O discurso vitorioso
A votação da abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, no domingo 17 de abril, aguardada como final de campeonato e acompanhada no país inteiro em clima de torcida de futebol, rendeu um espetáculo inesperado, a par do já esperado resultado.
Durante a semana subsequente, não houve articulista da imprensa que, independentemente da opinião sobre o impeachment, resistisse à tentação de comentar os discursos que acompanharam o voto de cada deputado.
Mais importante que coligir eventuais deslizes de concordância ou de regência verbal cometidos durante as falas é tentar entender os discursos que estiveram em jogo no palco do Congresso.
A expressiva maioria dos que votaram pela aprovação da abertura do processo evocou como motivação maior para o seu gesto político a própria família, com direito a declarar o nome de filhos, netos, bisnetos, pai, mãe, tias, noras, o pai que completaria cem anos e alguns bebês que ainda vão nascer, além de amigos e colegas de profissão. Mais de um agradeceu à família por ter “chegado aonde chegou”, outro enviou os parabéns à neta aniversariante, enfim, a síntese algo patética de um deprimente provincianismo.
Saindo da esfera das emoções privadas, esse grupo ainda devotou homenagens a algumas instituições, como a Polícia Militar e as Forças Armadas, aos movimentos Vem Pra Rua, MBL e Revoltados On-Line, aos manifestantes da avenida Paulista, a alguns personagens (Olavo de Carvalho, major Olímpio, apóstolo Valdemiro Santiago, coronel Brilhante Ustra, juiz Moro, Roberto Jeferson), aos militares de 64, aos maçons, a Deus e a grupos religiosos identificados como “nação evangélica”, “nação quadrangular”, “assembleanos de todo o Brasil” e membros da Renovação Carismática.
A maioria lembrou também os próprios redutos eleitorais, muitas vezes pequenas cidades ou regiões, bem como grupos ligados a atividades profissionais (transportadores, profissionais da saúde, corretores de seguros, médicos). Houve quem dedicasse o voto aos “homens de bons costumes”.
Desse grupo vieram posicionamentos contrários ao PT, à corrupção, à “bandeira vermelha”, ao comunismo, vozes que clamaram pelo “verde-amarelo”, pela “ordem e progresso”, pelos ideais da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade) e pela paz em Jerusalém.
Um deputado pediu desculpas a Lula e afirmou estar respondendo às redes sociais. Alguns falaram em ética, recuperação da economia e do desemprego. Um disse que o impeachment ocorreria porque a presidente não tem relação com o Congresso, outro disse que seu pai (César Maia) foi atropelado pelo PT. Alguns fizeram queixas de que o governo federal não atendeu a suas reivindicações. Houve um que afirmou “ter sofrido nas mãos do PT”, mas não estar votando por rancor, e sim ouvindo a voz das ruas. Alguns teceram críticas ao presidente da Casa, Eduardo Cunha, enredado em acusações de vários delitos. Paulo Maluf preferiu não dizer nada.
Os que votaram contra a abertura do processo, em sua maioria, evocaram a Constituição, a democracia, as lutas sociais, a justiça social, os direitos da população, o direito ao trabalho, o Estado democrático de Direito e grupos como quilombolas, negros, indígenas, pobres, sem-teto, sem-terra, mulheres “empoderadas”, LGBT e pessoas com deficiência. Em geral, chamaram o processo de golpe, farsa e hipocrisia e, majoritariamente, criticaram o que consideraram “demagogia” dos colegas e a falta de honestidade do presidente da Casa, que conduzia o processo.
Os homenageados por esse grupo foram os estudantes que ocuparam escolas, as pessoas que enfrentaram o golpe de 64, as mães que perderam filhos para a violência e personagens como Zumbi dos Palmares, Miguel Arraes, Leonel Brizola e Marighela.
O primeiro ponto relevante a considerar é o fato de que esses parlamentares são os representantes do povo brasileiro. Cada um deles foi escolhido por uma parcela do eleitorado.
Se tantos evocaram as relações com a própria família, a provar que são “homens de bons costumes”, ciosos dos seus entes queridos, é muito provável que esse discurso, independentemente de ser verdadeiro, agrade aos seus nichos eleitorais. O mesmo vale para os do grupo contrário ao impeachment, que fala com as minorias organizadas e com boa parte dos intelectuais, sua base eleitoral.
O discurso vitorioso, a medir pelos votantes do dia 17 de abril, mais que o de partidários do liberalismo econômico, da democracia e da ética, foi o do conservadorismo dos costumes. Tudo leva a crer que deputados que homenageiam suas “nações” evangélicas, quadrangulares ou assembleanas se elejam em nome de valores religiosos e da defesa de certos comportamentos, coisas que, num estado laico, não deveriam ser pauta política.
Para a aprovação da abertura do processo, foi necessária a votação maciça desses representantes da moral, dos bons costumes e até do golpe militar de 64.
O Brasil descortinado no melancólico espetáculo do 17 de abril é um país despolitizado e conservador nos costumes, muito aquém do necessário debate de ideias.
Somente com o investimento em uma educação capaz de promover o pensamento autônomo e a capacidade crítica é que, um dia, poderemos conviver como cidadãos que, mesmo com pontos de vista e interesses diversos, com divergências legítimas, busquem o bem comum, ou seja, o bem todos, para além das bem constituídas famílias tradicionais.
Bom dia , Professora : Concordo com suas considerações , porém , tal acontecimento já se viu quando no caso Collor , nada mudou ! Na expressão ” MAIS DE UM AGRADECEU ” o verbo fica mesmo no singular , mesmo sendo mais de um ? Obrigado .
Oi,sim, fica no singular.
Bom dia, Professora : Obrigado pela atenção . Mas , fica no singular por quê ?
Bom dia , Professora : Obrigado pela atenção . Mas , ” MAIS DE UM AGRADECEU ” fica no singular por quê ?
Antonio, o verbo concorda com o elemento mais próximo quando iniciado pelas expressões mais de, menos de, cerca de etc. Dizemos que mais de um agradeceu, mais de dez agradeceram. Também diríamos que menos de dez agradeceram e cerca de dez agradeceram. No caso da expressão “mais de um”, há duas observações interessantes: o verbo vai para o plural caso indique ação recíproca (mais de um se entreolharam ou se cumprimentaram, por exemplo) e quando a expressão aparece mais de uma vez no sujeito (Mais de deputado e mais de um senador votaram). Abraço 🙂
Respondido, ok?
Bom dia , Professora : Resposta de gala . Sinto-me privilegiado . Obrigado .
Uma correção, a maior parte dos deputados foram escolhidos pelos partidos, devido ao voto por legenda, e não diretamente pelos eleitores. E há os suplentes, que entraram de gaiato quando algum deputado virou ministro!
Sim, você tem razão.
Desde que o Brasil é Brasil sempre foi assim, os mais espertos chegam lá, independente de cor, sexo, religião e etc. Apesar dos deputados, a meu ver, representar realmente um boa parcela da população e ser notório que pelo menos oitenta por cento quer o fim deste governo, mesmo que fossem grandes articuladores, cultas autoridades e etc, eles não iriam trair quem os elegeu. É preciso muita esperteza, inclua aí bom capital humano e financeiro, pra ser eleito. Não vejo o referido episódio como “um espetáculo inesperado” que a maioria vê e a colunista até percebeu um pouco disso quando coloca “é muito provável que esse discurso, independentemente de ser verdadeiro, agrade aos seus nichos eleitorais”. O legislativo, na figura da Câmara dos Deputados, melhor que qualquer poder, retrata muito bem como é o Brasil. Esse é o nosso país, não gostou, lute pra melhorar, mas já aviso que vai ser uma luta longa e talvez inglória ou use a porta dos fundos para sair daqui, o aeroporto.
Que tal ler: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2016/05/1766709-nojinho-de-deus-e-da-familia.shtml, não dói quase nada, e tira seu véu sobre o seu “nojinho de Deus e da família”.
Oi, Denilson, conheço o texto do prof. Pondé, que, como de costume, põe lenha na fogueira. Minha intenção aqui foi mostrar os discursos, na condição de feixe de valores, que se apresentaram durante a votação. Não se trata de ter “nojinho da família”, nada disso, mas será que devemos pautar as escolhas políticas olhando só para o próprio umbigo? Também deixo aqui uma indicação de leitura para você: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/04/1765745-entre-a-oligarquia-e-o-populismo.shtml
Abraços 🙂
Mais um “mi mi mi” típico dos arrogantes derrotados. Claro, é sempre necessária a desqualificação dos oponentes. Politizados são, claro, os derrotados, vítimas de uma maioria “conservadora ignorante e atrasada”. A ignorância e o atraso, e um projeto de poder populista e ideológico, foram os grandes derrotados em 17/04, junto com a arrogância e pretensão daqueles que no desespero e na falta de argumentos consistentes, só conseguem cuspir. Graças a Deus!
/”a maior parte foram escolhidos….”
Acho que posso dizer :- a maior parte foi escolhida. “maior parte (sujeito-predicativo) está no singular..
Sim, claro!