Empoderar ou empoderecer?
Não faz muito tempo, um leitor nos escreveu para corrigir uma palavra, que, segundo ele, a Folha de S.Paulo vem empregando de maneira incorreta.
O termo a que se referia era o verbo “empoderar”, que ele gostaria de ver corrigido para “empoderecer”, forma que aparece registrada no dicionário “Michaelis”.
Segundo esse dicionário, “empoderar” é apenas uma variante de “apoderar”, ambos verbos pronominais (empoderar-se de algo, apoderar-se de algo), cujo sentido é basicamente o de tomar posse de alguma coisa. A mesma obra registra o verbete “empoderecer”, definido como a ação de “tornar poderoso”.
O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, que não é um dicionário (não traz definições, mas apenas a lista de palavras da língua), também registra “empoderecer”.
O que nenhum dos dois registra, porém, é um texto que abone esse uso, coisa extremamente importante, pois, como é bom lembrar, palavras não são criadas em laboratórios ou em supostas oficinas gramaticais. Não digo que, vez ou outra, não haja casos que nos desmintam quanto a isso. Alguém sabe de onde vêm palavras como “cardápio”, “convescote”, “ludâmbulo” ou “lucivéu”?
Essas são criações do filólogo brasileiro Antônio de Castro Lopes (1827-1901), que com elas pretendia evitar o uso dos estrangeirismos “menu” (francês), “picnic” (inglês), “tourist” (inglês) e “abat-jour” (francês). O fim da história é de conhecimento geral dos falantes: “cardápio” teve aceitação, mas não expulsou “menu”, “convescote” soa postiço e é bem menos usado que o aportuguesamento “piquenique”, “turista” e “abajur” são aportuguesamentos dos termos estrangeiros, enquanto “ludâmbulo” e “lucivéu” não tiveram acolhida.
Em suma, quem define o destino das palavras é quem as usa (ou não). De tempos em tempos, surgem ímpetos nacionalistas a advogar uma suposta pureza da língua a ser mantida – pureza essa manifesta na rejeição a termos estrangeiros. Note-se que “empoderar” e “empoderamento” têm origem no inglês (“to empower” e “empowerment”). São claras adaptações das palavras estrangeiras. Será esse, pois, o motivo de serem postas em questão?
“Empoderecer”?
Vale dizer que o questionamento de nosso leitor ocorre também nas redes sociais, espaço em que as pessoas costumam defender pontos de vista com veemência. Lá estão os defensores do verbo “empoderecer”, que seria a forma “pura”, própria da língua portuguesa. O raciocínio baseia-se em analogia com fortalecer, empalidecer, enaltecer, engrandecer, envaidecer, enfraquecer etc., verbos que sugerem a ideia de transformação. O que acolhe uma palavra nova na língua, no entanto, é o seu uso, que cabe aos dicionários registrar, de preferência abonado e/ou contextualizado.
Ademais, o sufixo “-ecer” não é a única terminação capaz de indicar a ideia de transformação (suave/ suavizar, preto/pretejar, verde/ esverdear, doce/ adoçar, macio/amaciar etc.) e, por outro lado, esse mesmo sufixo pode indicar apenas o aspecto incoativo (de início) da ação, como em “amanhecer (começo da manhã), “entardecer” (começo da tarde) ou “anoitecer” (começo da noite).
Empoderar-se e apoderar-se
O que talvez incomode os que consideram errado o termo “empoderar” é o fato de haver registro dessa palavra como sinônimo de “apoderar” (está no “Michaelis”, indicado pelo leitor, e no “Aulete”). Se as pessoas usassem correntemente o termo “empoderar” com o sentido de “apoderar”, é muito provável que, de modo espontâneo, surgisse outro termo para traduzir o inglês “to empower”. Não parece ser, no entanto, o que ocorre. Tal situação tende a acomodar o novo sentido de “empoderar-se” (emancipar-se, adquirir voz na sociedade com base na consciência e na superação de uma condição opressiva), em oposição a “apoderar-se” (tomar posse de algo).
Convém observar o que ocorre em espanhol. O dicionário da Real Academia Española apresenta dois registros do verbo “empoderar”, um dos quais como sinônimo em desuso de “apoderar” e outro como neologismo (do inglês “to empower”), definido como “hacer poderoso o fuerte a un individuo o grupo social desfavorecido”.
O aparecimento de palavras novas é motivado por uma série de fatores sociais, historicamente explicáveis. Não há como desvincular as palavras de seus contextos de uso. Uma das fontes de neologismos são os estrangeirismos, fato que, embora possa desagradar a alguns, é normal. A palavra, porém, só se dissemina quando há uma espécie de acordo entre os falantes.
Os dicionários
É claro que, no caso de que aqui tratamos, não se pode dizer que “a Folha” esteja empregando incorretamente a palavra, pois o termo já se difundiu entre os falantes brasileiros. A leitura de outros dicionários da língua portuguesa poderia trazer ao nosso leitor mais dados para a reflexão. Não se pode dizer que haja uniformidade quanto ao tema entre os nossos principais autores, o que se explica pelo fato de estarmos diante de um neologismo.
O dicionário “Aulete” (versão eletrônica e atualizada do célebre Caldas Aulete) faz coro com o “Michaelis”, trazendo “empoderar-se” como simples variante de “apoderar-se” (apossar-se, tomar posse de alguma coisa), e ignora o termo “empoderamento”.
“Houaiss”, por sua vez, registra “empoderamento” e ignora “empoderar”. Com base no inglês empowerment, define o termo primeiramente como “ato, processo ou efeito de dar poder a alguém ou a um grupo, ou de alguém ou um grupo tomá-lo” e, em seguida, como “conquista pessoal da liberdade pelos que vivem em posição de dependência econômica ou física ou de outra natureza; tomada de consciência dos direitos sociais desenvolvida pelos indivíduos ao poderem participar dos espaços de decisão”. O fato de o dicionário “Houaiss” registrar o substantivo, mas não o verbo, pode sinalizar que a entrada do substantivo “empoderamento” se deu antes da entrada do verbo, mas somente uma pesquisa de datação dos termos poderá, de fato, trazer informação segura sobre isso.
O dicionário “Aurélio” parece-nos ser o mais completo quanto ao tema, embora não traga datação das palavras. Registra tanto o substantivo “empoderamento” como o verbo “empoderar”, aludindo não só à origem inglesa da palavra como também ao uso que dela fez, na década de 80 do século passado, o grande educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997), autor do internacionalmente famoso livro “Pedagogia do Oprimido”, para quem o termo evocava o processo coletivo de aquisição de consciência social como caminho para realizar mudanças na sociedade.
Vejamos as definições do “Aurélio”:
empoderar – para traduzir o inglês to empower – neologismo: 1. Dar autoridade legal ou poder; 2. Restr. Dar poder a (alguém), esp. o de realizar tarefa(s), atividade(s), sem precisar da permissão de terceiros. 3. promover a conscientização e a tomada de poder (especialmente o de influência) de (pessoa ou grupo social). Int.P. 4. adquirir consciência e/ou conquistar poder e influência para realizar mudanças de ordem social, política, econômica e cultural.
empoderamento – de empoderar + mento , seja como tradução do inglês empowerment, seja como criação do educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997). Substantivo masculino. Neologismo 1. Ação, processo ou efeito de empoderar (-se). 2. Sociologia. Conquista e distribuição do poder de realizar ações, ao adquirir-se consciência social e conhecimento, de forma a produzir mudanças a partir destas aquisições. 3. Educação. Processo pelo qual indivíduos e grupos sociais passam a refletir sobre – e a tomar consciência de – sua condição e a de seus pares, e, assim, formulam e objetivam mudanças que levem à transformação da condição individual e coletiva. 4. Por extensão. Superação da falta de poder político e social, coletivo ou individual das populações pobres.
O registro do “Aurélio” demonstra a força que essas palavras têm hoje no português, o que nos autoriza dizer que, dificilmente, vamos substituí-las por “empoderecer” e “empoderecimento”, formas supostamente “melhores” ou mais “puras” que as adaptações do inglês.
“Empowerment”
O termo “empowerment” difundiu-se nos Estados Unidos na segunda metade do século 20 com o surgimento de movimentos emancipatórios das minorias (negros, mulheres, homossexuais, pessoas deficientes) em busca do pleno exercício da cidadania. A língua inglesa já tinha o verbo to empower, cujo significado era o de “dar a alguém mais controle sobre sua própria vida ou dar poder a alguém para realizar tarefas”, sentido esse que, como vemos, se expandiu para abranger uma nova realidade.
Hoje os termos, substantivo e verbo, evocam com grande força os movimentos de conscientização e de superação de situações de opressão que persistem sob a camuflagem de um pretenso “estado natural das coisas”. Muito usada nos movimentos feministas, a palavra “empowerment” foi empregada pelo presidente Barack Obama recentemente, por ocasião do massacre ocorrido na boate Pulse, em Orlando, frequentada sobretudo pelo público LGBT: “O lugar em que foram atacados é mais que uma boate – é um lugar de solidariedade e empoderamento“. O emprego feito pelo presidente reforça o significado do termo como conquista coletiva de autonomia, emancipação das chamadas minorias. Não se trata, portanto, de termo restrito à bandeira feminista, muito menos de “jargão feminista”, como já se chegou a dizer.
Quem quiser se aprofundar sobre o tema poderá ler o interessante artigo de Rute Vivian Angelo Baquero, disponível na internet.
Taís, meus parabéns pela nova coluna, e pelo texto! Confesso que fui lê-lo achando se tratar de mais uma daquelas colunas banais de “bom uso” do português, como as colunas que dão dicas de moda (“use isso”, “não use aquilo”, “nunca use pochete”) – visão redutora e simplista que muitos ainda têm do fenômeno altamente complexo que é a língua. Qual não foi a minha surpresa quando percebi tratar-se de um texto extremamente lúcido, ao trabalhar de modo extremamente detalhado e explicativo um tema sobre o qual muitos se colocam – sem nenhum mérito – como especialistas natos, mal sabendo que apenas perpetuam preonceito e ignorância.
*Thaís
**preconceito
Muito interessante a análise sistemática do termo. Coisa rara nesses tempos. Esclarece e contextualiza sem por ponto final. Haverá quem diga que sem utilidade, no que discordo triste e reticente.. XD As palavras ainda tem mais força do que se julga …
Não sou especialista, apenas curioso que procura escrever e falar corretamente a nossa língua que, por sinal, considero rica em sinônimos e antônimos. Creio que, no caso, temos de ter em mente a forma e a beleza estética e sonora do vocábulo, de sorte que, pessoalmente, prefiro “apoderar-se” do que o sinônimo “empoderar-se” para que não seja definido e confundido como preciosismo ou empáfia. De toda forma foi uma matéria esclarecedora, aprendi muito, e parabenizo a Autora.
Prezada Thais,
Antes de tudo quero dizer que gostei muito da forma como discorreu sobre o tema empoderar, apoderar, empoderecer, confesso não gostar de nenhum deles no sentido de ser similar ao inglês to empower ou empowerment, acho que não há problemas em explicar o que queremos dizer quando não achamos uma tradução perfeita. ( uma forma de melhorar a vida das pessoas é lhes dar poder….). Mas já que a senhora afirma que o uso é que dicionariza a palavra…Há uma palavra amplamente usada que realmente não admito “acertiva” (você tem que ser mais acertiva em suas decisões) no sentido de acertar e o pior utilizar a grafia correta no contexto errado “assertiva”. Horrível e me lembra muito o gerundismo, querer parecer culto sendo ignorante.
Podia explicar essa…Google it e verás quantas vezes essa palavra é utilizada de forma descabida. Se continuarem a utilizar essa forma poderemos dizer que as pessoas estão sendo acertivas ao acertar o uso da palavra assertiva….ou seria acertiva?
Obrigada pela sugestão. Ainda não tinha visto isso. Que coisa! Vou comentar sim!!! 🙂
Thaís, muito boa a coluna (ou postagem). Não sei dizer usando a terminologia apropriada, mas eu tinha aprendido que as novas palavras, quando surgem, acompanham certo “modismo” e que agora estamos vivendo a época de verbos novos terminados em “ar” (que antes, já foi comum que novas palavras surgissem como verbos terminados em “ir” e assim por diante e que faz tempo que não surgem verbos terminados em “or”). Daí que atualmente, delete deu deletar, scanner ficou escanear, Google googar, stress estressar e assim por diante. O que poderia servir para explicar empoderar no lugar de empoderecer…
Jorge, existem duas terminações férteis para formar verbos no português atual. Uma, sem, dúvida, é a primeira conjugação. A outra é o sufixo “-ecer”, que ainda dá frutos. Sem dúvida, os verbos novos tendem mesmo à primeira conjugação, mas, nesse caso particular, há vários fatores que concorrem para o estabelecimento da forma. A mim parece que uma possível semelhança com o inglês, somada ao fato de a palavra existir em português como variante pouco usada de “apoderar”, é um motivo claro. Acrescentem-se a fertilidade da primeira conjugação e o uso de “empoderar” no espanhol e temos mais formas de explicar o fenômeno. De qualquer modo, “empoderecer” aparece no VOLP e tem sido opção de alguns nas redes sociais. Tenho muitas dúvidas de que essa forma se fixe, só o tempo dirá. Grande abraço 🙂
Thais, como sempre, uma explicação exata, didática, precisa, profunda.