Discursos em torno da “cultura do estupro”
Recentemente, a divulgação do vídeo de uma moça desacordada, vítima de um estupro coletivo, provocou grande indignação na população e numerosas manifestações nas redes sociais. Sem dúvida, um aspecto positivo dessa nova forma de comunicação é a mobilização rápida de muita gente ao mesmo tempo.
Engana-se, porém, quem pensa que as imagens chocantes desencadearam o mesmo tipo de reação nas pessoas. Num primeiro momento, prevaleceu a revolta diante da barbárie e a percepção de que o machismo, base da chamada “cultura do estupro”, persiste na sociedade.
A OAB do Rio de Janeiro, cidade onde se deu o fato, expressou em nota repúdio ao ato criminoso (“Os atos repulsivos demonstram, lamentavelmente, a cultura machista que ainda existe, em pleno século 21”) e conclamou a população a lutar contra a violência “em cada lar, em cada comunidade, em cada bairro”, alertando sobre o efeito deletério das piadas sexistas, das frases e propagandas de cunho machista.
Passado o primeiro momento, as opiniões divergentes começaram a surgir. Pode-se dizer, basicamente, que há um embate entre dois discursos, o do feminismo e o da recusa do feminismo, sendo este apoiado na ideia geral de que não existe machismo de fato, para além do discurso feminista.
Percebe-se, assim, um mecanismo de negação da existência do machismo, este, por sua vez, a base de uma cultura que, de forma insidiosa, acolhe e legitima a violência (em diversos níveis) contra a mulher. Vejamos, então, como essa negação embasa diferentes argumentos.
O primeiro desses discursos – não à toa o mais grosseiro deles – é o da inversão de papéis, num jogo perverso em que se atribui à vítima a culpa pelo ato bárbaro perpetrado contra ela. Buscou-se traçar uma espécie de perfil da moça, de modo a atribuir a tragédia ao seu comportamento.
Está na base desse raciocínio a ideia de que a mulher deve ser recatada, pois os homens são “feras incontroláveis”, ou seja, homens são impelidos a esse tipo de ato por sua própria “natureza” e cabe à mulher não provocá-los. Conservador e comodista, esse discurso transforma a indignação em conformismo. Nada (no estado “natural” das coisas) precisa mudar.
Entre os que não veem o machismo como propulsor de crimes desse tipo (ou negam a existência do machismo) estão aqueles (e aquelas!) que consideraram os autores do ato uns “monstros”, o que faz do episódio um caso isolado, perpetrado por pessoas más. O problema, assim, é particular, não geral. É apenas um caso policial.
Houve quem analisasse o fato do ponto de vista da psicologia, sugerindo que, num estupro coletivo, o que importa é o grupo, não a mulher (como ocorre nos trotes contra calouros e na agressão entre torcidas de futebol), para chegar à conclusão de que os estupradores eram masoquistas, pois “a crueldade e o sadismo são formas invertidas do masoquismo”.
Embora o autor dessa análise diga acreditar na existência da cultura do estupro, prefere, segundo ele próprio esclarece, desenvolver uma explicação para o desejo do estuprador. Mais uma vez, temos uma reflexão que, mesmo sendo mais sofisticada, se propõe explicar os fatos à luz do indivíduo e seu psiquismo.
Outros deslocam o problema para as classes sociais menos favorecidas. São os que costumam ficar horrorizados com a existência de favelas, ambientes onde meninas dançam com pouca roupa ao som das letras machistas do funk. Esse discurso, ao situar o problema no “mundo dos pobres”, que não são formadores de opinião, passa a impressão de que o machismo, se (ainda) existe, está circunscrito a uma classe social, longe dos olhos das classes média e alta.
Também se tentou enxergar a coisificação da mulher como arma usada por ela própria para obter dinheiro ou proteção de um homem. Nessa chave interpretativa, mostrar-se como objeto é uma opção da mulher, o que não justifica o estupro em si, mas tira do horizonte a ideia de uma cultura machista por trás de crimes dessa natureza. Faltou dizer, porém, que a “opção” só se põe como tal num ambiente machista, em que o corpo da mulher é sua moeda de troca.
Como se não faltassem argumentos para embasar a negação da cultura do estupro, surge o viés político. Certo articulista vê na expressão “cultura do estupro”, que diz não saber o que é, uma bandeira da esquerda, que, como sabemos, hoje vem sendo demonizada como a razão de todos os males.
Não custa lembrar a quem tem memória curta e aos jovens, ainda não nascidos na ocasião (fim dos anos 80), que um certo Paulo Maluf, político muito conhecido, então candidato à Presidência da República, disparou a célebre frase: “Está com vontade sexual? Estupra, mas não mata”.
Para ficar em caso mais recente, tivemos o não menos conhecido deputado Jair Bolsonaro a dizer a uma deputada que não a estupraria porque ela mão “merecia”, como se o estupro fosse uma lisonja a uma mulher. Mesmo assim, há quem diga não entender a expressão “cultura do estupro”.
Sobre o tema, indico duas reflexões bastante boas, publicadas na Folha: a da jornalista Cláudia Collucci e a do jornalista José Henrique Mariante.
Acho o máximo essa gente q fala discurso “a”, discurso “b”, machismo, feminismo, etc… pensam hipocritamente ou por ignorância da nossa realidade sócio económica estar em outro lugar ,EUA, Europa, sei lá onde. num pais desenvolvido qualquer. Não aqui.ou talvez egoísticamente querem exercitar o discurso deslocado q aprenderam na escola.meu conselho . vá dar um passeio ou quem sabe até “viver a experiência” de ser pobre e fazer um brainstorm na favela com muita droga e funk. Vai ver como é que é. Vai lá.
É claro q.essa miséria não é circunscrita ao dígito do holerite.a coisa + democrática q existe é a desumanidade e a estupidez.vc sabe tão bem quanto eu e tb “vive a experiência”, não é?
Muito boa a sua análise! Parabéns!
Que eu saiba, Marta Suplicy (mulher) também disse “estupra, mas não mata”.
Patrick, creio que você esteja fazendo confusão com aquela frase dela, dita por ocasião da crise nos aeroportos do país, o infeliz “relaxa e goza”.
Fiz confusão em parte. O Roberto Pimentel falou toda a frase: “Se o estupro é inevitável, relaxa e goza”. Sabia que tinha a ver com estupro. De qualquer forma, gostei do seu texto, Thaís.
Para pensar:
a) Há algum problema, fora das 4 paredes, em querer uma mulher recatada?
b) A psicologia é sempre séria?
c) Só entre os homens se encontram machistas?
d) É fantasia ou realidade que algumas mulheres preferem homens machistas?
e) Que pai ou irmão gostaria de ver sua filha ou irmã se esfregando em vários homens num baile “funk”?
f) É uma boa ideia ou é seguro ir a qualquer lugar?
O ideal seria aplicar a pena de morte no país ou castrar esses bandidos e trancafiá-los para sempre.
Prezada Thaís,
A questão da cultura do estupro tem ainda muito que ser pensada, pois se bem observarmos, encerra outras questões candentes da sociedade brasileira, como a ignorância crassa do povo em geral,que anestesia a capacidade de reflexão, e não me refiro apenas às classes ditas”desfavorecidas”; o dogmatismo de tantos (veja-se a questão do aborto, por exemplo); a miséria – “vida severina” – geradora de condições sub humanas e consentida como natural (para os outros, claro!), além da própria estratificação familiar, que permite, facilita e acoberta a opressão, nas várias formas em que é exercida sobre mães, mulheres e filhas.
Excelente!
Difícil entender estupro como ” cultura”, pelo fato de ser algo presente em absolutamente TODAS as culturas. É horrível, mas tendo a acreditar no caráter animalesco do mesmo (o que não significa que devemos ficar calados e deixar de tomar providências civilizadas). Chocante perceber que as pessoas precisaram de imagens para que o assunto se tornasse prioridade. Imaginem se pudéssemos tomar imagens de todos, em todos os tempos, e dos impensáveis que ocorrem no país ( e no mundo) e em todas as classes sociais. Nunca esquecerei o caso da menina Liane, porém não foi filmado… E o que se fez diante do fato?. São necessárias imagens para que se tome atitudes?. Bem… antes tarde do que nunca!. O assunto deveria fazer parte de currículos escolares como forma de prevenção. E as mobilizações também são importantes. A mulher, em qualquer situação, é a vítima.
Contraponto excelente e que deixa bem explicada – se eh q precisava de explicacao – a cultura do estupro, que alguns colunistas d FSP inclusive dizem desconhecer.
A chamada “cultura do estupro”, lamentavelmente, leva até algumas mulheres, como foi o caso da sexóloga e senadora Marta Suplicy, quando ministra do Turismo, em 2007, sugerir aos passageiros enfrentar as dificuldades nos aeroportos do país, saindo com esta: “relaxa e goza”, parafraseando o ditado machista “se o estupro é inevitável, relaxa e goza”.
Fala-se muito em estupro, feminismo e machismo e pouco se fala de misandria, misoginia e violência. Esses grupos falam de igualdade, mas olham apenas um lado da moeda sempre, defendem sempre o vitimismo de um grupo. Pouco se fala da violência na sociedade como um todo. Criaram um sistema em que a violência é consentida a quem merece e isso é bonito e aceito (violência contra bandido, contra mendigo, contra homens) e as pessoas expressam: “Para mim também não é fácil e não está bom, você também merece apanhar”. O sistema esta criando pessoas frias e amargas que só olham pro próprio umbigo, foda-se o outro.
http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/renato-essenfelder/nunca-fomos-tao-hipocritas/
http://brasilescola.uol.com.br/sociologia/violencia-no-brasil.htm
https://www.youtube.com/watch?time_continue=42&v=HgEyWWrFefA
https://www.youtube.com/watch?v=GzlOjIL5Kkk
https://www.youtube.com/watch?v=M1jmhcV6w5M
Concluindo, deveria existir atitudes para coibir a violência como um todo e fazer as leis valerem para todos, deve haver respeito as pessoas e a constituição: “todos são iguais perante a lei”.
Antes de…. quero parabeniza-la pelo texto: Discursos em torno da “cultura do estupro”.
Hoje são 13 de junho de 2016, séc. 21 d.C; o que é torna difícil para eu aceitar é a tentativa de alguns ignorantes tentar desfazer um crime hoje, em algo do séc. 18, vale ressaltar que isto não é politica e tão pouco manicômio.
Thaís, parabéns, o artigo é muito bom! E necessário! O texto é preciso e muito claro ao derrubar os principais argumentos que são repetidos à exaustão pelas redes sociais.
A ridicularização das pessoas de bem, por parte das pessoas que querem se manter ‘por cima’ e formar opiniões idiotas continua… Agora inventaram essa de “cultura do estupro”. Isso nunca existiu, e sabem por que? Porque a vida real e igualitária das pessoas de bem não é como nas novelas lixo de uma certa emissora poderosa, e nem é como nos bailes de musicas ‘funk’ lixo tão aclamados e divulgados pela mídia… Talvez o que exista, ai sim, é uma “cultura de banalização da vida” por estas pessoas que não tem mais perspectivas nenhuma para elas e para suas futuras gerações, por terem se tornado tão burras e marionetes do sistema… Conclamo todas as pessoas que estão a parte disso a lutarem não por uma divisão perigosa entre mulheres e homens, mas por uma divisão entre nós, culturalmente e ideologicamente esclarecidos, e eles… antes que se contamine o todo, como a mídia quer fazer…