Prova da Fuvest valoriza leitura e raciocínio

Thaís Nicoleti

Espécie de baliza do ensino médio e de boa quantidade de cursos livres que prometem preparar os estudantes para o ingresso nas principais universidades do país, o vestibular da Fuvest é aguardado não só pelos candidatos como também pelos professores.portugues em dia

Neste ano, a prova de português foi considerada difícil, sobretudo em razão da escolha do tema de redação. Houve predomínio das questões de língua sobre as de literatura, estas relacionadas às obras pré-selecionadas.

A primeira pergunta, que requeria a interpretação de uma mensagem publicitária, aferia a capacidade do estudante de articular linguagem verbal e imagem. Mais que isso, ele deveria perceber o tratamento que a linguagem recebe de acordo com o fim a que se destina.

Imersos que estamos num mundo marcadamente visual, é realmente de esperar que faça parte da competência linguística do candidato a habilidade de interpretar imagens.

Vale notar que esse tipo de habilidade vem da experiência de leitura e do amadurecimento intelectual como um todo, fruto do conhecimento de todas as formas de expressão. Não há como treinar um estudante para acertar esse tipo de pergunta.

Na prova, também houve espaço para questões gramaticais propriamente ditas. Um anúncio de restaurante foi o modo de trazer para o teste a velha confusão entre a preposição “a” e a forma “há”, do verbo “haver”, para exprimir tempo decorrido.

O examinador apresentou ao candidato duas versões de um mesmo anúncio, estando na primeira delas o erro (“A 10 anos, nosso Chef cria pra você 2 saborosas opções de entradas, 3 pratos e 2 sobremesas por R$ 46, 75”) e, na segunda, não a sua correção, mas um novo volteio de frase (“Criações diárias do nosso Chef pra você/ 2 saborosas opções de entradas, 3 pratos e 2 sobremesas por R$ 46, 75”), em que se eliminava a expressão objeto da dúvida.

Essa, aliás, é uma estratégia de muitos redatores. Estando incertos sobre uma estrutura ou sobre a grafia de uma palavra, fazem substituições, mudam o texto, optando por elementos que lhes são mais familiares. Na prova, porém, o candidato deveria saber que o tempo decorrido se exprime pela forma “há”, do verbo “haver” (“há 10 anos”), não pela preposição “a”, que expressa, entre outras ideias, a de distância (“a anos-luz”, por exemplo).

O mesmo material serviu para abordar o emprego da linguagem oral como meio de aproximação com o público. Não é outro o motivo de a forma “pra” aparecer no lugar de “para” no referido anúncio.

Percebe-se ao longo de toda a prova a preocupação com os diferentes registros linguísticos e suas funções no processo de comunicação. Um artigo de divulgação científica foi usado para mostrar as marcas típicas de um texto jornalístico (ligadas, sobretudo, à escolha lexical), que o tornam distinto de um texto acadêmico, independentemente de ambos tratarem de um mesmo tema.

O candidato deveria, em suma, perceber que a língua dispõe de variadas estruturas para exprimir uma mesma ideia. Isso estava na base da questão em que verbos no infinitivo deveriam ser substituídos por verbos em tempos finitos sem modificar o conteúdo da informação.

A coesão foi tema de, pelo menos, duas questões: em uma delas, aferia-se o emprego de pronomes e de expressões de retomada; em outra, havia uma reflexão de Denise Fraga, em sua coluna da Folha, sobre o emprego da conjunção “mas” no pai-nosso. Afinal, “mas” indica oposição e ela diz não ver essa relação entre “não nos deixeis cair em tentação” e “livrai-nos do mal”, entendendo as duas ideias como similares.

Ao estudante foi pedido que interpretasse a questão proposta pela cronista, não a oração cristã em si, que é uma tradução do latim “Et ne nos inducas in tentationem sed libera nos a malo” (os termos grifados significam “não” e “mas”, respectivamente, ou seja, “não isso, mas aquilo”). A ideia de oposição que a colunista diz não enxergar se dá entre o negativo e o positivo (imaginemos, por analogia, algo como “não esbanje, mas economize”, isto é, “não faça isto, mas, sim, aquilo”, ainda que “não esbanjar” signifique “economizar”; em outras palavras, a oposição se dá entre os dois termos relacionados por “não/mas”). Roga-se a Deus que não nos deixe cair em tentação, mas (sim) nos livre do mal.

Fechemos, por ora, esse parêntese (se for o caso, que nos socorram os latinistas e os teólogos) e passemos para aquilo que constituiu, para o bem ou para o mal, a maior surpresa da prova: a redação.

Quebrando a expectativa dos cursinhos preparatórios, a Fuvest não usou o noticiário para elaborar o tema de redação. Em vez disso, optou por um debate de natureza filosófica sobre o valor das utopias. Seriam elas indispensáveis, inúteis ou nocivas?

É claro que o tema era complexo – e mais ainda para os que nunca tenham tido aulas de filosofia. Para enfrentá-lo, os candidatos tinham à sua disposição uma coletânea composta de seis excertos de textos filosóficos, a começar por uma definição extraída de dicionário de filosofia.

A leitura atenta de todos os textos era fundamental para que se realizasse um texto competente. Sem dúvida, o repertório de leitura e o nível de abstração do candidato fazem muita diferença numa hora dessas, quando é preciso fazer uma reflexão complexa em pouco tempo.

Manter o debate no nível abstrato era o caminho mais difícil, mas era possível tentar pôr a discussão no plano concreto. Era fundamental que o estudante metabolizasse todos os textos da coletânea, em vez de escolher um ou outro que lhe parecesse mais confortável ou mais fácil – afinal, assumir um ponto de vista não significa ignorar os demais.

O desejo de um mundo melhor, sem injustiças, pleno de harmonia, pode parecer, à primeira vista, uma unanimidade, algo indiscutível, mas a proposta era que o candidato percebesse que até mesmo uma ideia como essa pode ter um lado negativo. Em tempos de pessimismo e da aceitação um tanto cínica da falibilidade de tudo – do homem, da sociedade, dos relacionamentos, da democracia, da Justiça – haverá lugar para a utopia?

Certamente a Fuvest conseguiu pôr em debate um tema importante e dificilmente previsível pela turma dos cursinhos. De todo modo, uma boa preparação envolve não a adivinhação do tema que vai aparecer na prova, mas o estímulo à leitura, ao raciocínio, ao debate de ideias e ao estudo das potencialidades da expressão linguística.

 

Comentários

  1. O vestibular da FUVEST é até adequado, mas, como modelo de acesso ao ensino superior, não é ideal. Nos países europeus e em vários países que foram ex-colônias inglesas (por exemplo, África do Sul, Austrália, Nova Zelândia, e diferentes ilhas do Caribe), o processo de admissão às universidades está associado à certificação do diploma do ensino médio. Nos últimos dois ou três anos do ensino médio, o aluno cursa um número menor de disciplinas com grau mais alto de profundidade e a maior parte da nota final obtida em cada disciplina cursada é determinada por exames externos de âmbito nacional (ou estaduais no caso da Austrália) que são aplicados ao longo de vários dias , geralmente no final do ultimo ano da escola. As universidades definem então uma nota mínima de corte para admissão baseada nas notas finais no certificado de conclusão do ensino médio, observadas as exigências de disciplinas que são obrigatórias para determinados cursos universitários particulares pretendidos.

    Com um numero menor de matérias avaliadas e a avaliação mais distribuída ao longo do tempo, é possível examinar o conteúdo do ensino médio de forma mais abrangente e mais aprofundada do que no vestibular brasileiro. Para exemplificar, considere o caso da África do Sul, que é um exemplo interessante por ser um país de renda média como características socioeconômicas semelhantes às do Brasil. O exame final de inglês no ano 12, equivalente ao nosso vestibular de português, é dividido em três provas escritas e uma prova oral. A prova escrita 1, com duração de duas horas e valendo 70 pontos, é sobre “Language in Context” , e divide-se em três seções, respectivamente de compreensão de textos, resumo de textos, e questões de gramática e estruturas da língua em contexto. A prova 2, de literatura, tem 2 horas e meia de duração e vale 80 pontos, sendo dividida também em três seções, respectivamente de poesia, romance e teatro, incluindo questões dissertativas e contextuais sobre obras previamente lidas pelo aluno. Já a prova 3, de redação, também com 2 horas e meia de duração e valendo 100 pontos, é composta de duas seções onde o aluno tem que produzir respectivamente uma dissertação mais longa (como no vestibular brasileiro) e dois outros “textos transacionais” mais curtos (como cartas por exemplo). Finalmente, a prova oral, que, ao contrário das escritas, é realizada ao longo do ano, vale 50 pontos e divide-se em duas apresentações que o aluno deve fazer, respectivamente com e sem preparação prévia (“prepared and unprepared speech”) , e de um teste adicional de compreensão de língua falada.

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