O mistério do flá-flu

Thaís Nicoleti

Com as redes sociais, é inegável que houve um aumento da comunicação escrita entre as pessoas. Isso, entretanto, não quer dizer que tenha havido uma busca de expressão mais sofisticada, fruto de reflexão.

Não pretendo aqui tratar do muito que se fala sem pensar, das interpretações apressadas de um texto ou da distorção das ideias alheias, motivo de brigas e linchamentos virtuais. final o leitor quer saber

Aparentemente, existe outro fenômeno em curso, que, aliás, também tem alguma relação com a falta de reflexão. As pessoas estão escrevendo exatamente como falam ou ouvem, apenas transpondo a fala para o registro escrito.

Uma consequência disso, entre outras mais desastrosas (já viram a grafia “concerteza”?), é que se passa a escrever palavras que antes pertenciam vagamente a um “vocabulário oral”, se é que se pode dizer isso, fazendo surgir inusitadas oscilações de grafia e até acalorados debates sobre a forma correta de escrever um termo ou outro.

Recentemente, foi a forma flá-flu que suscitou discussões, com direito a todo tipo de “argumento”.

Antes de tratar da grafia em si, vale dizer que o termo ganhou as redes sociais em razão de seu sentido figurado. Da rivalidade entre os times de futebol Flamengo e Fluminense, passou a designar outros embates entre grupos, todos marcados por fortes ataques de parte a parte. É fato que quase todos os temas que passam pelas redes caem na divisão entre os da banda de cá e os da banda de lá, os amigos e os inimigos, os coxinhas e os petralhas e o que mais o maniqueísmo simplificador permitir.

Em suma, todo conteúdo opinativo parece acabar reduzido à irracionalidade das querelas entre torcidas de futebol. Daí a proliferação do emprego do termo – até mesmo para criticar essa divisão, que já vem fazendo amigos de longa data brigarem.

Muito bem. A grafia de flá-flu (fla-flu, flaflu ou Fla-flu?) parece também estar suscitando uma “flaflulização” (?) do debate sobre ortografia.

“Flá”, uma redução de Flamengo ou de flamenguista, é um monossílabo tônico terminado em “a”, exatamente como “má” (feminino de “mau”), “pá”, “chá”, “dá” (forma do verbo “dar”) e os advérbios “cá” e “lá” – para ficar em alguns poucos exemplos formalmente similares. Tem até registro nos dicionários “Aurélio” e “Houaiss”.

“Flu”, por sua vez, é um monossílabo tônico terminado em “u”, como “nu” e “cru”. Os terminados em “i” e “u” não têm acento; os terminados em “a”, “e” e “o” o têm. Nos compostos ligados por hífen, cada elemento mantém seu acento. É o caso de “má-criação” e de “má-fé”, por exemplo.

Pode dar-se o caso de faltar uma memória visual da palavra escrita de acordo com as regras ortográficas vigentes, o que leva muita gente a estranhar o acento. A regra, porém. é bem antiga na língua portuguesa. Não se trata de nenhuma inovação trazida pelo Acordo Ortográfico de 1990, como podem pensar alguns dos seus detratores, sobretudo os que o criticam sem conhecê-lo a fundo.

“Flá-flu”, com acento no “flá” e sem acento no “flu”, é mera aplicação da regra. Sem mistério.

 

Comentários

  1. Entendo essa sanha formalista. A regra se aplica e, tudo bem, talvez deva mesmo se aplicar. Mas não poderia ser o caso de se considerar como uma exceção, por ser uma abreviação de Flamengo? Quem faz a língua somos nós. Ela não se faz sozinha nem tem razão de existir sem as pessoas. E outra: se tirar o acento, qual a diferença?

    1. Sim, é verdade. Não faz diferença quanto à pronúncia, mas então deveríamos abolir o acento dos outros monossílabos tônicos em “a”. Você chamou de “sanha formalista” o que penso ser um modo de organizar as coisas. Existe um sistema, certo? É verdade que, apesar de simples, muita gente o desconhece, mas ele existe.

  2. Olá, Thaís!
    Muito bom o debate, polêmico (rsrsrs)…
    Bom, não sou linguista, mas, como jornalista, procuro sempre seguir o que mandam as regras oficiais do idioma do meu xará de sobrenome.
    Neste caso específico que você levanta no artigo, cabe observar, ao meu ver, que os dois termos fazem referência a duas instituições, sendo que o nome da primeira instituição citada é grafado sem acento agudo: Flamengo. Não seria o caso, então, de adotar o subjetivo Fla-Flu desta maneira? Ou seja, respeitando as sílabas iniciais das agremiações com a letra “F” assim, em maiúsculo, e sem acentuação?
    Não vejo sentido, mesmo do ponto de vista léxico, fazer referência a um “flámengo” – algo que simplesmente não existe. Existe, sim, o Flamengo, sem acento e grafado em maiúsculo. Da mesma forma que Vasco, Palmeiras, Grêmio, Cruzeiro…
    Aliás, no caso de outros clássicos futebolísticos também designados por reduções silábicas, as grafias são sempre com as iniciais em maiúsculo e sem acentuações que distorcem os nomes originais. Há o RESPEITO aos nomes próprios dos times. Caso de Ba-Vi (que designa Bahia x Vitória), Gre-Nal (para Grêmio x Internacional), San-São (para Santos x São Paulo), Re-Pa (para Remo x Paysandu)…
    Bem, é só uma observação de um amante da língua materna e de um apaixonado pelo bom e velho esporte bretão – e, mais especificamente, pelo Fla em questão. Fla, não flá.
    Grande abraço,
    Oldon Machado

  3. Olá, Thaís!
    Muito bom o debate, polêmico (rsrsrs)…
    Bom, não sou linguista, mas, como jornalista, procuro sempre seguir o que mandam as regras oficiais do idioma do meu xará de sobrenome.
    Neste caso específico que você levanta no artigo, cabe observar, ao meu ver, que os dois termos fazem referência a duas instituições, sendo que o nome da primeira instituição citada é grafado sem acento agudo: Flamengo. Não seria o caso, então, de adotar o substantivo Fla-Flu desta maneira? Ou seja, respeitando as sílabas iniciais das agremiações com a letra “F” assim, em maiúsculo, e sem acentuação?
    Não vejo sentido, mesmo do ponto de vista léxico, fazer referência a um “flámengo” – algo que simplesmente não existe. Existe, sim, o Flamengo, sem acento e grafado em maiúsculo. Da mesma forma que Vasco, Palmeiras, Grêmio, Cruzeiro…
    Aliás, no caso de outros clássicos futebolísticos também designados por reduções silábicas, as grafias são sempre com as iniciais em maiúsculo e sem acentuações que distorcem os nomes originais. Há o RESPEITO aos nomes próprios dos times. Caso de Ba-Vi (que designa Bahia x Vitória), Gre-Nal (para Grêmio x Internacional), San-São (para Santos x São Paulo), Re-Pa (para Remo x Paysandu)…
    Bem, é só uma observação de um amante da língua materna e de um apaixonado pelo bom e velho esporte bretão – e, mais especificamente, pelo Fla em questão. Fla, não flá.
    Grande abraço,
    Oldon Machado

    1. Pois é. A minúscula usada pelo Houaiss e pelo Aurélio está ligada a “flá”, monossílabo tônico terminado em “a”, ser também redução de flamenguista, penso eu. Quanto a usar as maiúsculas ao se referir especificamente aos times de futebol (não o uso em sentido figurado), concordo, acho defensável sim. Mas note que o acento só ocorre porque a palavra se reduziu, tornando-se um monossílabo tônico terminado em “a”. Não caberia acento em Flamengo, paroxítona terminada em “a”.

  4. Além do texto ter sido muito instrutivo para a compreensão da morma culta, também foi exemplar para compreensão de como se deve usar luvas de pelica para se estapear. Elegância compartilhada. É bom ver certa empáfia ruir. Abraço, Thaís.

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