Duplo sentido é problema comum em textos jornalísticos
O tema de hoje do “Português em Foco” é a ambiguidade ou duplo sentido. Esse é um problema comum nos textos jornalísticos, que ocorre sobretudo nos títulos e nas lupas (nome dado aos trechos em destaque no início ou no meio do texto).
http://mais.uol.com.br/view/15924709Fazer um título ou um desses destaques dá mais trabalho do que se imagina. É preciso sintetizar a notícia, informar seus aspectos mais relevantes, começar com o sujeito (de preferência, seguido de um verbo na voz ativa) e, é claro, adaptar as frases ao espaço, sem deixar lacunas nem dividir palavras.
Existem títulos de uma linha só, mas também aqueles de duas, três e até quatro linhas. Observando a Primeira Página de qualquer edição, é possível ver títulos de vários tamanhos, dispostos em uma ou mais linhas. Esse problema não existe só nas publicações impressas, como se pode imaginar à primeira vista. Na plataforma on-line, também há regras e limites.
Além disso tudo, o título é geralmente a última coisa que se escreve, quando o texto já está no momento de ser publicado.
Dito isso, mãos à obra. Vamos entender por que certas construções permitem uma segunda leitura, que, mesmo sendo absurda, interfere na compreensão do texto ou, no mínimo, desvia a atenção do leitor para um efeito cômico secundário, naturalmente involuntário.
Na edição reproduzida acima (29.1.14), o problema ocorreu na lupa:
Dois mortos andavam pelo elevado de 120 t, que desabou sobre dois carros, onde estavam as outras duas vítimas
Antes de analisar essa frase, vamos lembrar mais um dado importante: na lupa, não se pode repetir palavra que tenha aparecido no título principal (Caminhão derruba passarela e mata quatro pessoas no Rio) e na linha fina (Caçamba do veículo, que trafegava em horário irregular, estava levantada).
O título informou que um caminhão derrubou uma passarela e que quatro pessoas morreram no acidente; a linha fina informou que o caminhão trafegava em horário irregular e com a caçamba levantada; a lupa, finalmente, deveria informar que duas das quatro pessoas que morreram estavam a pé sobre o elevado no instante do desabamento e as outras duas estavam em um carro que foi esmagado pelas 120 toneladas de concreto.
O redator poderia ter empregado “vítimas” no lugar de “mortos”: Duas das quatro vítimas andavam pelo elevado de 120 t, que desabou sobre dois carros, nos quais estavam as outras. É provável, porém, que o espaço não permitisse essa solução. De qualquer forma, a Redação reconheceu o defeito da construção e, no dia 31.1.2014, foi publicada correção na seção Erramos:
COTIDIANO (29.JAN, PÁG. C1) Por erro de edição, a frase em destaque na reportagem “Caminhão derruba passarela e mata quatro pessoas no Rio” foi mal redigida. A redação correta é “duas vítimas do acidente andavam pelo elevado de 120 toneladas”.
A notícia de que a maioria das pessoas que morreram em decorrência da gripe H1N1 pertencia a uma faixa etária que não tinha sido alvo da campanha de vacinação foi sintetizada assim: Maioria dos mortos por vírus no país não é foco de campanha de vacinação. Esse caso é interessante por vários motivos. Diferentemente do habitual, esse título é uma oração negativa, que, por isso mesmo, carrega em si um pressuposto. Quando dizemos que tais pessoas (os mortos!) não são foco de campanha de vacinação, estamos querendo dizer que deveriam tê-lo sido.
Note que o tempo verbal dos títulos é sempre (ou quase sempre) o presente, o que parece agravar a situação. Estaríamos querendo dizer que os mortos devem ser foco da campanha de vacinação? É claro que não, mas como fazer? Tirar a palavra “mortos” e pôr o verbo no passado ajudaria: Maioria dos que morreram de gripe no país não era alvo da campanha de vacinação.
Vejamos mais um desses títulos que tratam os mortos como se estivessem vivos: Família ia dar carro blindado a médica morta por temer violência no Rio. Agora, o caso é mais complicado. Não só se diz que a família daria um carro blindado a uma médica morta, o que em si é um problema, como se dá a entender que a médica foi morta por temer a violência no Rio, quando o fato de temer a violência era o motivo de a família ter a intenção de dar a ela o carro blindado. Este último problema se resolveria com um rearranjo dos elementos do período (Por temer violência, família ia dar carro blindado a médica).
Outros casos são mais simples de resolver. Vejamos este trecho:
O menino se desequilibrou e caiu em um pequeno canal que margeava a trilha. Sua irmã viu quando o enorme jacaré atacou o menino e começou a gritar.
A oração “e começou a gritar” pode estar coordenada tanto à oração principal “Sua irmã viu” quanto à subordinada “quando o enorme jacaré atacou o menino”. É claro que a intenção era coordenar “viu” e “começou a gritar”, como o contexto nos indica. Para evitar o segundo sentido, seria possível, por exemplo, eliminar o conectivo de coordenação (A menina, ao ver o enorme jacaré atacar seu irmão, começou a gritar/ A menina viu o enorme jacaré atacar seu irmão. Imediatamente começou a gritar por socorro).
ORDEM DOS TERMOS
Veja alguns exemplos de ambiguidade que se resolvem com o rearranjo dos elementos do período:
a. Dois anos mais tarde, o cientista deixaria definitivamente a Alemanha – ante o iminente acesso ao poder do nazismo – emigrando para os Estados Unidos, onde morreu em 1955.
A intenção era tratar do acesso do nazismo ao poder, portanto “do nazismo” é complemento de “acesso”, não de “poder”. Para evitar a sequência “poder do nazismo”, bastaria fazer uma inversão. Assim:
Dois anos mais tarde, o cientista deixaria definitivamente a Alemanha – ante o iminente acesso do nazismo ao poder – emigrando para os Estados Unidos, onde morreu em 1955.
b. Faltaram algumas linhas nos perfis publicados nos últimos dias de Carlos Alberto Direito, o novo ministro do STF.
A sequência “nos últimos dias de Carlos Alberto Direito” sugere estarmos falando de seus últimos dias de vida. Não era essa, porém, a intenção do texto, pois, na ocasião, Carlos Alberto Direito acabava de tornar-se ministro do STF. A expressão “de Carlos Alberto Direito” está ligada a “perfis”, não a “dias”, portanto deve aproximar-se de “perfis” e distanciar-se de outro substantivo que permita dupla leitura. Assim:
Faltaram algumas linhas nos perfis de Carlos Alberto Direito, o novo ministro do STF, publicados nos últimos dias.
c. Músico apanha até a morte de PMs em São Luís
Esse foi um daqueles títulos de três linhas, sempre difíceis de fazer. A ambiguidade surge porque “de PMs” é um complemento do verbo “apanhar”, mas, na posição em que está, pode parecer um complemento de “morte”. Para resolver o problema, seria necessário alterar a ordem dos termos. Assim:
Em São Luís, músico apanha de PMs até a morte
POSIÇÃO DO PRONOME RELATIVO
A posição do pronome relativo é outro fator que pode desencadear um texto ambíguo. Veja o período abaixo:
Uma substância química similar a compostos presentes na maconha que é produzida naturalmente no cérebro ajuda a aliviar a dor, de acordo com cientistas americanos.
Temos a impressão de que se afirma que o cérebro naturalmente produz maconha. O que se pretende dizer, no entanto, é que o cérebro produz uma substância similar a compostos presentes na maconha. O problema decorre da posição do pronome relativo (“que”), pois este retoma seu antecedente. E agora? Que fazer? Vejamos uma sugestão:
De acordo com cientistas americanos, o cérebro humano produz uma substância química que, similar a compostos presentes na maconha, ajuda a aliviar a dor
PRONOME POSSESSIVO
Os pronomes possessivos também podem ocasionar situações de duplicidade de sentido. Vejamos um caso:
Com apenas 7% da população, a Igreja Católica é uma das maiores e mais organizadas da África do Sul, dada sua fragmentação religiosa.
O pronome “sua”, embora se refira à África do Sul, pode ser associado à Igreja Católica. É claro que o leitor tende a rechaçar a interpretação inadequada, mas a organização sintática do período a autoriza. Para solucionar o problema, um caminho é a supressão do possessivo. Assim:
Com apenas 7% da população, a Igreja Católica é uma das maiores e mais organizadas da África do Sul, dada a fragmentação religiosa do país.
Esse tipo de problema é bastante comum e, vez ou outra, aparece em questões de exames vestibulares. Fique atento!
Thaís Nicoleti: uma “dadora” de lições imprescindíveis para a Arte de desvendarmos mistérios de nossa Gramática bem como da Textualidade.
Valeu!!!
Gosto muito de ler seu blog. Fui seu aluno no colegial, mas infelizmente naquela época não era maduro o suficiente para dar a devida importância às suas aulas (não era mau aluno, mas poderia ter aproveitado muito mais). Enfim, parabéns pelos textos que continuam a me ensinar até hoje, agora mais consciente da importância deste aprendizado.
Que bom ter você aqui no blog!! Seja bem-vindo!! Abraços 🙂
Bom demais!!
Na Universidade, tive a sorte de encontrar o livro intitulado “Como pensamos” (How We Think), do educador e filósofo John Dewey. Dewey defendia que todos nascemos com a capacidade de pensar, mas pensar bem requer treinamento. Pensar bem é acumular conhecimento, armazena-los de maneira organizada e usa-los no momento certo e na dose certa. A qualidade da escrita reflete, acima de tudo, o grau de qualidade de como pensamos. Quem pensa bem, tem mais chances de escrever bem. As escolas deveriam investir mais em ensinar as crianças a pensar bem.
Sempre aprendo com seus posts, mas ao ler este, ocorreu-me uma dúvida quanto à escrita, mais precisamente, sobre se não há a necessidade de um acento grave em: “Por temer violência, família ia dar carro blindado a médica”.
Adriana, por tratar-se de título jornalístico, não foi empregado o artigo antes de “médica”. Se se tratasse de um médico, teríamos “família ia dar carro blindado a médico” (não “ao médico”). Um médico ainda não conhecido do leitor. Esse é um recurso dos textos jornalísticos.
Gosto muito da língua portuguesa com suas idiossincrasias…parabéns caríssima Thaís..(tem esta também: “o ônibus fugiu do local do acidente”.
Esse já é outro problema! Vale comentar também. Muito obrigada pela sugestão. 🙂
Não justifica, mas explica: às vezes é uma questão de espaço no jornal ou de tempo. Às vezes, titulações de matérias são escritas em segundos.
Thaís, suas considerações sobre a língua são sempre oportunas, parabéns! No entanto, acredito que o primeiro exemplo tratado por você acima se enquadra melhor não em uma ambiguidade ou duplo sentido, como afirma, mas em um caso de incoerência (semântica) na formação do texto, posto que “dois mortos andavam” só é possível em um contexto em que a linguagem conotativa (figurada) fosse uma realidade. Não é o caso da notícia em questão!
Entendo a sua leitura, mas o que geralmente ocorre é uma segunda leitura que fica, de fato, em outro plano semântico. As pessoas compreendem o sentido desejado pelo jornalista, porque o contexto não permite a conotação, mas, ainda assim, reclamam muito! 🙂
Excelente artigo! E qual sua opinião sobre a manchete “Homem surra ex-mulher”? Pra mim, fica a impressão de que alguém foi surrado por mudar de sexo.
Sérgio, se considerarmos “mulher” (como gênero, não como estado civil) uma condição de alguém, vale o raciocínio. De resto, o que está no centro do problema é chamar a mulher casada de “mulher de alguém”.