Um mundo mais confortável para homens e mulheres

Thaís Nicoleti

Chegamos a mais um Dia Internacional da Mulher sem grandes avanços na conquista de igualdade entre homens e mulheres. Muita gente, a começar de mulheres, acha que não existe machismo, ou seja, que os conflitos existentes se resumem a querelas ocasionais entre indivíduos, que podem e devem ser resolvidas no âmbito privado.

A negação da perspectiva coletiva, hoje muito em voga, só reprime o debate. São as próprias mulheres que, talvez com receio de parecerem frágeis, regam a horta do machismo. Muitas das que posam de esclarecidas correm o risco de soarem ingênuas ao se dizerem não atingidas pelos tentáculos da naturalização das diferenças de gênero.

É claro que nem todas as mulheres sofrem violência doméstica, embora esse problema não esteja circunscrito aos estratos mais pobres da sociedade, como pensam algumas, para as quais a classe média parece um refúgio seguro. O fato é que ainda é muito comum que, diante de uma notícia de marido que agride a mulher, logo se queira saber o que ela fez (para merecer).

Como diria o sambista de “Faixa amarela”, “se ela vacilar, vou dar um castigo nela/ Vou lhe dar uma banda de frente/ Quebrar cinco dentes e quatro costelas”. Pessoas se divertem ao ouvir uma canção como essa nos seus momentos de lazer porque esses versos soam cabíveis, razoáveis, talvez até engraçados.

O mesmo vale para a marchinha carnavalesca “O teu cabelo não nega, mulata/ Porque és mulata na cor/ Mas, como a cor não pega, mulata/ Mulata, eu quero o teu amor”, a um só tempo machista e racista (a cor da pele é comparada a uma doença, que, não sendo contagiosa, permite ao homem desfrutar do amor da mulher numa noitada de festa ou, quiçá, nos recônditos da senzala). A volta do Carnaval de rua prometia a volta de um suposto tempo da inocência, que, no entanto, parece só existir nas nuvens da nostalgia.

O machismo é insidioso, inserido que está nos hábitos das pessoas. Aparece nas palavras, nos gestos, nas atitudes, nas piadas, nos chistes de palestrantes de sucesso no mundo corporativo, praticamente em todos os discursos que forçam uma dicotomia do tipo “homem é assim, mulher é assim”, “isso é coisa de homem”, “aquilo é coisa de mulher”, como se houvesse um padrão de comportamento naturalmente atrelado ao gênero.

Vale lembrar que os homens também são vítimas do machismo. São vítimas de um papel e de um projeto que lhes cabe seguir e os torna reféns do medo do fracasso.

Não se trata, portanto, de opor homens a mulheres, numa infantilização do debate, que o reduz a uma “guerra dos sexos”.  Essa tolice apenas alimenta esquetes de programas humorísticos ultrapassados e matérias de revistas ditas “femininas”, que, entre fofocas do universo das celebridades e outras amenidades (dicas de maquiagem e de moda, receitas, horóscopo, “fitness”, dietas), dedicam espaço a artigos que ensinam a lidar com os homens — tudo isso embalado em um editorial que garante ser a publicação voltada à mulher “moderna”.

A forma mais eficiente de alijar as mulheres do debate é transformar a feminista num personagem caricato (a mulher que não gosta de homens, que não é feminina, que é “feia”, mal-humorada ou “mal-amada”, infeliz por não ter conseguido um marido).  É evidente que esse estereótipo não mobiliza as mulheres; antes reforça a ideia de que um marido é um item de sobrevivência na vida social. O fato é que a discussão deveria envolver pacificamente homens e mulheres, que, afinal, precisam estar unidos para empreender outras lutas urgentes.

APLICATIVO

Há poucos dias, noticiou-se na Folha a criação de um aplicativo de celular que se propõe a mensurar o número de vezes que a fala de uma mulher é interrompida por um homem. Ao que parece, a tecnologia é de grande utilidade nas reuniões de trabalho em que mulheres são postas em segundo plano, tendo sua fala desprestigiada, como se não passasse de um punhado de ideias previsíveis, óbvias, menos importantes.

Mulheres que conseguem adentrar ambientes masculinos (aqueles em que circulam salários mais altos) são possivelmente as mais suscetíveis a esse tipo de problema. No âmbito doméstico, valeria baixar o aplicativo e fazer o teste com o maridão. Será que ele é daqueles que dizem “Já sei o que você está querendo dizer” antes de você terminar o raciocínio?

Antes que os homens se ponham na defensiva, vale dizer que o propósito do aplicativo é mostrar algo que pode ser imperceptível para eles, de tão naturalizado.  Não se trata de dizer que fulano é mal-educado (com hífen), pois, na verdade, ele provavelmente terá sido mal educado (sem hífen) por sucessivos exemplos que vêm atravessando gerações.

BELEZA E CREDIBILIDADE

Um artigo publicado nesta semana na Folha, cujo mote é o empreendedorismo feminino, cita pesquisa feita pela Harvard Business School, segundo a qual “investidores tendem a apostar mais em negócios liderados por homens”. O mesmo estudo ainda revela, com o aval da investigação científica, aquilo que já se intuía: “Quanto mais bonita a mulher, menor era a credibilidade [dela] diante da banca de investidores – composta por homens e mulheres”. Novamente o estereótipo machista: à mulher bonita cabe o papel de objeto, não o de sujeito.

Vale observar como a autora encerra o artigo: “Costumo dizer nas palestras para empreendedoras que não se trata de pegar o lugar dos homens que estão criando negócios e mudando o mundo. A questão é que somos mais de 50% da população mundial e podemos acrescentar muita inovação e criatividade no desenvolvimento de soluções que impactam a vida de todos”.

Ela própria (mulher) avisa que não quer tomar o lugar dos homens (eles estão na dianteira, criando negócios e mudando o mundo) e, mesmo constatando que as mulheres constituem mais da metade da população mundial, recomenda a elas que se resignem ao papel de “acrescentar (..) inovação e criatividade”.

Enquanto os homens mudam o mundo, as mulheres dão seu “toque feminino” (criativo) ao ambiente. Por que a divisão? Por que não homens e mulheres de negócios ao lado de homens e mulheres criativos? A formulação da ideia tem como pressuposto a existência de um lugar de homens e de um lugar de mulheres…

Isso sem considerar que muitos homens em posição de poder acham que está no seu direito assediar as mulheres. Aquelas mais atraentes geralmente passam por esse tipo de constrangimento e, caso não queiram trocar a dignidade por um cargo ou promoção, acabam tendo dificuldades adicionais na carreira. As que aceitam as regras desse jogo, imaginando-se poderosas, apenas alimentam o poder alheio.

UM MUNDO MAIS CONFORTÁVEL

Nem tudo, porém, é falta de esperança. A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, autora da conferência “Sejamos Todos Feministas” (2013), publicada em livro em 2015, acaba de lançar o volume “Para Educar Crianças Feministas”, em que apresenta suas reflexões sobre o tema. Reproduzo aqui alguns de seus conselhos para educar as crianças num mundo mais confortável para todos:

Seja uma pessoa completa. A maternidade é uma dádiva maravilhosa, mas não seja definida apenas pela maternidade. Seja uma pessoa completa. Vai ser bom para sua filha.

Ensine a ela que ‘papéis de gênero’ são totalmente absurdos. Nunca lhe diga para fazer ou deixar de fazer alguma coisa ‘porque você é menina’. ‘Porque você é menina’ nunca é razão para nada. Jamais.

Nunca fale do casamento como uma realização. Encontre formas de deixar claro que o matrimônio não é uma realização nem algo a que ela deva aspirar. Um casamento pode ser feliz ou infeliz, mas não é realização.

Ensine-lhe o gosto pelos livros. A melhor maneira é pelo exemplo informal. Se ela vê você lendo, vai entender que a leitura tem valor […] Os livros vão ajudá-la a entender e a questionar o mundo, a se expressar, vão ajudá-la em tudo o que ela quiser ser.

Ensine a não se preocupar em agradar. A questão dela não é se fazer agradável, a questão é ser ela mesma, em sua plena personalidade, honesta e consciente da igualdade humana das outras pessoas.

Ao lhe ensinar sobre opressão, tenha o cuidado de não converter os oprimidos em santos. A santidade não é pré-requisito da dignidade. Pessoas que são más e desonestas continuam seres humanos e continuam a merecer dignidade.

 

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