A mudança linguística e as normas

Thaís Nicoleti

Dizer que a língua muda com o tempo já não parece novidade para ninguém. Basta uma breve comparação entre textos de épocas diferentes para constatar isso.

É claro que, ao cotejar textos de momentos distantes no tempo, fica mais fácil perceber as diferenças. Difícil, porém, é lidar com a fluidez da língua, com a sua natural instabilidade. Afinal, quando se constata que a mudança se efetivou?

Dada a grande dificuldade, se não a impossibilidade, de determinar com precisão o que já é e o que deixou de ser, ou seja, aquilo que é novo e veio para ficar e aquilo que não serve mais, parece mais fácil continuar ensinando a velha norma-padrão, que, não sendo ela própria a língua, mas uma espécie de fotograma dentro de um continuum, se deixa pegar, segurar e pode ser apresentada como se constituísse um todo logicamente organizado.

Talvez por isso é que exista tanta resistência não à mudança em si, mas antes ao seu reconhecimento. Daí certa concessão, mesmo entre professores, a um suposto “falar cotidiano”, que seria diferente da “norma culta” e, portanto, “permitido” em situações de informalidade. O problema, porém, é mais complexo que isso.

O professor Carlos Alberto Faraco, da UFPR, tem uma explicação: “Em primeiro lugar, é importante ter claro que oralidade não se confunde com informalidade. As modalidades da língua podem ser mais formais e mais informais. De resto, os falantes tendem a achar que falam sempre a mesma língua no correr de toda a sua vida. São raras as situações em que se dão conta de que mudam sua fala. Vive-se sob a ilusão do permanente e não se capta o movimento contínuo”, afirma.

No campo lexical, as coisas parecem menos problemáticas. É fácil perceber a chegada de uma palavra nova e dificilmente alguém, em sã consciência, lamenta o desaparecimento de uma antiga. Embora os neologismos (e os empréstimos linguísticos) à primeira vista dividam opiniões, sendo rechaçados por uns e acolhidos por outros, a tendência é que, tendo utilidade na comunicação, ganhem seu lugar no léxico da língua. Já os termos que perdem relevância (por diversos motivos) vão sendo esquecidos, saem do uso e são reconhecíveis nos dicionários e nos textos de outras épocas.

Palavras também podem mudar de significado. Permanecem na língua, mas usadas em diferentes contextos. Quem hoje diria que “formidável” já quis dizer “terrível” e que “roxo” já foi “vermelho”? Esse processo também ocorre em outros domínios da língua, nos quais, todavia, é frequentemente visto como deterioração. “Quando algum fenômeno de mudança é percebido, ele é logo classificado de erro. Há aí qualquer coisa na psicologia humana que nós, linguistas, não sabemos explicar. O fato é que a língua em uso muda e muda inexoravelmente”, diz Faraco.
Deixa disso, camarada

Em episódio ainda recente na memória nacional, Michel Temer, à época presidente interino da República, fez uso de uma mesóclise em discurso de apresentação de seu ministério: “Quando menos fosse, sê-lo-ia pela minha formação democrática e pela minha formação jurídica”, declarou com a voz impostada.

Não faltou quem aplaudisse o uso, comemorando o “resgate do bom português”, embora, é claro, também não tenha faltado quem sentisse ali um cheirinho de naftalina (aquela substância muito malcheirosa que os antigos deixavam nas gavetas de roupas pouco usadas a fim de repelir traças e baratas).

Faraco lembra que a mesóclise não é uma forma que ocorre espontaneamente. “É preciso um esforço de monitoramento para enunciá-la. Penso que ela ainda ocorra aqui ou ali em razão de certa insistência da escola. E, como é uma forma arcaica, o falante pode estar querendo produzir um efeito de estranhamento ou sugerir que sabe muito português, o que, obviamente, não é o caso porque a língua contemporânea dispõe de outros recursos para expressar a mesma ideia sem que se precise correr o risco de passar por pernóstico ou de soar ridículo pelo uso contextualmente inadequado de uma forma arcaica”, afirma.

A colocação pronominal, como já disse o professor, é a “rainha das questões” quando se trata de observar a discrepância entre o uso e a norma ensinada como “certa”. A título de exemplo, dois trechos de declarações publicadas nesta semana na Folha, um deles extraído de fala da modelo Gisele Bündchen e outro de entrevista do economista Gustavo Franco.

Diz Gisele Bündchen: “Me sinto mais confortável comigo mesma. A maturidade traz serenidade, mais autoconhecimento, e vamos aprendendo a lidar com tudo. Continuo a trabalhar como modelo, mas sou muito mais seletiva nos meus trabalhos”.

Diz Gustavo Franco: “Dizem que privatização, por exemplo, é impopular. Me remete a uma frase que ouvi de um político carioca: impopular é roubar dinheiro do povo”.

Está claro que essas pessoas não estão usando alguma variante popular. São falantes escolarizados, que empregam a norma culta do idioma. A norma-padrão, no entanto, atesta como erro o emprego do pronome átono no início do período. Erramos todos os dias, certo? Ou será que isso já deixou de ser erro?

Oswald de Andrade, num poema muito conhecido, intitulado “Pronominais”, já em 1925, dizia o seguinte:

Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da nação brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso, camarada,

Me dá um cigarro

Ter e haver/ Eu vi ele

Além da colocação pronominal, cujo uso efetivo com frequência desafia as regras convencionais, há muitos outros pontos sob o constante escrutínio dos estudiosos.

O emprego do verbo “ter” no lugar do “haver”, com sentido de “existir”, é cada vez mais frequente e, salvo engano, menos perceptível como “erro” (“Economia de mercado. Entre os partidos, não tem ninguém que abrace as ideias ditas liberais na economia”, trecho colhido da entrevista de Gustavo Franco citada acima).

O uso do pronome pessoal do caso reto em posição de objeto direto (na terceira pessoa do discurso) é bastante observável entre falantes da norma culta (“Ele é bem mais orgânico do que eu podia enxergar quando estava de fora. Tem muitos filiados, núcleos em tudo quanto é lugar. Gente com ideias. E nisso, curiosamente, se assemelha ao PT quando eu vi ele sendo construído lá nos anos 1980 como partido de base”, também de Gustavo Franco).

Alguém hoje ainda usa espontaneamente o pronome “vós”?

Faraco cita com muita propriedade o caso do emprego da segunda pessoa do plural no português do Brasil: “Alguém hoje ainda usa espontaneamente o pronome e as formas verbais de segunda pessoa do plural em português? Não. O “vós” e suas respectivas formas deixaram de ser usados na fala já em meados do século 18. O português empobreceu? Não, ele apenas passou a expressar a segunda pessoa do plural por outros meios. Bom era só o português que tinha o “vós” e suas respectivas formas verbais? É claro que não. Era bom enquanto assim foi e continua bom nas suas novas formas”.

As línguas mudam inexoravelmente

Que o pronome “vós” e a mesóclise estejam praticamente aposentados é fato. Não se trata, portanto, de dizer que seu uso é “certo” ou “errado”. O emprego dessas formas, com certeza, traz algum tipo de marca ao texto. Não foi à toa que a “mesóclise presidencial” virou assunto na imprensa. Foi a sua estranheza para a maioria da população que desencadeou o sem-número de textos e comentários, com direito a flá-flu na internet.

“É preciso, em primeiro lugar, entender que as línguas mudam inexoravelmente. Só não mudam se pararem de ser faladas. É importante também destacar que as línguas mudam simplesmente. Elas não mudam para melhor ou para pior”, reforça Faraco.

Mas, afinal, o que é falar um “bom português”?

Com a palavra, o professor: “O ‘bom português’ não deixa de ser falado, ele apenas vai sendo falado de formas diferentes. Os falantes, de modo geral, acham que usam a mesma língua a vida toda e que qualquer mudança detectada é um mal terrível. No entanto, a língua muda e continua garantindo recursos expressivos para os seus falantes. Para falar bem, não precisamos nos apegar a formas arcaicas. O que passou, passou”, conclui.

A percepção do “erro”, no entanto, recai sobretudo na concordância, que, no português, diferentemente do inglês, por exemplo, é um sistema redundante, a considerar a norma-padrão. Quem nos garante que não estejamos a caminho de algo parecido com o inglês, seja pela lei do menor esforço, seja por outras motivações? “Marcando-se o plural no primeiro elemento, supõe-se que não haja necessidade de marcar os demais. O inglês marca o plural no substantivo, mas não no artigo e no adjetivo, e essa marca não faz falta”, explica a professora-doutora Vanderci Aguilera, da Universidade Estadual de Londrina, que é pesquisadora na área de dialetologia e uma das coordenadoras do projeto Atlas Linguístico do Brasil.

É como sociolinguista que Faraco explica esse fenômeno da percepção do “erro”: “No Brasil, a frequência com que se faz a concordância verbal é fator de corte socioeconômico. Ninguém faz a concordância em 100% dos casos, mas a baixa frequência desse traço sinaliza aos que estão nos andares de cima que o falante tem pouca escolaridade e isso pode ter trágicas consequências no convívio social”.

Esse debate, por vezes, é tingido de coloração ideológica, o que pode levar a equívocos, como o de achar que os linguistas defendem um suposto ensino de uso “incorreto” da língua, como ocorreu por ocasião da polêmica em torno do livro “Por uma Vida Melhor”, de Heloísa Ramos, adotado pelo MEC no programa de educação de jovens e adultos. A discussão acalorada tomou as páginas de jornais e revistas, desencadeando manchetes como “Livro adotado pelo MEC defende falar errado”, MEC distribui livro que aceita erros de português”, “O assassinato da língua portuguesa” etc.

A frase pinçada do livro ilustrava uma variante popular em que se subtrai a flexão de concordância (“Nós pega o peixe” em vez de “Nós pegamos o peixe” ou “A gente pega o peixe”, registros próprios da norma culta). Foi o suficiente para que se alastrasse entre as classes médias o medo de que seus filhos fossem aprender a falar desse jeito na escola.

Segundo Faraco, “a escola, é claro, tem de centrar suas ações pedagógicas nos registros mais formais, mas eles só fazem sentido se adequadamente situados no grande espectro de variação que caracteriza a língua em uso na sociedade”. E vai além: “Precisamos desenvolver uma pedagogia da variação linguística, da qual emerja a pedagogia das normas de referência para as situações mais formais”.

O ensino da língua é, sem dúvida, um grande desafio. Entre professores de português, inclusive autores de livros paradidáticos, é comum vir o reconhecimento de que a língua muda seguido da recomendação de uso “culto”, em fórmulas do tipo isso é muito comum, muito frequente, todo o mundo fala, mas, segundo a norma culta, está incorreto. Em suma, constata-se que a língua muda, mas sem incorporar a mudança ao ensino, como se a “norma culta” fosse estática.

A tradição da língua é um valor?

Afinal, a “norma culta” e a norma-padrão não mudam? Faraco é enfático ao afirmar que tudo muda numa língua em uso: “Há ritmos diferentes de mudança conforme a variedade, mas nenhuma delas é estática. Tanto muda a chamada “norma culta” (o uso comum dos letrados em situações mais monitoradas) quanto muda a norma-padrão (que é apenas uma convenção). É contraditório reconhecer o fato e não reconhecer suas consequências. O resultado do fosso que se cria desse modo entre as práticas correntes e as regras postuladas como padrão é esta espécie de anomia linguística em que vivemos no Brasil. O ensino não tem norte e o uso não tem norte. Há uma grande insegurança linguística entre os falantes porque muitas regras não fazem sentido em confronto com as práticas concretas”.

Nas redes sociais, surgem todos os dias professores preocupados em ensinar o “bom português” seja listando pleonasmos a evitar, seja arrolando os célebres “erros mais comuns”, aos quais dão as cobiçadas respostas rápidas que tanto seduzem os apressados leitores dos novos tempos. O número de “curtidas” atesta o sucesso desse tipo de ensinamento. Aparentemente, a defesa da tradição da língua representa a defesa de um valor muito caro aos falantes.

É mais uma vez a sociolinguística que pode iluminar a questão: “Numa sociedade como a brasileira, drasticamente partida social e economicamente desde o período colonial, a questão linguística é muito sensível. Os que estão nos andares de cima da pirâmide socioeconômica têm pavor de serem identificados pelas variedades da língua que usam com os dos andares de baixo da pirâmide socioeconômica. Assim, existe um esforço para fugir dos ‘erros mais comuns’ e certos livros e espaços nas redes sociais satisfazem esse desejo, mas só aparentemente, porque o resultado, como bem sabemos, é nulo. Por mais que se repita a condenação dos tais ‘erros mais comuns’, eles não desaparecem do uso. Há mais de um século a lista desses ‘erros’ é sempre a mesma. Então, há qualquer coisa muito curiosa aí.  Essas listas parecem servir, no fundo, apenas ao gozo de quem quer desclassificar os outros por ‘não saberem gramática’.  Talvez os psicanalistas possam explicar isso para nós”.

O coração do ensino de português

A Base Nacional Comum Curricular incluiu no ensino de língua portuguesa a modalidade oral formal. Durante muito tempo, a oralidade foi confundida com informalidade, daí ter sido sistematicamente subtraída da grade curricular. Segundo Faraco, todas as capacidades linguísticas devem ser praticadas na escola. “Falar em público em situações mais formais é tão relevante quanto escrever textos em situações mais formais. Debater com civilidade é essencial à vida democrática. Ampliar, portanto, os universos linguísticos orais ou escritos é do coração do ensino de português. As modalidades da língua podem ser mais formais ou mais informais. Não se escreve uma mensagem numa rede de amigos no celular do mesmo modo que se escreve um ensaio acadêmico. Assim também não se fala no plenário do Supremo Tribunal Federal do mesmo modo que se fala num bate-papo entre amigos numa mesa de bar”, afirma.

Norma-padrão: invenção?

Segundo os linguistas, a norma-padrão (o modelo de correção gramatical) é uma “invenção”. É certo que, ainda que haja muito de artificial nessa convenção, essa “invenção” não é algo totalmente aleatório. Em que se baseia, afinal, a norma-padrão?

Faraco explica que, já na década de 1920, o linguista dinamarquês Otto Jespersen demonstrou não haver critério único e sistemático na definição das regras normativas. “Há critérios de ocasião. Algumas vezes, apela-se à gramática latina; em outras, ao uso de escritores consagrados; em outras, ao uso de uma determinada região ou grupo social; em outras ainda, às preferências ético-estéticas do gramático. Desse modo, a convenção a que se dá o nome de norma-padrão não tem como ficar isenta de invenções, paradoxos e contradições. E, por isso, seus postulados devem ser sempre submetidos a um bom debate crítico”, resume.

Escolaridade e mudança linguística

No Brasil, é comum atribuir as mudanças (“erros”?) à baixa escolaridade de considerável parcela da sociedade ou a uma suposta falta de “hábito de ler” – ou a ambas as coisas.  A isso Faraco responde reconhecendo que a escolaridade tem um efeito retardador de mudanças, principalmente na língua escrita. “Na língua escrita, é possível um monitoramento mais intenso. Na língua falada, porém, as mudanças se dão com mais força e com menos possibilidade de controle. Os falantes, mesmo os altamente escolarizados, nem se dão conta de quanto a língua que falam está mudando”.

O professor nos convida a observar com atenção os debates no Supremo Tribunal Federal: “Note quantas vezes aparecem as orações relativas cortadoras (nas quais se apaga a preposição antes do pronome – do tipo de “O livro que eu gosto”). Acho que é um bom exemplo porque é o tribunal superior e os magistrados e advogados, em geral, são muito ciosos da ‘correção’ gramatical. Ora, se nesse contexto, povoado de falantes altamente escolarizados e letrados, as relativas cortadoras abundam, é porque a escolaridade, embora tenha certo efeito de freio, não controla, de fato, os processos de mudança. Na entrevista de Gustavo Franco, temos também exemplo disso: “Mesmo o governo que participei, que patrocinou reformas pró-mercado muito pesadas, sempre o fez com certa hesitação e com muitos pedidos de desculpa”.

O lugar da norma-padrão

Resta saber, afinal, qual é o lugar da norma-padrão e se seria possível aproximá-la da norma culta efetivamente usada. “Pequenos passos na tentativa de aproximar a norma-padrão da norma culta vêm sendo dados desde nossos primeiros filólogos no século 19. Ter uma norma de referência é importante como baliza para certas situações em que vale a pena controlar a variabilidade linguística. É importante haver certa uniformidade, por exemplo, em materiais escritos para públicos amplos”, explica Faraco.

O professor, no entanto, faz um alerta: “Mas a convenção não pode ser uma camisa de força, sob pena de tirar a vitalidade da língua. Percebo que, muitas vezes, sob pretexto de adequar os textos escritos à norma-padrão, bloqueia-se a renovação da língua escrita. Tem havido, nesses casos, uma espécie de esterilização da nossa língua escrita. Ela vai ficando pasteurizada e sem graça”.