Língua portuguesa em pauta: conversa com Carlos Alberto Faraco
No âmbito do projeto “O Tamanho da Língua”, Carlos Alberto Faraco, professor titular aposentado e ex-reitor da Universidade Federal do Paraná, durante uma tarde na Livraria do Chain, em Curitiba, conversou comigo sobre o tema a que tem dedicado seus 45 anos de vida acadêmica: a língua portuguesa.
Em tom de bate-papo, com seu leve acento curitibano, o professor e sociolinguista falou sobre diversos temas, das origens da língua portuguesa à sua dinâmica de uso nas redes sociais.
A conversa passou pelo surgimento de novos termos (inclusive os estrangeirismos e as gírias) e pelo descarte de palavras, duas faces de um mesmo processo, que é, afinal, próprio da língua. Dos observatórios de neologismos à confecção dos dicionários, o professor mostrou como as palavras se fixam no que chamou de livro do tombo da língua.
Faraco fala com propriedade do fosso sociolinguístico que deu origem à grande divisão entre a norma culta e as variantes populares, tema que perpassa a sua “História Sociopolítica da Língua Portuguesa” (Parábola Editorial, 2016), e do distanciamento entre a norma culta e a norma-padrão, tema do livro “Para Conhecer Norma Linguística”, escrito em parceria com Ana Maria Zilles, professora titular de linguística da Unisinos (RS).
Como não poderia deixar de ser, tratou da história da ortografia do português, marcada por sucessivas tentativas de acordos ortográficos no decorrer do século 20.
Coordenador da Comissão Nacional do Brasil junto ao Instituto Internacional da Língua Portuguesa, da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, Faraco está diretamente envolvido na confecção do VOC, o vocabulário comum da língua portuguesa, disponível online desde maio de 2016. O VOC é a reunião das bases de palavras do português de todas as nações lusófonas, feitas em conformidade com o Acordo Ortográfico de 1990.
Faraco faz questão de dizer que, desde o início da fixação da ortografia do português, que se deu tardiamente (só no fim do século 19 e início do século 20), o Brasil e Portugal estiveram às voltas com a tentativa de fazer acordos ortográficos, não reformas ortográficas. “O português nunca teve uma reforma. Fazer uma reforma é mudar as bases da ortografia. A ortografia do português fixou-se em 1911 e os países foram fazendo pequenos ajustes para aproximar as grafias”, afirma.
Léxico: universo em expansão
A ortografia, no entanto, é a única parte da gramática sujeita, de fato, à convenção. De resto, a língua se constrói pelo conjunto de seus falantes, na dinâmica do uso, o que é muito visível no léxico. Faraco lembra cálculo de Antônio Houaiss, que estimava um salto do número de palavras do português de cerca de 50 mil no século 16 para algo em torno de 500 mil no século 20. “O vocabulário de uma língua é um universo em expansão; ele não tem limites. Novos objetos, novas práticas culturais, os esportes modernos, a comida, o comportamento, para tudo a gente precisa de palavra”, diz.
Neologismos: os empréstimos linguísticos
Muitas dessas palavras novas são empréstimos linguísticos, que se fixam por causa da influência de culturas estrangeiras: “No fim do século 19 e início do 20, era muito chique no Brasil usar termos da língua francesa (como “tailleur” ou “soirée”) para descrever a moda feminina e os eventos sociais. Depois da Segunda Guerra Mundial, a ideia de modernidade se associou aos EUA”.
A influência do inglês é muito presente hoje, mas isso não é motivo para preocupação com um suposto risco de descaracterização do idioma. Segundo o professor, um levantamento da quantidade de anglicismos que, nos últimos cem anos, entraram no português e ficaram chegou a um resultado surpreendente: apenas 4.000 se fixaram. “Quando eu jogava futebol, eu era ‘back’ (beque); havia o ‘centre forward’, o ‘referee’ etc. e foram todos descartados”, exemplifica.
Os estrangeirismos que passam a integrar o léxico da língua sofrem um processo de “aclimatação”. Alguns são absorvidos integralmente, como “show”, cuja grafia não sofreu alteração, outros são traduções, como “empoderamento” (do inglês “empowering”) e outros são aportuguesados (“esnobe”, de “snob”). O leitor não terá dificuldade de encontrar muitos outros exemplos.
O filtro fonológico da língua
“Normalmente a palavra que vem de outra língua passa por um filtro, que é o filtro fonológico da língua”, explica o professor, observando que escrevemos “smartphone” mas pronunciamos “esmartifone”. “Nossa estrutura pede a vogal que sustenta a sílaba”, explica.
Antes que alguém diga que nós estamos “falando errado”, Faraco deixa claro que esse processo é normal: “O fato de ter essa potencialidade é um aspecto bonito da língua”.
Erro de português
Aliás, a ideia de erro em língua passa longe de quem se dedica à pesquisa linguística na universidade. Faraco é enfático: “A língua não funciona como a matemática nem como um quartel”. Ele lamenta a educação linguística que se volta apenas à “correção de erros”: “Nós perdemos [com isso] um ponto de observação importante, que é ver a língua em toda a sua mobilidade, na sua ambiguidade, na vagueza, na imprecisão”.
Gíria: “o mangue da língua”
Quem quer conhecer a língua de fato deve abandonar preconceitos. Ao falar da gíria, por exemplo, Faraco explica que essa é uma faixa do vocabulário muito dinâmica, em que se criam palavras ou se dá novo sentido àquelas que já existem. “A gíria é o mangue da língua; o mangue é o viveiro da vida do oceano, é ali que se formam as novas vidas”, sintetiza.
A internet parece ser mesmo esse oceano, em que a extrema heterogeneidade da língua se manifesta. De modo totalmente inovador, a tecnologia permitiu o contato entre as múltiplas variedades da língua. Poderá ser também um acelerador do processo de mudança linguística?
Mudança linguística: “não há profeta em língua”
“A mudança linguística vem do contato; é o contato das variedades que desencadeia processos de mudança. Já o caminho das mudanças é impossível prever porque a língua está no jogo das interações sociais. Não há profeta em língua, mas essa dinâmica que a tecnologia nos proporcionou vai ter impacto sobre a língua”, afirma.
Tudo leva a crer que a tecnologia venha a impactar também a confecção de dicionários, que tradicionalmente está muito ligada à língua escrita. Como a língua falada vem ganhando o registro escrito nas redes sociais, é possível que, no futuro, esse material seja aproveitado pelos lexicógrafos.
O dicionário: “livro do tombo da língua”
Para entrar no dicionário, entretanto, a palavra tem de passar por um “período de decantação”: “O dicionário é uma espécie de livro do tombo da língua. Assim como se faz o tombamento de prédios históricos, de atividades culturais importantes, também se faz o tombamento das palavras, mas não é possível incorporá-las logo que aparecem. É preciso ver se não vão ser descartadas”, explica.
Faraco lembra que a língua sempre tem um número de palavras muito maior do que aquele que ganha o registro: “O máximo que você consegue pôr num dicionário é ainda o mínimo”. Isso tem explicação: “Um dicionário geral da língua, com a etimologia das palavras, o histórico de entrada, as acepções com as abonações, tem de passar por uma filtragem”.
Politicamente correto: ressignificação
Essa filtragem, é bom que se diga, baseia-se na dinâmica natural das palavras nas interações sociais. Em sua opinião, não há como tirar termos de circulação à força, mesmo que sejam pejorativos ou ofensivos. “As palavras vão sendo descartadas naturalmente, nunca por censura ou imposição; é o próprio dinamismo cultural que ressignifica uma determinada realidade e atribui a ela um nome diferente. A tendência é buscar sempre uma expressão mais precisa, mas a pior coisa que pode acontecer é achar que, substituindo as palavras, o problema está resolvido”, afirma.
Faraco, que tem um trabalho importante na área de sociolinguística, não poderia deixar de passar por um dos temas que mais provocam controvérsia entre especialistas em língua.
Norma culta e variantes populares: um “fosso sociolinguístico”
O professor mostra que as grandes diferenças entre a norma culta da língua e suas variantes populares têm raiz na partição social que se constituiu na época colonial, com uma elite econômica de um lado e uma massa de escravos e trabalhadores pobres de outro. Isso repercutiu na história social do país e, consequentemente, na língua. “Há um fosso sociolinguístico, histórico, muito acentuado entre a língua que os letrados praticavam (e praticam) e a língua que o povo, a massa que não era letrada, praticava. Há uma vinculação entre a cultura escrita, a escola, o tempo de escolaridade, o grau de renda e a língua que a pessoa fala”, resume.
Sobreposição de normas
Essa distinção, no entanto, vai além da oposição entre norma culta e variantes populares. Não bastasse essa acentuada divergência, “por cima dessa norma culta, nós temos outra, a norma-padrão, que é uma invenção efetivamente”. Em suma, existe outra divisão, “uma dualidade entre a prática efetiva dos falantes letrados e o modo como se diz que eles deveriam falar ou escrever”.
Esse não é um problema só brasileiro, conforme explica Faraco. Esse é um problema da América Latina, “pois se criou na tradição histórica da região a ideia de que a língua como se fala nas colônias é cheia de erros, é descuidada”. Difundiu-se a ideia de que “a língua modelar mora em outro lugar; o espanhol mora em Madri e o português mora em Lisboa”.
Assim, no século 19, criou-se uma norma-padrão que tomou como referência a norma portuguesa. Nas palavras de Faraco, “os letrados vivem essa ‘esquizofrenia’, essa distância entre o que fazem e o que deveriam fazer”. O desafio, portanto, é atualizar a norma-padrão para que ela, no mínimo, reflita a realidade dos falantes da norma culta.