como “Central do Brasil” capta um momento de otimismo do Brasil, fruto da estabilização do Plano Real, “Que Horas Ela Volta” retrata um tempo de confiança no Brasil, sobretudo do pobre, na mobilidade social, digna. Concordo que consumismo não é cidadania. Mas a figura da menina é cidadã ou é ousada, confiante, folgada até? “A César o que é de César”: esse filme não poderia ser feito antes dos Partidos dos Trabalhadores assumirem o governo.

  3. Assim como “Central do Brasil” retrata um Brasil otimista, fruto da estabilização propiciada pelo Plano Real (do PSDB, ressalte-se), “Que Horas Ela Volta” capta um Brasil confiante, sobretudo no seu segmento mais pobre, na mobilidade social, digna. Este filme é uma obra do seu tempo e não poderia ser feito vinte anos atrás, antes dos governos petistas. Mas vamos para a questão levantada pelo Jaime: aqueles que fazem rolezinhos nos shoppings são cidadãos ou consumistas?

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