Mesa de bar virtual

Thaís Nicoleti

Virou moda dizer que certos comportamentos ocorrem nas redes sociais, como se, fora delas, a vida fosse muito diferente. Se, na arena virtual, as pessoas emitem opinião sobre um texto sem lê-lo até o fim, é porque, fora dela, também não conseguem ouvir o que diz o interlocutor. 

É muito comum numa conversa da vida real que cada um repita a sua ideia sem ouvir a ideia do outro ou que, mesmo ouvindo o outro, continue refratário a qualquer mudança de opinião. É mais frequente do que possa parecer. O resultado disso é que o raciocínio não avança.

Verdade é que, nas redes sociais, esse tipo de atitude ganha largas dimensões muito rapidamente, pois uma conversa virtual pode envolver elevado número de pessoas, que, aliás, nem sempre se conhecem. Em geral, as opiniões se dividem em dois blocos, aos quais cada um vai aderindo pelos mais variados motivos e acabam todos metidos numa espécie de disputa.

Nesse ambiente, é fácil que proliferem simplificações e até mesmo deturpações de ideias que mereceriam mais reflexão. Aqui nos interessa mais de perto a questão da língua, tema de muita prosa nas redes.

Do ponto de vista da linguística, que é uma ciência cujo objeto de estudo é a língua, não há construções certas e erradas. O erro seria apenas aquilo que é agramatical, portanto ininteligível (por exemplo, em vez de “O menino saiu da sala”, dizer “Menino o sala da saiu”).

Dessa forma, quem se propuser a discutir a língua do ponto de vista da linguística não terá como dizer, ao fim e ao cabo, que uma forma é certa e outra é errada nem que uma deve existir e outra não deve. Afinal, quem decide o que deve ou não deve existir são os falantes da língua, não os estudiosos, aos quais cabe compreender o fenômeno, que é social, histórico, psíquico, artístico, enfim, cultural, portanto sujeito a um complexo sistema de forças, entre as quais está a tradição.

Um linguista dizer como se deve falar equivale a um antropólogo dizer que um costume é melhor ou mais adequado que outro. Não basta, portanto, dizer que a língua muda, que não existe erro (fora da agramaticalidade) e, em seguida, decretar que um uso é melhor que outro ou que um deve ser extinto em favor de outro por qualquer que seja o motivo.

Os usos linguísticos estão inseridos nos costumes. As pessoas aprendem a língua materna nas suas famílias e nas comunidades onde vivem, daí adquirirem o registro próprio de seu local de origem. Num ambiente democrático, respeitam-se todos os registros como se respeitam, por exemplo, todas as religiões, etnias e orientações sexuais.

É fato, porém, que, sendo um produto daqueles que a falam e daqueles que a falaram no decorrer da história e a transmitiram, oralmente ou por escrito, a língua se insere numa tradição. Ainda que o processo de mudança seja natural e atenda às transformações da sociedade, o diálogo com a tradição permanece, como, de resto, acontece com os costumes e instituições.

Não há como exigir dos falantes em geral que, de saída, tenham atitude de cientistas. A reflexão leiga tende a ser “conservadora” – no exato sentido do termo, o de “conservar” – exatamente porque as pessoas defendem aquilo que receberam naturalmente pela via da tradição (tanto a oral como a escrita, esta reforçada na escola).

Disso decorre algo bem interessante nas redes sociais: as discussões começam com o discurso científico de defender as transformações, de não condenar isto ou aquilo, mas logo os debatedores enveredam pelos caminhos de terra batida da tradição em busca do certo e do errado, estes às vezes travestidos de mais bonito e horrível, melhor e pior, aceitável e inaceitável.

Não são poucos os debatedores que saem dessas tertúlias dispostos a engajar-se numa luta pela correção gramatical, cujo parâmetro é a norma culta, não a linguística. Suas palavras de ordem são do tipo “Vamos acabar com o gerundismo!”, “Fora, a nível de!”, “Não aguento mais comentar sobre!”, “Morte ao risco de morte!”.

Em suma, todo o mundo é linguista no primeiro parágrafo, mas sustentar o raciocínio não é fácil. Falta educar o olhar sobre o fenômeno linguístico. Será essa a tarefa mais difícil, para além da mesa de bar virtual.

 

Comentários

  1. A professora Thaís é uma deusa da Língua Portuguesa. Sabe como ninguém expor sua vasta cultura através de textos aos milhões de leitores da Folha.

  2. Fiz parte de uma banca de TCC e na hora dos comentários disse para aluna que o material apresentado estava parecido com conversa de bar, que precisava de retoques, de forma, de aspecto que pelo menos nos fizesse lembrar de um trabalho científico. Foi um Deus nos acuda! Nervosismo, choro, etc ….e, como não poderia deixar de ser, críticas ao componente da banca. Como agir numa situação desta onde frequentemente nos deparamos com trabalhos (trabalhos?) tão ruins que mais parecessem conversa de bar?

    1. Bem, Sebastião, eu usei a expressão para dizer que a discussão começa com algum rigor, mas logo cai no senso comum e as pessoas começam a dizer o que é mais fácil. A conversa de mesa de bar, no meu entender, é amena e só visa a distrair, passar o tempo, não a fazer avançar um raciocínio. Na internet, no entanto, tenho a impressão de que as pessoas acreditam estar dizendo coisas importantes, acreditam muito nessas “opiniões” apriorísticas e dificilmente arredam de um ponto de vista. Acho que o “remédio” é, no dia a dia, ensinar os alunos a pensar, ser exigente mesmo. Não acho que se deva humilhar o estudante, afinal, em alguma medida, o professor é corresponsável pela produção dele, mas é preciso mostrar que o texto está superficial, que não avançou, que se desviou do tema proposto, enfim, dizer objetivamente o que não está bom. 🙂

  3. Belo texto, professora Thaís. E aproveitando seus profundos conhecimentos gramaticais, pergunto-lhe se seria possível você fazer um comentário sobre a correção da mesóclise dupla usada pelo jornalista José Nêumanne no trecho abaixo. Existe essa possibilidade, ou o articulista queria apenas “tirar um sarro” com o presidente Temer, o “rei” das mesóclises”?

    “Ou seja, autorizar-se-lo-á (mesóclise dupla em homenagem a sua volúpia pelo fracionamento de verbos) a disputar (e vencer) a indireta para suceder-se a si mesmo no Congresso Nacional, que tantas alegrias lhe tem propiciado.”

    1. O pronome “se” pode associar-se a “me”, “te”, “nos”, “vos”, “lhe” e “lhes”, mas nunca a “o”, “a”, “os” e “as”, donde não ser possível a sequência “se-lo”. Vale lembrar que o “l” é acrescentado às formas vocálicas (o, a, os, as) quando elas vêm depois de r, s ou z. Então temos o seguinte: fazer + o = fazê-lo; fizemos + o = fizemo-lo; fiz + o = fi-lo; nos + o = no-lo (Ele no-lo deu, ou seja, nos deu algo); vos + o = vo-lo. Reproduzo exemplo extraído da gramática de Celso Cunha: “O coração se me confrange” (O. Mariano). Se pusermos o verbo no futuro (confrangerá), teremos “confranger-se-me-á”. Ufa! 🙂

  4. Gosto da Thais Nicoleti. Tenho arrecadado algumas observações sobre gramática que ela faz no site UOL Educação.

    1. Walter, esses textos do UOL são antigos. Como verá, ainda seguem a ortografia anterior ao Acordo. É meu projeto colocá-los todos aqui no blog, revisados e atualizados, sob a rubrica Segunda Edição. 🙂

  5. Resumindo a internet: ” Opinião é como as nádegas, todos tem. A já veterana internet deu voz as(seria com crase oh grande Pasquale?) pessoas que usam o órgão sentante como pensante.”

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