O zero e a negação: “Estou zero preocupado com isso”

Thaís Nicoleti

Observo com curiosidade como se disseminou uma prática linguística que, até pouco tempo atrás, era bissexta e, por isso mesmo, muito expressiva. Estou falando do uso da palavra “zero”, um numeral, no lugar de uma partícula de negação (pronome indefinido, advérbio ou preposição) ou do adjetivo “nulo”.

Em vez de dizer que não estou preocupado com alguma coisa, digo que estou zero preocupado. Em vez de dizer que uma pessoa não tem nenhum conhecimento sobre um tema, digo que ela tem zero conhecimento sobre aquilo.

Tenho visto esse uso com certa frequência e convido o leitor a observá-lo também.

Vale lembrar que o “zero” posposto a um substantivo não é novidade em situações em que aparece ainda como quantificador, indicando ausência de um elemento (morfema zero) ou ponto inicial de uma escala (grau zero, gravidade zero), daí provavelmente derivando expressões como “marco zero”, “estaca zero” ou “começar do zero” — e, mais recentemente, “prioridade zero”, à qual voltarei em outro momento.

É claro que não podemos subestimar a influência do inglês, que nos deu “tolerância zero” (“zero tolerance”) e similares. Daí para “Fome Zero” (nome de programa governamental) e outras expressões do mesmo tipo, o passo foi curto. O título jornalístico corrobora o uso: Desmatamento zero do Cerrado é reivindicação aos presidenciáveis”.

A fala (em provável tradução literal) de Moritz Poehl, antigo analista do banco Lehman Brothers, “Você tinha zero controle sobre alguém que podia apertar o botão errado, no andar errado”, atesta essa marca do inglês sobre o português.

Vejamos alguns exemplos de como o “zero” vem aparecendo no lugar das formas tradicionais de negação em português.

Do atleta Alexsandro de Souza: “Eu vejo que realmente deu resultado, mas o nosso poder de execução é zero”.

Da historiadora Mary del Priore,  ao comentar o incêndio do Museu Nacional: “Tivemos a Capela Imperial, na UFRJ, que foi queimada, mas as pessoas apenas lamentam depois. Toda vez que o Museu Nacional precisou de verbas, o apoio da população era zero. Agora todo o mundo chora, mas a verdade é que há uma negligência do cidadão carioca”.

De um deputado: “Bolsonaro fez, de forma orientada, vários gestos para a comunidade [judaica], especialmente em relação a Israel, mas o conhecimento dele sobre desafios do povo judeu é zero”.

De Ivan Monteiro, presidente da Petrobras: “Houve zero submissão ao governo. Temos toda uma política de governança. A proposta vinha sendo estudada há 60 dias. Quando ficou madura, submetemos à diretoria executiva”.

Enfim, nesses exemplos, vemos o “zero” com característica de adjetivo e de pronome indefinido, dado que relacionado diretamente a um substantivo, seja em função predicativa (o poder era zero, o apoio era zero, o conhecimento é zero, em vez de “nulo”), seja como adjunto adnominal (zero controle, zero submissão, em vez de “nenhum controle”, “nenhuma submissão”).

Há que se questionar o porquê de usar um numeral (cardinal, portanto quantificador) para adjetivar substantivos abstratos, não contáveis. Ora, se posso dizer “zero controle”, poderia igualmente dizer “um controle”, “dois controles”, “três controles” etc., mas isso não se verifica. Daí se conclui que “zero” nessas construções não deve ser tomado como numeral – ele perdeu a faculdade de quantificar, passando a ocupar o lugar de um pronome indefinido indicador de totalidade exclusiva (nenhum).

É interessante observar que, em uma construção como “Houve zero submissão”, não há partícula de negação, enquanto, em seu equivalente tradicional (“Não houve nenhuma submissão”), aparecem dois elementos negativos (não, nenhum).

O que vemos é que o “zero” parece ter entrado na moda.  Quando alguém diz que está zero preocupado, o “zero” está no lugar de uma negação enfática (Não estou nem um pouco preocupado), exercendo função adverbial, dado que modifica o adjetivo “preocupado” e que de modo algum seria permutável com um numeral cardinal qualquer (um, dois, três etc.).

É possível que esse uso tenha tido seu início em expressões ligadas a medidas (carro zero-quilômetro ou simplesmente carro zero; taxa zero). Note-se que, nesses casos, o “zero” denota um valor positivo (carro novo; sem taxa), o que é bem diferente de “ser um zero à esquerda” ou mesmo de “ser um zero”, expressões de caráter negativo. Ao que tudo indica, esse uso veio para ficar.