De ofensas e elogios

“O maior laxante do Brasil”. Foi assim que o promotor Fernando Krebs, do Ministério Público Estadual de Goiás, se referiu ao ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal). Muita gente deve ter achado graça da metáfora jocosa (Gilmar Mendes solta quem está preso na penitenciária, enquanto o laxante solta o que está preso no intestino…), mas o ministro do STF não deixou barato: apresentou queixa-crime contra o promotor de Goiás e pede que este seja condenado por injúria e difamação qualificada.

Ofender (isto é, ferir, machucar) o outro por meio de palavras é coisa muito antiga, daquelas que existem desde que o mundo é mundo. O teor do xingamento, o contexto, a intenção, tudo isso pode agravar ou atenuar a ofensa, mas é certo que nem só os tabuísmos ou palavrões têm o condão de magoar.

Os palavrões constituem em si linguagem rebaixada, portanto ferem o decoro. Geralmente estão associados às práticas sexuais (o leitor me poupe de fazer uma lista) e, muitas vezes, às necessidades fisiológicas (“cagada” no lugar de “estupidez” ou coisa errada, por exemplo). “Laxante” é apenas um remédio, mas a associação à sua ação medicamentosa é imediata e nos remete a uma imagem desagradável. O fato de a declaração ter sido pública tornaria a situação vexatória, mas, ao que tudo indica, a informalidade e o gosto pelo chiste, tão próprios das interações nas redes sociais, parecem amenizar o efeito ofensivo – em outras palavras, ninguém fica chocado com a declaração do promotor (o que não significa que não seja ofensiva).

Associação com animais também é algo comum na hora de xingar (e ser xingado, é claro): asno, burro, porco, cachorro, veado, cavalo, macaco, galinha, piranha. Alguns traços do comportamento dos animais são selecionados e metaforicamente associados àquilo que representa algum demérito. Em muitos casos, alguns desses termos traduzem preconceitos, o que torna as coisas mais graves, de modo que o feitiço vira contra o feiticeiro: certos xingamentos (por exemplo, chamar o outro de maloqueiro, favelado, veado, macaco, galinha) dizem mais de quem xingou do que de quem foi alvo do xingamento.

Insultos à inteligência ou ao excesso de astúcia mantêm-se em pleno uso: ser tolo, palerma, parvo, bobo, paspalho, simplório, tapado, trouxa, pacóvio ou toleirão não engrandece ninguém, e o mesmo vale para trambiqueiro, trapaceiro, bilontra, burlão, caloteiro, desonesto, escroque, tratante, velhaco, golpista ou vigarista.

Ser “moderno” é sempre bom, logo ser “antigo” – ou “antiquado” – é ruim. Novo é bom, mas velho é ruim, é “pré-histórico” ou do “tempo do onça”. “Dinossauro” é o que resiste à mudança – péssimo, portanto. Bom é ser “antenado”, ou seja, estar perfeitamente inserido no modo de vida contemporâneo, disposto a absorver o máximo possível de informações.

Chamar alguém de “infeliz” hoje, quando todos esbanjam felicidade nas redes sociais, é quase um ultraje. Ser infeliz (e até estar triste) é ter fracassado de alguma forma num mundo de bem-sucedidos e vencedores.

“Mesquinho”, “pão-duro” e afins continuam sendo ofensivos, pois, embora o egoísmo pareça ser um traço marcante do nosso tempo (e assumido como normal), as pessoas ainda consideram pouco educado demonstrá-lo. O repertório da saúde mental e/ou da psicanálise é largamente usado para xingar o outro: neurótico, histérica, psicopata, esquizofrênico, esclerosado, senil, autista ou bipolar hoje servem para ofender (particularmente, acho de muito mau gosto). Note-se que antigamente o adjetivo “lazarento” exercia essa mesma função (a lepra era chamada de “mal de Lázaro”, e “lazarento”, aquele que fora acometido pela doença que hoje é chamada de hanseníase, era uma espécie de ofensa).

Do ponto de vista formal, muitas vezes, é a aposição de um sufixo que confere à palavra o seu tom pejorativo: poetastro, bobão, beberrão, padreco, jornaleco, palavroso, pinguço, velhusca, porcalhão, populacho, gorducho, portuga, sargentão, gerentona, chefete etc. E não nos esqueçamos do “juizeco de primeira instância”, expressão usada pelo senador Renan Calheiros, já comentada aqui.

Enfim, o repertório de ofensas – como tudo na língua – é vasto e móvel, claramente relacionado aos costumes e valores da sociedade. Os tabuísmos tendem a ofender os mais conservadores; para os jovens, falar palavrão pode ser algo libertador, uma forma de contestar os valores vigentes – nem sempre com valor ofensivo. 🙂