Polaridade na língua: à guisa de retrospectiva
À guisa de retrospectiva, 2016 foi um ano da polaridade também nos assuntos de língua. Não por acaso, já que a língua manifesta nossos anseios, preocupações, sentimentos e, sobretudo, nossa visão de mundo. A divisão está na sociedade e, como não poderia deixar de ser, na língua.
Na semântica, o principal corte apareceu na escolha entre os termos “impeachment” e “golpe” para definir a troca de mãos ocorrida na Presidência do país. A opção por um ou outro passa pela crença ou não na legitimidade do processo. Dito isso, o mais é o que se sabe.
Não se chegará a consenso sobre isso, pelo menos por ora. Vale dizer que os militares chamaram 1964 de “revolução” (e ainda há quem assim se reporte ao fato), mas o termo “golpe” ganhou a imprensa e os livros de história. “Revolução”, nesse caso, é um termo claramente marcado do ponto de vista ideológico.
A polaridade de hoje não parece que vá ser superada tão cedo. Teremos de conviver com ela e com o possível insucesso dos discursos bem-intencionados que tomam as redes sociais no fim do ano, os quais, cheios da alegria do espírito natalino, manifestam o desejo de confraternização independentemente da visão política de cada um. Enquanto a desigualdade existir (e, com ela, a injustiça), haverá polaridade, sobretudo num ambiente de grande circulação de informação, como o propiciado pela internet.
Nada indica que vá ser possível tomar decisões ditas “impopulares”, mais ou menos camufladas pelo discurso algo simplista de que visam ao “bem do país”, sem que haja oposição. O adjetivo “impopular” e a expressão “para o bem do país”, juntos, exprimem a ideia de que estamos diante de “males necessários”. No mínimo, estamos diante de eufemismos. “Impopular” é aquilo que desagrada ao povo, que contraria a sua expectativa (cf. “Houaiss”). Para uns, “impopular” é basicamente “antidemocrático”, mas, para outros, poderá soar como “austero”.
A propósito, o presidente Michel Temer disse não se importar com a sua impopularidade. Para uns, está assumindo sua falta de compromisso com a população, mas, para outros, está dando um sinal de seriedade, de uma suposta capacidade de resistir ao populismo fácil. Vale a leitura do texto de Bernardo Mello Franco, publicado em 23 de dezembro último na Folha, em que o articulista faz uma reflexão sobre isso.
O “bem do país” deveria ser o bem das pessoas, mas, ao substituir o concreto pelo abstrato (“pessoas” por “país”), o referido “bem”, supostamente advindo das medidas “amargas”, desloca-se para um plano vago, que não coincide necessariamente com o concreto (quem exatamente será o “país”, o qual se beneficia das medidas impopulares?). A escolha dos termos, como se vê, não é gratuita.
O ano ainda requentou a velha questão do uso do termo “presidenta”, no feminino, quando a ministra Cármen Lúcia, ao assumir a presidência do STF (Supremo Tribunal Federal), afirmou, em resposta a uma indagação do ministro Ricardo Lewandowski, que não queria ser chamada dessa forma por ter estudado a língua portuguesa (“Eu fui estudante e eu sou amante da língua portuguesa. Acho que o cargo é de presidente, né?”).
Mais uma vez, o que vemos é a marcação ideológica do termo. Talvez a ministra não soubesse que a palavra existe há muito tempo na língua (o dicionário “Houaiss” registra o ano de 1812 como data de surgimento documentado da palavra). Muita gente que passa o dia na internet recebendo informação pensa que foi o PT que inventou a palavra “presidenta”. Seria bom, de uma vez por todas, esquecer essa bobagem.
De todo modo, o uso do termo no século 21 é entendido como parte de uma ação afirmativa de gênero. Ele marcava o fato de termos tido, pela primeira vez, uma mulher no exercício da Presidência da República. É claro que ações afirmativas têm, de fato, um viés progressista, pois partem do pressuposto de que existe preconceito – racial, de gênero, social etc. – e de que é preciso atuar de maneira proativa, dia após dia, para ativar a percepção das pessoas e estimular a superação de injustiças vistas como “atitudes naturais”. Quem acredita que não exista preconceito, que essa conversa não passe de “mimimi” (palavra onomatopaica que ganhou as redes sociais), certamente repugna qualquer ação desse teor.
Em geral, ao que tudo indica, quem escolhe usar “impeachment” (não “golpe”) igualmente não admite usar o termo “presidenta”, certo? Até aí, tudo bem. A opção pelo termo uniforme (“presidente”), no entanto, é justificada como defesa da correção gramatical, como se esta fosse um corpo de leis impermeável à ideologia. Aviso: a correção gramatical (aqui entendida como a “norma culta”) admite “a presidente” e “a presidenta”. A escolha é de cada um. Tem viés? Toda escolha tem viés. A esta altura, isso já deve estar suficientemente claro.
A língua portuguesa também ganhou a cena com a mesóclise do presidente, ainda interino, Michel Temer. O emprego da forma pouco usual no Brasil não passou despercebido. Acionou, de imediato, a percepção de que estávamos diante de uma pessoa culta, que sabia se comportar linguisticamente.
Não faltaram comparações com o estilo dos governantes anteriores (Lula, que fala como o povo, e Dilma, que, embora formal, tropeça na expressão oral), e Temer, à primeira vista, pareceu ter saído bem na foto. Pelo menos em alguns reavivou um vago sentimento de orgulho da correção gramatical, espécie de valor perdido nos novos tempos. Nas redes sociais, porém, prevaleceu o aspecto cômico da escolha da estrutura gramatical, um tanto afetada, distante da fala da maioria da população, inclusive daquela fatia que domina a norma culta do idioma.
Houve quem visse com bons olhos o que se considerou um estímulo ao uso do português culto (finalmente, alguém que sabe falar o português!), o que denota uma visão conservadora da língua, esta compreendida como um repositório de estruturas e palavras imutáveis.
O fato é que tudo passou a ser filtrado pela polaridade e, nesse contexto, um voto de confiança no novo presidente passaria pela aprovação de seu português (!). Em língua, porém, as coisas não são tão simples assim. Nem que o presidente fosse um líder carismático, coisa que nem de longe ele é, a mesóclise ressuscitaria entre os falantes brasileiros. O máximo que o fato produziu, em suma, foi um sem-número de piadas nas redes sociais, coisa que nem é novidade — afinal, dificilmente Temer vai conseguir desbancar Jânio Quadros seja no uso do português, seja no anedotário.
Outro mimimi de internet foi a mudança da palavra “paraolimpíada” (e seus derivados) para “paralimpíada” e derivados (sem o “o” de olimpíada, de Olimpo) sob o argumento da aproximação com o inglês e o subargumento de que o termo é uma marca comercial, o que, de pronto, libera ou legitima a sua transfiguração.
O problema é que existia a palavra “paraolimpíada” para denominar exatamente o mesmo evento, e os atletas, por sua vez, eram “paraolímpicos”. Em língua, como os linguistas não se cansam de ensinar, as mudanças são fruto do uso, que, soberano, leva à consolidação de uma forma nova.
Os adeptos da inovação acreditam que as pessoas vão usar (e já estejam usando) porque “agora é assim”, já que “ficou decidido pelo Comitê Olímpico Brasileiro” (ou Comitê Límpico Brasileiro?). Sendo assim, passam a usar a forma e o uso a legitima. Não deixa de ser um caminho, mas a mudança foi feita em gabinete, não de modo espontâneo pelos usuários da língua, o que dá margem à discussão. Como a inovação já está dicionarizada – à prova, portanto, de contestação (será?) –, para muita gente é fato consumado.
Muito mais simples seria ter adotado o nome do evento em inglês, língua hoje universal. Estaria dado o recado de que o evento é internacional e, portanto, precisa falar inglês. Bem mais simples.
A população aceitou de bom grado trocar paraolimpíada por paralimpíada e paraolímpico por paralímpico para satisfazer a interesses do marketing, mas não parece reagir com tanta naturalidade a demandas linguísticas vindas de ações afirmativas de inclusão, muitas vezes vistas como simples “mimimi”. Eis um tema que merece mais desenvolvimento e discussão, ao qual voltaremos no ano vindouro.
Vale anotar, acerca dessa questão, que a ministra Cármen Lúcia fez um pedido público de desculpas pelo uso do termo “autista”. Para afiançar que, no julgamento da Operação Lava Jato, o STF demonstraria o mesmo empenho revelado no julgamento do “mensalão”, ela tinha afirmado que os ministros do STF não eram “autistas”. Diante da repercussão negativa, reconheceu a inadequação do uso.
Não poderia deixar de encerrar este texto com a indicação do livro “Língua e Sociedade Partidas: a Polarização Sociolinguística do Brasil” (Editora Contexto), do professor Dante Lucchesi, que brindou este blog com uma instigante entrevista por ocasião dos debates sobre o Acordo Ortográfico.
A polarização de que fala Lucchesi é a que instaura o preconceito linguístico. Enquanto certa elite vê nas formas lusitanas o padrão de bom uso da língua, as populações que se expressam de outras formas são estigmatizadas, reforçando o apartheid social.
O trabalho de Lucchesi, fruto de longo trabalho de pesquisa, não se contenta em constatar um estado de coisas. O autor tem propostas concretas de ensino da língua. Longe de certos radicalismos, considera a importância de ensinar a norma culta, mas sem o ranço do preconceito. Com um texto envolvente, o autor convida professores e outros interessados no tema a desenvolver uma visão científica da língua, livre, portanto, respostas fáceis, que geralmente não nos levam muito longe. Não à toa, acabou de ganhar o Prêmio Jabuti.
Que 2017 traga esperança e alegria a todos!
Thaís, em artigo de sua autoria – Dicas de Português Uol –, você nos ensina que, após o Acordo, palavras onomatopaicas como (blá-blá-blá, tró-ló-lo, ti-ti-ti etc.) devem ser escritas
com hífen.
Se você afirma que “mimimi” é de origem onomatopaica, por que a grafia sem hífen? A forma correta não seria “mi-mi-mi”?
Oi, Mazô, acabei de dizer isso na resposta anterior (nem tinha visto a sua questão ainda). Seria sim, mas já pensou a grita na internet se uma professora de português for interferir na soberania ortográfica das redes sociais? Rsrsrsrsr… 🙂
Professora,
Mimimi é o mesmo que nhem-nhem-nhem? (Aliás, com acento ou não?)
Que tal um artigo sobre as gírias que “pegaram” (com aspas ou não?) em 2016?
Obrigado
Na verdade, a grafia é nhe-nhe-nhem. Por s tratar de onomatopeia, passou a ser escrito com os hifens depois da reforma ortográfica. Dessa forma, fica sem acento. Se fôssemos aplicar a regra à grafia de “mimimi”, teríamos de fazer “mi-mi-mi”. Creio que as duas formas sejam, sim, sinônimas, mas “mimimi” tem a cara das redes sociais, é do repertório dos frequentadores. A sugestão é boa. Se quiser, envie algumas palavras para mim (thaisncamargo@uol.com.br). Abraço 🙂
Thaís, fiquemos, então, com a grafia “mimimi” até que o Volp, o Aurélio, o Houaiss etc. se manifestem. Quanto à grafia da palavra “nhe-nhe-nhem”, mencionada por você na resposta de 09/01/2017, surgiu outra dúvida, apesar de eu saber que o Volp a registra juntamente com a
forma “nhem-nhem-nhem”, com as três partes, obviamente, sem acento gráfico. Se “blá-blá-blá” e “tró-ló-ló” recebem acento gráfico nas três partes, por que “nhe-nhe-nhem” não recebe o circunflexo nas duas primeiras partes? Afinal, são acentuados os monossílabos tônicos terminados em (a,e,o).
Os monossílabos tônicos terminados em “-em” não são acentuados!!