Puristas de ontem e de hoje
Antigamente existiam os puristas propriamente ditos, aqueles indivíduos que tomavam para si a missão de defender o idioma, o que se traduzia no incansável combate à influência estrangeira e na busca de um estilo elegante e correto. Eram geralmente pessoas detentoras de erudição, como o conhecimento de grego e latim.
Para essa turma, o princípio da correção gramatical nem de longe admitiria o grau de controvérsia que hoje se vê. No máximo, as tertúlias de gramáticos girariam em torno do uso que os clássicos fizeram de certa palavra ou construção sintática. O conceito de elegância, ligado ao de correção e de emprego de figuras de linguagem, é sempre difícil de definir, mas soava como um acordo tácito entre aqueles que pretendiam fazer bom uso da língua. Imitar os bons autores era, assim, caminhar na direção correta, sem sobressaltos e hesitações.
Vale notar que, do ponto de vista dos puristas, o grego e o latim sempre foram os legítimos fornecedores de elementos para compor palavras. Um bom exemplo disso está no gentílico “soteropolitano”, atribuído a quem nasce em Salvador. Chega-se a esse termo partindo da helenização do nome da cidade (de Salvador faz-se, com os elementos gregos “sotero” e “pólis”, Soterópolis, que quer dizer “cidade do Salvador”). De “Soterópolis”, derivamos “soteropolitano”, o adjetivo usado para os baianos da capital do estado.
Coisa capaz de irritar um purista, no entanto, é o chamado hibridismo, ou seja, a palavra formada de elementos de línguas diferentes, como televisão (que chega ao português pelo francês “télévision” ou pelo inglês “television”, mas contém o elemento grego “tele-” unido ao elemento latino “-visão”), burocracia (junção do francês “bureau” com o grego “-cracia”) e sambódromo (de “samba”, do banto, e “-dromo”, do grego), vocábulo criado em 1984 pelo saudoso Darcy Ribeiro, cuja morte acaba de completar 20 anos. Darcy era vice-governador do Rio na ocasião, quando idealizou a obra, que, projetada por Oscar Niemeyer, recebeu o nome de passarela Professor Darcy Ribeiro, mas ficou conhecida mesmo como “sambódromo”.
O purista repele com veemência essas palavras mestiças, bem como as forasteiras, os malfalados estrangeirismos, que “descaracterizam a língua”. O mesmo vale para os neologismos e as gírias. O que nutre a atitude purista é um ideal de conservação da língua, esta vista como um patrimônio que deve ser reverenciado e protegido de seus inimigos. O pressuposto dessa visão é que a língua em si é algo externo aos falantes.
Ocorre que as coisas não são tão simples assim. A língua é um bem coletivo que pertence a quem a fala, a todos e a cada um (mesmo quem não sabe escrever sabe falar e articular a gramática da língua). Hoje, com a popularização dos conhecimentos vindos da linguística, a ciência da linguagem, qualquer pessoa medianamente informada sabe que a língua é dinâmica e que as transformações são parte de sua permanência. Quem decide se um neologismo ou um estrangeirismo entra definitivamente na língua são os falantes, ou seja, o uso e, somente depois da consagração pelo uso, o termo é incorporado ao dicionário. Em suma, o que está em uso vale, o que está em desuso não vale mais – é o arcaísmo, aquela palavra que saiu de cena.
Como se vê, é vã a luta dos puristas. Eles não conseguem barrar a entrada dos estrangeirismos, embora talvez desejassem erguer um muro imaginário para confinar a última flor do Lácio, inculta e bela, em algum lugar de um suposto passado de esplendor e pureza, impermeável às inovações e às mudanças.
A beleza da expressão era, para eles, associada, entre outras coisas, a certos malabarismos sintáticos. Vejam-se os versos iniciais do Hino Nacional Brasileiro, que muita gente sabe de cor, mas nunca entendeu: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/ De um povo heroico o brado retumbante (As margens plácidas do [rio] Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico). Nos nossos dias, dificilmente esse tipo de construção seria visto como melhor do que outros – até porque é difícil de compreender. Nem está hoje a beleza do idioma em formas que caíram em desuso, como a mesóclise no português do Brasil, que, embora esteja aposentada, de vez em quando dá o ar da graça para enfeitar algum discurso de ocasião, que, afinal, soa antes postiço que propriamente belo.
É voz corrente que de médico e de louco todo o mundo tem um pouco. Parece que de purista também. Não falta gente moderna, bem informada, que trava discussões em redes sociais fazendo discurso de fundo purista. A figura de retórica predileta desse pessoal é a preterição, ou seja, aquele volteio de palavras que se usa para dizer que não se vai fazer aquilo que efetivamente se está fazendo.
Primeiramente, a pessoa critica os puristas, que são retrógrados, conservadores e não conhecem linguística; depois, pode até acrescentar explicações sobre o dinamismo da língua e mencionar a grande influência que o português recebeu do francês (os “galicismos”, que provocavam pruridos nos puristas de antanho e hoje soam como se fossem português puro-sangue). Nem sempre se lembram, no entanto, de que, provavelmente, se banidos da língua todos os estrangeirismos, não nos sobrariam um alfinete ou uma xícara de açúcar.
Muito bem. Depois de se apresentarem como conhecedores dos pressupostos (básicos) da linguística (grosso modo, o de que a língua muda e o de que não existe propriamente erro gramatical), vestem a casaca e desandam a vociferar contra o uso de estrangeirismos, vistos como erros de tradução cometidos por quem sabe mal o inglês, o que é, mais ou menos, digamos, uma vergonha. Citam-se os termos traduzidos incorretamente para, em seguida, mostrar a tradução correta em bom português.
Então estamos, na maior parte das vezes, diante de puristas disfarçados. A língua é indomesticável, mas certo modismo é intolerável, grosseiro, deselegante…, ou seja, vamos tentar domesticá-la. O maior problema dessas aulas de tradução é que a questão nunca é tão simples quanto se afigura. Não vamos defender que a melhor tradução seja a que está mais próxima da cognação, prática muito comum que, por vezes, leva a impropriedades como confundir silício (“silicon”) com silicone. Nem sempre, porém, o que está em jogo é esse tipo de problema (os chamados “falsos cognatos”).
A cognação, de fato, leva à tradução por semelhança (“empoderar”, de “empower”) ou mesmo à adaptação de uma forma estrangeira (“printar”, de “print”, em vez de “imprimir”, por exemplo) e até à ressignificação de um termo, que se incorpora na língua como empréstimo semântico. É esse o caso de “submissão” (do inglês “submission”), largamente usado no meio acadêmico no sentido de “apresentar um trabalho para o exame ou apreciação de alguém”, emprego, aliás, já defendido por teóricos da tradução (veja-se a esse respeito o “Guia Prático de Tradução Inglesa”, de Agenor Soares dos Santos). O verbo “submeter” já se registra em dicionários com esse mesmo sentido; inserir o registro do substantivo “submissão” com explicitação desse significado é mera formalidade.
Em textos traduzidos do inglês, é muito comum vermos pessoas “devastadas” (“devastated”) diante de um fato trágico; quando o texto é feito em português, geralmente as pessoas ficam “arrasadas” ou “desoladas” diante do mesmo tipo de situação (e poderiam ficar “consternadas” ou “pesarosas”). É evidente que há influência da cognação, mas podemos falar em erro? “Desolado”, empregado nesse sentido, tem provável origem no francês “désolé”; “arrasar” hoje tem vários significados, inclusive o de sair-se muito bem em alguma atividade. Qual é o termo melhor?
O inglês é acolhido com tanto entusiasmo porque está associado à ideia de modernidade, de tecnologia, de comunicação sem fronteiras, uma gama de valores que se corporificam nas escolhas lexicais. É o caso de constatar o fato, não de julgá-lo. Coibir o estrangeirismo, em si, não muda o que as pessoas sentem e pensam. É por isso que não adianta fazer qualquer tipo de lei que proíba o seu uso, como já se tentou por aqui e, diga-se de passagem, não só por aqui. Essa é uma das facetas, talvez a mais ingênua, da xenofobia.
Se os puristas da antiga tradição tinham lá suas convicções, os novos, em geral, nestes tempos fluidos, têm outras motivações: ou estão tentando exibir algum grau de erudição (não mais conhecimento de grego ou latim, mas de inglês mesmo), ou, coisa pior, estão tentando atingir aqueles de cujas posições ideológicas discordam.
As manifestações de indignação diante dos erros de português ou de alguma falta de fluência oral de um político ou de qualquer outra personalidade pública vêm quase sempre daqueles que divergem das ideias dessas pessoas ou do espectro ideológico a que elas pertencem, quando não são fruto do mais raso dos preconceitos, aquele que se volta contra quem teve menos oportunidades na vida.
Quando é o outro que usa estrangeirismo, vem à tona o Policarpo Quaresma que cada um guarda em si; quando é o outro que comete o erro de português, vem à tona o Rui Barbosa que quase ninguém leu, mas que permanece no imaginário como repositório da correção gramatical.
Fessora,
Cultura e economia política são indissociáveis.
“Soft power” só é vantajoso para culturas hegemônicas.
Quantas “bandas” de rock “brasileiras” a senhora conhece no Brasil?
Quantos conjuntos de samba ou chorinho existem “in the USA”?
Claro que, para a Midia, essa é uma questão irrelevante: sabemos a razão.
O lamentável de tudo isso é que há um “incompreensível ” silêncio de pessoas que tiveram o privilégio de estudar essa questão.
Prezado Carlos,
Concordo plenamente com o que dizes…
Sempre houve o chamado “empréstimo linguístico”. É um fenômeno natural na evolução das línguas, motivado pelo intercâmbio comercial e cultural entre os povos. O que se observa nos dias atuais, entretanto, é o “acocoramento” diante da cultura hegemônica americana (eu não diria “cultura” no sentido explícito da palavra, mas no “american way of life”) tão idolatrada por uns e outros, que ouviram o galo cantar, mas sabem sabem bem o azimute do galinheiro…
Caro Vinícius Torres Freire, não sou especialista na língua. Sigo o Dicionário Aurélio (edição1986). Para ele, “submeter” pode ser “oferecer a exame ou apreciação”, enquanto “submissão” é “ato ou efeito de submeter… a uma autoridade…”. Não é isso que fazemos na academia! Submetemos a “exame” nossas ideias em nossas dissertações (mestrado) e em nossas teses de doutorado. Só assim nos tornamos doutores! E garanto: é difícil! Assim submetemos também nossos artigos a “exame”, como faremos no Congresso da SEP. Para nós acadêmicos, sempre há “superiores” (ou avaliadores) que examinam nossas ideias, as criticam, e assim a ciência avança. Quando falamos bobagens, somos advertidos e reprovados! Seria diferente no jornalismo onde se poderia passar incólume ou falar bobagem livremente? Prof. Dr. Rubens Sawaya compõe a banca de examinadores dos artigos “submetidos” ao congresso em sistema de “blind review”.
O professor responde a uma crítica feita em rede social ao cartaz do congresso da SEP (reproduzido neste post). Como costuma ocorrer nas redes sociais, muita gente adere a um posicionamento ou se põe radicalmente contra ele antes de refletir, de fato, sobre a questão. Por esse motivo, achei importante trazer aos leitores do blog a oportunidade de pensar sobre o tema. Por que, afinal, o emprego de estrangeirismos ou de empréstimos semânticos provoca tanta celeuma? O mais curioso, a meu ver, é que esse tema seja tratado de um ponto de vista purista por pessoas que, para se afirmarem esclarecidas em linguística, condenam a atitude purista. O que fazem, em geral, é mostrar que sabem que a língua muda, que os estrangeirismos entram mesmo, sem pedir licença a não ser para os usuários da língua etc., e, a seguir, tirar do bolso do colete a sua própria lista de casos “inadmissíveis”. Essas listas sempre serão subjetivas, pautadas pelo gosto pessoal. Abraços ao prof. Rubens Sawaya e votos de sucesso no debate, cada vez mais urgente, sobre a economia política. 🙂
olha tenho que dizer que sempre acompanho as postagens deste site e sempre saio satisfeito com a qualidade dos artigos “posts” e hoje não foi diferente ,mas como sou fanático por conteúdo sempre quero mais kkkk.deus abençõe este projeto,amém e parabéns.
Muito obrigada! Continue acompanhando!! 🙂
Bacana.
Análise muito apropriada sobre a natureza da linguagem. Embora me considere purista (domino o latim e o grego) aceito a dinâmica da linguagem e sou capaz de misturar mesóclise com gíria.
João, dominar o grego e o latim não é “ser purista”. Ser purista é achar que a língua do passado (de algum momento) era melhor que a do momento presente; ser purista é rechaçar as mudanças e as influências de línguas estrangeiras modernas por receio de que “a língua” se desfigure (o que é “a língua”?) Creio que, se misturar mesóclise com gíria, estará fazendo poesia ou galhofa. Tudo é possível! Quanto mais conhecimento, melhor. Abraços:)
Acho que a importação de palavras tem semelhança com a gíria ou o jargão profissional. Um grupo usa para criar uma identidade e ao mesmo tempo uma separação em relação ao resto. Só acho que devíamos escrever com a nossa pronuncia. Já é hora de escrever mause em vez de mouse por exemplo. Assim como back virou beque.
Claudio, discordo da ideia de “aportuguesar” palavras para dizer que não se trata de estrangeirismo. Os portugueses usam “rato” e “janelas”, o que para mim é purismo exagerado. Escrever “mause” e “uindous” fica ainda pior.
Quando alguém, durante a atividade de escrever, pensa uma frase iniciada por um verbo no futuro, tendo por objeto um pronome oblíquo, é natural escrever mesóclise, vez que a ênclise é errada (ao menos na “norma culta”!), enquanto a próclise fica esquisita por iniciar uma frase com pronome oblíquo. Por que se deveria empenhar esforço, ainda que pequeno, para bolar outro jeito de dizer aquilo que se pensou, motivado só pela visão hodierna e preconceituosa que rotula as mesóclises como “arcaísmo”, algo a ser evitado? Francamente, esse tipo de preconceito me parece pior que a atitude purista.
Outro recurso legal da língua portuguesa, muitas vezes visto com preconceito semelhante a este que vitima as mesóclises, são as contrações de pronomes, tais como lha, lho, ma, etc. Ajudam tanto a deixar o texto mais conciso, porém sem prejuízo da clareza. Lamentável desperdício evitar recursos da nossa rica língua só por causa da mesma ideia moderna e preconceituosa que persegue belos e úteis recursos, distribuindo a alcunha de “arcaísmo”.
Quanto aos estrangeirismos, quando bem incorporados à linguagem corrente não vejo razão para evitá-los (mouse, insight…). No entanto, o ridículo é que tem gente que acha bonito e usa ao máximo possível, julgando com isso passar uma imagem “chique” ou coisa parecida. Sobre esse tema, acho que o cantor Zeca Baleiro foi bem feliz em debochar desse estilo no Samba do Approach (sei lá se é assim que escreve isso!).
Muito boa a lembrança dessa canção do Zeca Baleiro, na qual ele mostra o esnobismo e mesmo a ingenuidade de quem acha que o estrangeirismo enfeita a língua. Sobre o arcaísmo, no entanto, não se pode dizer que exista uma “visão moderna” que determine o que é arcaico. Não é assim. As estruturas e palavras caem em desuso num processo coletivo. É o caso de estudar cada caso para determinar os fatores que levam a essa “aposentadoria”. Hoje você pode usar a mesóclise ou as contrações “lha”, lho” etc., mas sua fala não soará natural porque muito pouca gente usa isso. Vai acabar produzindo também o efeito de “ornamento”, de crença de que as formas do passado eram melhores… Um exemplo para nós refletirmos: o verbo “impedir” era conjugado de forma regular (“eu impido”) e, por analogia com “pedir”, do qual não é derivado, passou a “eu impeço”. Não vamos voltar a dizer “eu impido” hoje, certo? Qual é a forma “melhor”? Abraços 🙂
“Muito pouca gente usa isso” explica tudo, né não?
O uso, de fato, é o que comanda o processo. O que é banido do uso vira arcaísmo.
Não sou purista, pois considero-me liberal… contudo, não concordo com a destruição da Fonética da língua portuguesa só pq o povo q estuda outras línguas (e não ama o português, apesar de tê-lo estudado) prefira ler aqui no Brasil as palavras gringas do modo que sejam escritas lá fora… isso só serve, a meu ver, para seccionar a elite (instruída no estrangeirismo) da massa-plebe que lhes serve de “alvo de chacota” ou “bullying” linguístico (bulição linguística).
Adoro quando leio num cartaz de periferia “lã-rause”, pq este escritor sabe a regra fonética do naturalismo linguístico nacional, enquanto o que lhe cobra a regra da anglofonia mal lembra que existe uma REGRA fonética (com suas eventuais idiossincrasias e regionalismos) e, pior: cobra-lhe ridicularizando pelo fato de “escrever errado” (errado em qual língua, ó, vc que mistura palavras inexistentes no dicionário pátrio com palavras em português)…
Alguém pode achar feia a escrita de “mause”, ou de “rato”, mas não encontra feiúra na leitura da palavra “mOuse” como se fosse “mAuse”… boa seletividade do que seja feio e o q seja bonito…(afinal, foram tantas horas estudando inglês e outras, que não consegue encarar com naturalidade o aportuguesamento das palavras gringas…pobre Brasil de apátridas que, de coração, preferiam que os EUA ou a UE fosse aqui…).
Orlando, há muitas palavras que sofreram o aportuguesamento e hoje muita gente nem percebe a origem delas. É o caso de lanche, sanduíche, líder e tantas outras. Hoje parece haver certa resistência a essas adaptações, talvez por haver mais familiaridade com a língua inglesa. O fato, porém, é que a nossa pronúncia desses anglicismos tende a ser realizada de acordo com a nossa fonética. Veja como as pessoas dizem “e-mail” (emeio), por exemplo, e isso é normal também, afinal não é o inglês a língua que falamos (ainda!). Abraço 🙂